(... e a decapitação de Ana Bolena)
Encontrei-me, por acaso, com Jonas
Ramalho, músico sem sucesso. Não gosta de ser chamado de músico fracassado. Conhecemo-nos
há alguns anos. Bebíamos além do permitido. Naquele tempo, “o bêbado com chapéu-côco,/ fazia irreverências mil/ pra noite do Brasil”. Eu me iniciava
na literatura (arranhava uns versos, inventava umas frases). Ele me corrigia:
este verbo não está bom aqui; este adjetivo deve ser varrido. Aparentava ser doutor
em quase tudo. E o governo? Se conseguir debelar a inflação... Dava de goleada
em mim, se falávamos de futebol. O time do Vasco valia uma seleção brasileira.
E citava nomes antigos: Barbosa, Bellini, Orlando, Sabará, Ademir, Vavá. Entendia
de mulheres: Está vendo aquela de saia verde?
Jonas ainda não compunha música, mas
tocava violão e bebia um bocado. Certamente em troca de uma hora de reprodução
de canções italianas, no pequeno palco de um bar. Tentava se parecer com Jimmy
Fontana: “Il mondo non si é fermato mai un
momento, la notte insegue sempre il giorno ed il giorno verrà!”
Depois de vinte anos sem nos vermos
(trocávamos carta, livro e disco, de ano em ano), convidou-me para uma conversa.
E me conduziu a um bar. Prometi-lhe duas cervejas, apenas. Precisava voltar cedo
para casa. Minha mulher me esperava para o jantar. Aniversário dela. Sorriu.
Você não gosta de aniversário?
Depois de sete cervejas, não tínhamos
falado de quase nada, a não ser de plágio. Ele fazia questão de explicar, o
todo tempo, o significado de tão usado vocábulo. Eu replicava: há diversos tipos
de plágio ou imitações. Ele se zangava: todos os plágios têm a mesma compleição;
só quem plagia é quem nada sabe criar. Deixei de usar o vocábulo plágio e
passei a empregar arremedo, contrafação, imitação, paródia, pastiche. Até
chegar ao conceito de intertextualidade. Além disso, não fosse o arremedo, nada
mais restaria fazer em arte. Os modelos são continuamente copiados e
modificados. Jonas se irritava, batia as mãos na tábua da mesa, derrubava
garrafas. Eu lhe pedia calma.
Resumirei o pensamento de meu velho amigo
músico: falsifica quem não sabe criar. Plagiar é se servir do modelo (forma), do
invólucro, para renovar o recheio. Assim, copiou quem, na sua forja, não soube
ser fiel a si mesmo e só conseguiu arremedar Os Lusíadas. Eu rebati: não é isto possível. Ninguém pode criar
outro monumento como aquele. É enganar-se, antes de querer engabelar os outros.
Além disso, se fulano é capaz de parodiar Os
Lusíadas, poderá também ter habilidade suficiente para erguer ou pintar catedral
igualmente bela. Talvez não se conclua com a qualidade daquele, mas não deixará
de ter grande valor. Nesse caso, apenas se aproximou da obra-modelo. Não seria assim
Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima?
É a tal imitação consciente. “A garupa da vaca era palustre e bela, /uma
penugem havia em seu queixo formoso; / e na fronte lunada onde ardia uma
estrela / pairava um pensamento em constante repouso”. Há ainda os copiadores
inocentes: nem sabem de onde vem o original. Lembram o homem à margem do
riacho, ignorante do caminho da água ou da nascente.
Jonas me acusava de imitador, plagiário,
copista. Íamos pela quarta garrafa. O garçom se impacientava. Terminaria aquilo
em briga, cabeças quebradas, prisão. E como custara arranjar aquele
empreguinho! Não deixei mais o músico revoltado abrir a boca. Se quisesse tocar
trombone, não tivesse vergonha. Se preferisse cantar, então se esgoelasse. Tomei
conta da palavra.
O meu caso é mais grave: não estudei
literatura, não tive orientação de ninguém, aprendi a ler nos contos da carochinha,
nas orações da Igreja Católica, nas missas, nos missais, na Bíblia, nos jornais
velhos, nos compêndios de História, nos gibis, nos panfletos, nas letras
(poemas) das canções antigas. Por isso, meus personagens são donzelas violadas
(Aída Cury), rainhas e reis decapitados (Ana Bolena), bandidos e mocinhos em
cenas de sangue na Avenida São João. Não estudei técnicas de versificação nem
regras de narração. Por isso, aqueles textos semelhantes a lições de História:
Henrique VIII e a decapitação de Ana Bolena. “As núpcias do arquiduque Filipe e da duquesa Isabel ensejaram dias e
dias de festa no castelo” (“Anedota medieval”, in Itinerário). Ou
notícias de jornal: fulano matou sicrano, “por ciúme ou por despeito”, e por
“achar-se com o direito de querer me humilhar”.
Nunca escrevi contos ou poemas, porque
não me ensinaram a fazê-lo. Doutrinaram-me e só aprendi a rezar, a decorar a
ave-maria, o pai-nosso, o ato de contrição. Ofereceram-me tragédias: “Disse um
campônio à sua amada / minha idolatrada, diga o que quer (...) // E ela disse
ao campônio a brincar / Se é verdade tua louca paixão / Parte já e pra mim vai
buscar / De tua mãe, inteiro o coração”. Ia das páginas escolares ao tempo dos
lobos e das princesas. Disse um lobo mau à menininha... “Perdoa-me, Senhora!...
Eu sei que morro... / É tarde! É muito tarde!...”
O bêbado ainda cantava canções esquecidas,
porém já não me reconhecia: “Quem é você que não sabe o que diz? / Meu deus do
céu, que palpite infeliz!” Eu o irava mais ainda e cantarolava: “Batuque é um
privilégio. / Ninguém aprende samba no colégio”.
Meu primeiro inominável plágio ocorreu
num dia de desamor e desespero. Minha amada, tão linda, tão olhos de morango,
tão boca de saudade, tão inquieta, tão cheia de si mesma ou de ninguém, sumiu
de minha rua, de minha escola, desapareceu de mim. “A flor do meu bairro tinha
o lirismo da Lua”. Em estado de catalepsia, corri os campos e cheguei à beira
do caminho. Porém, no meio do caminho tinha uma pedra. Tropecei e caí. Sucumbi
à borda de um abismo. E o mirei, assustado. Havia um livro aberto entre o pavor
e o silêncio. Sosseguei, abaixei-me. E estava escrito: “Vês! Ninguém assistiu
ao formidável / Enterro de tua última quimera. / Somente a Ingratidão — esta pantera — / Foi tua companheira inseparável!”
No decorrer dos anos, outros amores me
arrebataram. E outras narrativas em prosa ou verso. Notícias de morte,
ladainhas, músicas antigas, livros há muito esgotados. E também orações: “Deus meus, ex toto corde paenitet me omnium
meorum peccatorum”. Arremedei-os
um a um. Até me sentir o mais perseverante plagiador. Agora, prestes a voar
para o infinito, copio a mim mesmo. Parodio a dor de ser, a terrível sensação
de me saber perdido, tão achado me sinto.
Fortaleza, 2/16 de maio de 2013.
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