Eduardo deu um beijo em Sofia e saiu para o trabalho.
Seguiu o caminho de sempre até o ponto de ônibus. Caminhou cinquenta metros em
linha reta, dobrou à direita, depois à esquerda, e deu de cara com a avenida.
Podia fazer o trajeto de olhos fechados, pois essa era sua rotina de segunda a
sexta, uma rotina, diga-se, que ele aguentava estoicamente. Ele:
marido-exemplar, pai-exemplar, empregado-exemplar.
Sem aviso prévio, uma chuva rala começou a cair, fazendo
Eduardo andar mais rápido. Os pingos foram se tornando mais agressivos. Eduardo
mediu a distância até o ponto de ônibus e concluiu que não chegaria até lá sem
sofrer um bom estrago. Ele buscou refúgio sob uma árvore de copa generosa, mas
que logo foi vencida pelos ataques da chuva vertical.
Agora, sim, ele estava num mato sem cachorro, vendo a
hora avançar e ilhado a contragosto, graças a um desígnio da natureza. Do outro
lado da rua, de dentro de uma guarita de um prédio residencial, um porteiro
observava Eduardo, com indiferença. Talvez se divertisse vendo a chuva se
apossando da paisagem e transformando Eduardo num espantalho inútil e úmido.
Era tal o abandono. Eduardo saltou de um estado de
preocupação crescente para uma ira infantil contra São Pedro e sua pequena
estripulia. Estados de ânimo estéreis, pois a chuva não dava sinais de que iria
partir tão cedo.
A árvore já não conseguia resistir à chuva, e Eduardo
ficava cada vez mais ensopado. Então ele ouviu uma voz feminina que o chamava,
e ele olhou na direção da voz meio sem entender direito. E a voz então falou
pode vir moço, para passar a chuva. Então Eduardo entendeu e caminhou ao
encontro da voz, que vinha de uma casa. Era uma casa pequena, tipo sobrado,
de muro baixo, pintado de terracota.
Obrigado, bom dia, dá licença, foi falando Eduardo meio
sem jeito, e entrou na casa com alguma cerimônia. Ele pôs as mãos para trás, como num reflexo
de boa educação, ou uma certa tensão, e ficou ali postado na pequena sala.
Entre, pode entrar, a dona da voz foi dizendo. E ele relaxou e entrou, e ela
disse pode se sentar aqui, e apontou uma cadeira de madeira.
E Eduardo sentou e pôs as mãos nos joelhos. Ele deu uma
espiada na mulher e no ambiente. Era uma senhora de seus 60 anos, loura e ainda
bonita, e Eduardo teve a certeza de que ela fora tão ou mais bonita na
juventude. E arrastava um pequeno sotaque que podia ser identificado como de
uma italiana. Ela sumiu por uns instantes deixando Eduardo sozinho, mas logo
ela retornou com algo nas mãos, uma pequena peça de artesanato que ela bordava
à mão. Ela sentou-se perto de Eduardo e falou mas que chuva inoportuna, aposto
que o senhor deve estar atrasado para o trabalho. E Eduardo respondeu sim,
estou atrasado e molhado até os ossos, e se deu conta de que não soara muito
agradecido, talvez suas palavras traíssem uma ponta de (crescente) irritação.
Mas a italiana (ele a chamaria assim, de si para si) era
bonita e agradável. E ele não deixou de se surpreender com aquele ato de
gentileza dela, de uma senhora convidando um estranho para entrar em sua casa,
num tempo de violência descontrolada e outras bizarrices. E ele de pronto
aceitou um chá com biscoitos, que ela ofereceu, antes convidando Eduardo a
entrar ainda mais no interior da casa.
Os dois se sentaram numa mesa, um de frente para o outro,
em silêncio, um silêncio só quebrado pelo tamborilar persistente das gotas de
chuva nas janelas. Eduardo era um homem sociável, mas um encontro, ainda mais
inusitado como aquele, tinha um grão de estranheza que o inquietou. A italiana
pediu licença, saiu da mesa um instante e voltou com uma toalha. Era para
Eduardo secar os cabelos e o que fosse possível da roupa. Ele agradeceu e ia
falar alguma coisa, quando a italiana o interrompeu, para fazer algumas
perguntas triviais, do tipo o senhor é daqui mesmo? O senhor trabalha muito
longe? O senhor quer dar algum telefonema, enquanto a chuva não vai embora?
