PAINEL COMPLETO
O livro “Lampião e o
Estado-Maior do Cangaço”, de autoria dos pesquisadores Hilário Lucetti e
Magérbio de Lucena, publicado em segunda edição, revista e ampliada (Gráfica
Encaixe – Ceará – 2004 – 380 págs.), é o mais completo painel que conheço sobre
o assunto, descrevendo com precisão as atrocidades dos bandos de cangaceiros
que fervilhavam no Nordeste desde as últimas décadas do Século XIX até os anos
40 do Século XX, mostrando o ambiente sócio-econômico e político que permitiu o
exercício dessa forma de banditismo ao longo de tantos anos e descendo a
minúcias biográficas de cada um dos mais importantes atores de uma atividade
tão desumana quanto trágica. Baseado em longas e minuciosas pesquisas,
incluindo investigações in loco e entrevistas com
numerosos personagens, sem faltar o mergulho em incontáveis coleções de jornais
e na melhor bibliografia disponível, é um trabalho sério e confiável, merecedor
de algumas observações, escolhidas dentre as muitas que ensejaria. Embora se
trate de ensaio de cunho histórico, contém passagens antológicas, a exemplo da
retirada do bando de Lampião para Pernambuco, após o malogro do assalto a
Mossoró, cruzando três Estados, viajando quase só à noite e nas altas
madrugadas, varando as mais ásperas caatingas da região e realizando saques
sempre que a oportunidade se apresentava. Façanha que poderia inspirar
excelente novela literária, assim como o livro, no conjunto, forneceria matéria
para um belo romance
O QUE É CANGAÇO
.A palavra cangaço,
segunda consta, deriva do fato de que os bandoleiros transportavam sempre,
junto ao corpo, todos seus pertences. Entregues ao nomadismo, sem paragem
certa, levavam em embornais cujas alças se cruzavam no peito e nas costas os
objetos miúdos e de valor, tais como jóias, dinheiro, moedas, papéis etc.
Feitos de tecidos fortes, os embornais ficavam estufados com o conteúdo,
implicando, com certeza, em considerável peso. Observando-se as fotografias em
que os cangaceiros posavam com esses embornais, fica a impressão de que eles
exteriorizavam a riqueza: quanto mais estufados, mais rico seria o seu
portador. Por outro lado, lembravam uma canga, daí surgindo a denominação cangaço
e todos seus derivados. Aqui no Sul os embornais seriam chamados de bocós.
APOIO POPULAR: COITOS E
COITEIROS
A sobrevivência do
cangaço, por outro lado, encontra explicação ou, pelo menos, uma delas, na
circunstância de que contava com o apoio das populações rurais das regiões onde
se desenrolava. Os cangaceiros famosos acabavam se tornando figuras admiradas
pelo povo miúdo, a cujos olhos muitos deles apareciam como justiceiros que
afrontavam um Estado injusto e incompetente, responsável pela miséria reinante
e pelas gritantes desigualdades econômicas e sociais. Os cangaceiros, por sua
vez, buscavam com empenho criar vasta rede de relacionamentos com pessoas
poderosas, em cujo meio se encontravam os grandes coiteiros (*), e com
o povo em geral, de cujo seio saíra a maioria deles. Graças a isso, obtinham
apoio nos momentos cruciais, bem como a indispensável ajuda na aquisição
daquilo de que necessitavam. Muitos coiteiros, vivendo isolados num meio rude,
não tinham como se negar à ajuda, sob pena de sofrerem represálias. Nenhum
movimento revolucionário, nem mesmo na forma arcaica do cangaço, consegue se
manter e vingar sem a simpatia e o apoio popular. Essa condição foi sempre
ressaltada pelos revolucionários, inclusive no Brasil. “A gente humilde das
caatingas ainda tinha Lampião como um homem honrado, respeitador e bom para os
pobres... O povo era aliado de Lampião” – palavras de um ex-coiteiro em
depoimento aos autores (pág. 316).
SURGIMENTO E TÉCNICAS
O surgimento do cangaço
se explica com facilidade. Voltado para o litoral, onde se acumulava o grosso
da população, o Estado brasileiro pouco se importava com o hinterland, e isso
acontecia em todas as regiões do país. Entregue à própria sorte, o interior se
transformava em território livre para as investidas de aventureiros de todos os
tipos. Inteligentes como eram, não tardaram a intuir da necessidade de se juntarem
em bandos organizados, com regras, chefias definidas, subgrupos, estratégias e
táticas próprias. Passavam de simples arruaceiros a profissionais
especializados. A guerra móvel, similar às guerrilhas, as emboscadas, os
ataques pelos flancos e pela retaguarda, os truques para furar cercos e
despistar os rastros, unidos ao perfeito conhecimento do palco de ação, tudo
isso deixava aparvalhadas as forças policiais, muitas vezes despreparadas para
o combate, quando não mais interessadas nos lucros obtidos com a “indústria do
cangaço”. A divisão em subgrupos, desfechando ataques simultâneos em lugares
diferentes, dava-lhes a aura de ubiqüidade e contribuía para o surgimento das
lendas que cercavam os bandos chefiados pelos grandes nomes do cangaço. O medo que
provocavam nas pessoas pacíficas facilitava suas tropelias. “Ninguém ignorava o
pavor que causava por toda parte a presença de Lampião. Em geral, quem tinha a
infelicidade de se encontrar com semelhante fera procurava o melhor meio de bem
tratá-lo” – escrevem os ensaístas (pág. 225). Daí a razão pela qual foram
tantas vezes recebidos com festas, banquetes e rapapés em inúmeros lugares,
passeando com liberdade pelas cidades, organizando bailes e comilanças (**).