A italiana fazia essas perguntas de forma desinteressada,
mas o que ela queria mesmo era falar dela. Era mais uma mulher avançada em anos
e solitária querendo conversar, e sua solidão parecia tão profunda que abria a
porta para um estranho, embora bem apessoado.
Eduardo deu uma olhada na casa e viu lá nos fundos dois
gatos preguiçosos, bem alimentados e bem cuidados, brincando entre si. E havia
retratos com textura de coisa antiga, não muitos, mas suficientes para fazer
entender que aquela casa, aquela italiana, cultivava seu passado. Numa das
fotos, um homem, com ares principescos, está diante de um belo hotel que pode ser
em Veneza ou em Istambul. Pelo espaço central que ocupa na sala, deve ter sido
marido ou alguém em especial no coração da italiana. Outra foto, emoldurada
como a do homem principesco, mostra um rapazola de talvez uns 15 anos. Há também uma reprodução de uma foto de
Arturo Rubinstein, uma evidência de que a italiana tinha gostos elevados.
Eduardo viu ainda algumas reproduções, desta feita quadros conhecidos de Van
Gogh, Monet e Mondrian. E numa espécie de sala contígua e mais espaçosa havia
um piano com marcas de uso, com a madeira expondo pequenos sulcos amarelados.
Um passado denso sobrepujava o presente daquela casa, dominando-o, Eduardo
refletiu. E a italiana olhava para Eduardo como se fosse ele o escolhido para
viajar com ela de volta àquele passado.
A italiana contou que uma chuva assim, ou parecida com
aquela, havia mudado sua vida há quarenta anos. Mudado?, perguntou Eduardo, no
afã de entrar naquela mente e naquele passado. Há quarenta anos, ela disse, eu
era uma ragazza vivendo com os pais
em Gênova. Vinha da família Bonfaro, constituída por músicos e artistas. Eu,
Elena Bonfaro, por imposição do meu pai, que era muito austero com os dois
filhos, eu e meu irmão, tive de estudar piano. Minha vida era dedicada à
escola, ao conservatório de música e às festas familiares, a maior parte de
natureza religiosa. Para mim, as coisas estavam bem assim, pois aquela era a
vida que eu conhecia, não havia outra. Não namorava, embora houvesse
pretendentes por perto, afinal eu era muito bonita, mas meu pai fazia marcação
cerrada. Ela disse com licença, saiu e voltou com uma pasta com fotos. Essa era
eu aos vinte anos, ela falou me mostrando uma imagem de uma italianinha que eu
classificaria como muito parecida com uma Cardinale jovem. E Elena foi
mostrando mais e mais fotos. Numa delas, Elena está participando de uma
competição de piano. Foi logo depois dessa competição que minha vida mudou, ela
falou. Eu ouvia Elena 1, mas estava mesmo concentrado em Elena 2 e sua beleza
juvenil.
Foi depois dessa competição que minha vida mudou,
prosseguiu Elena 1, e tudo aconteceu graças a uma chuva torrencial e inesperada
como esta que está caindo hoje, e que ilhou o senhor em minha casa. Senti um arrepio, pois eu não estava mais
ilhado naquela casa, mas na beleza virginal de Elena 2, para quem eu olhava
deslumbrado, na fotografia.
Eu perdi aquela competição, que era tão importante para
mim, uma espécie de copa de futebol do piano em Gênova, prosseguiu Elena. O
júri anunciou o resultado final e eu conquistei um segundo lugar, honrável para
qualquer musicista, dado o nível da competição, mas não para a minha família,
encastelada que vivia num panteão de orgulho inatingível. Ali mesmo, diante dos
meus amigos e das pessoas, meu pai me passou uma descompostura, como se
dependesse somente de mim o futuro do mundo. Aquilo me magoou muito e eu deixei
o teatro em disparada, sem direção. Andei horas sem fim pela cidade. Estava
fora de mim. Até que cheguei à estação de trem. Nesse momento uma chuva
fortíssima caiu sobre a cidade. Fiquei ilhada durante horas, pois todos os serviços
foram suspensos. Então um cavalheiro me viu, deve ter pressentido meu estado de
desolação, e perguntou se estava tudo bem. Ele me reconhecera da competição.
Hipotecou sua solidariedade, dizendo que eu havia tocado muito bem. E perguntou
se eu não gostaria de acompanhá-lo, pois poderíamos dividir um táxi, e ele me
deixaria em minha casa.
Assim foi que conheci e me enamorei por Umberto Bonfaro,
Elena continuou. Por sorte, minha família não opôs resistência ao
relacionamento, já que minha determinação espartana para o piano estava
amolecida por causa da minha derrota na competição. Eu já considerava a
possibilidade de me transformar numa professorinha e em dona de casa dedicada.
Então eu e Umberto casamos e viemos morar no Brasil.
Tivemos um filho, Baudolino, que morreu jovem, o que me causou uma espécie de
morte pessoal, o senhor bem pode imaginar uma tragédia dessas.
Eduardo ouviu Elena 1 numa espécie de transe. Em seu
lugar ele via Elena 2 e sua figura bela. Uma coisa inexplicável foi se
apossando dele, talvez um desejo, ele não sabia bem o quê. Ele queria Elena 2,
mas ali na sua frente estava Elena 1. Um duplo se instalou nele, e lá dentro de
sua cabeça teve início uma pequena guerra.
EDUARDO 1
Como é, cara? Ela é apenas uma mulher velha que quer reconquistar
o passado. Foi gentil com você, amparou você da chuva, e agora você fica aí com
essas ideias libidinosas?
EDUARDO 2
Não dá para negar o fato de que ela é muito bonita, de um
frescor raramente encontrado, uma Cardinale em seu ápice. Eu estou muito
impressionado.
EDUARDO 1
Não podemos ceder às pulsões, como se não tivéssemos
controle sobre nós mesmos. É uma senhora, podia ser avó de seus filhos. Você
tem 40 anos. Você tem Sofia, não precisa dessas fantasias deslocadas.
EDUARDO 2
A idade não vem ao caso, e não há limites para as
fantasias humanas. Ou não seriam humanas. Ela é linda, uma genovesa que poderia
ter acabado na Cinecittà, se não tivesse se mudado para o Brasil com Umberto.
Olhe só para essa foto.
EDUARDO 1
Você está se aproveitando de uma mulher frágil e
solitária. Aliás, você também deve estar frágil e solitário. Tem certeza de que
está tudo bem com você e Sofia?
EDUARDO 2
Sem essa. Claro que está tudo bem. Você está sendo
preconceituoso. Elena ainda é bonita aos 60 anos. Olhei bem para as zonas xis
da questão. Ela deve ter levado uma boa vida para estar tão bem, ainda que
esteja solitária. Quem lhe garante que ela não tem suas aventuras?
EDUARDO 1
Agora você foi longe demais, e vulgar. Que negócio é esse
de olhar bem as zonas xis da questão? Não adiantou seu disfarce elegante, sua
figura de linguagem empobrecida. Elena é uma sexagenária, podia ser avó de seus
filhos. Podia ser sua mãe!
Elena veio para o Brasil com Umberto, pois ele fora
transferido para trabalhar numa empresa de produtos farmacêuticos em expansão
pelo mundo. Por pouco não foi para os Estados Unidos, e hoje Elena seria uma
nova-iorquina talvez ainda mais solitária.
Eles se instalaram nos trópicos e foram relativamente
felizes, ela me disse. Os negócios prosperaram, algum tempo depois veio o
filho, que acabou morrendo ainda jovem de um misterioso mal tropical. Esse foi
sem dúvida o ponto mais baixo da vida do casal no país. Mas eles deram a volta
por cima, cogitaram de adotar uma criança pobre, contudo chegaram à conclusão
de que a vida estava completa assim mesmo. Deixariam vazio o lugar do filho morto,
como uma espécie de tributo eterno.
Curiosamente, não havia emoção na exposição dos fatos por
Elena. Nem mesmo quando ela atingiu uma espécie de clímax, ao descrever a morte
súbita de Umberto. Ele morreu de um enfarte, sua família já perdera vários
membros com o mesmo problema. Elena voltou para a Itália, para Gênova.
Permaneceu algum tempo com os pais, mas algo no Brasil havia conquistado ela
para sempre. Então ela voltou para o país.
Elena não se fechou na viuvez. Uma italiana solta no
mundo, e tão bonita, não poderia mesmo ficar marcando passo. Ela foi à luta,
mas perdeu todos os rounds, pois nem mesmo a beleza pode amenizar as
dificuldades e os desatinos da vida. Permaneci sozinha, foi o que ela disse.
Eduardo fita o olhar de azul límpido de Elena e segura as
mãos dela. Ela o olha dentro dos olhos com uma ternura suave. A chuva já foi
embora, e um sol malemolente começa a acordar a contragosto. Era hora de ir embora,
mas Eduardo também queria ficar e agradecer de uma forma especial a Elena
Bonfaro.
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