NEOCANGACEIROS
O ingresso no cangaço,
uma vez consumado, quase sempre se tornava irreversível. Desde então a família
do neocangaceiro não tinha mais sossego. Os motivos para entrar nesse “mundo da
espingarda” variavam, embora os mais constantes fossem a prática de crimes que
geravam inimizades e perseguições, não deixando ao infeliz outra saída. Muitos
se iniciavam por pura e simples vocação, aspirando a uma vida superior à
miséria em que vegetavam. A admiração pelos cangaceiros famosos, seus trajes
vistosos, sua postura exibicionista e arrogante de seres que estavam acima do
bem e do mal influíam na decisão, em especial de jovens, muitos dos quais se
iniciaram cedo nas lides do banditismo. Após o ingresso, depois do batismo de
fogo, recebiam um apelido, e o senso moral aos poucos se embotava, tornando-os
capazes das mais frias atrocidades. Atrás dessas alcunhas muitos deles se
anulavam como personalidades, apagando para sempre o passado. A consciência
aguda de que o caminho trilhado não tinha volta parecia aumentar sua sede de
sangue e a ganância pela riqueza em forma de ouro, jóias e dinheiro que
pudessem transportar. Tudo indica que não confiavam em ninguém para depositário
de seus teres.
APAGANDO O PASSADO: A ALCUNHA
A maioria dos
cangaceiros recebia ou adotava uma alcunha, quase sempre relacionada com suas
características pessoais, habilidades ou fatos biográficos e que serviam como
luva. O apelido, apagando o verdadeiro nome, contribuía para despistar inimigos
e perseguidores. Alguns, no entanto, lutavam bradando o próprio nome aos quatro
ventos, desafiando o mundo e arrotando valentia. Poucos continuavam a ser
conhecidos pelos próprios nomes. Entre os numerosos apelidos referidos no
livro, anotei os seguintes: Bom Deveras, Jararaca. Pai Véio, Zé Sereno, Gavião,
Corisco, Manoel Toalha, Moderno, Cajueiro, Fortaleza, Gato, Umbuzeiro,
Colchete, Jurema, Tempestade, Azulão, Musquêro, Caracol. Tempero, Chico
Chicote, Bronzeado, Casca Grossa, Mormaço, João Cocó, Pinga Fogo, Mergulhão,
Chumbinho, Mão Foveira, Navieiro, Volta Seca etc. O apelido de Lampião se devia
à rapidez com que atirava, dando a impressão de um lampião que se acendia.
É interessante anotar
que, apesar das brutais condições em que viviam, muitos cangaceiros tiveram
“carreiras” mais longas que os gangsters norte-americanos em
geral, como Dillinger, Pierpont, Bonnie e Clide etc., cuja sobrevivência em
atividade foi de poucos anos, acabando presos ou mortos. Vários cangaceiros
famosos permaneceram em ação por anos a fio e alguns até se “aposentaram”,
retirando-se para lugares distantes, em Goiás, Minas Gerais, no Maranhão, em São Paulo e até no Sul
do país, como Antônio Massilon Leite, que, segundo uma versão, teria migrado
para o Rio Grande do Sul. Na nova querência mudavam de vida, desaparecendo no anonimato.
LEIS RÍGIDAS E IMPLACÁVEIS – DESTINO DAS
VIÚVAS
O mundo cangaceiro tinha
suas leis, rígidas e implacáveis. Assim, por exemplo, a humilhação, por mínima
que fosse, exigia vingança, e ela acabava acontecendo, mais cedo ou mais tarde.
O mesmo se diga das traições, fossem das mulheres aos companheiros ou de
coiteiros, amigos ou conhecidos. A vindita viria, infalível e brutal. Lampião
desaprovava as costumeiras surras em homens desarmados. “Não é vantagem para um
homem; vantagem para um homem é falar alto para outro homem armado!” – pregava
ele (pág. 204). Existia ainda o “padre-nosso de Lampião”, ensinado quando o
novato entrava no bando: desrespeito a moça de família amiga se punia com a
morte, como aconteceu com o cangaceiro Sabiá (pág. 329). Algumas regras, no
entanto, poderiam ser mais elásticas, dependendo das necessidades e
circunstâncias.
As mulheres que viviam
no bando, cujos maridos ou companheiros morriam em combate deveriam ser
sacrificadas para “queima de arquivo”, prática que se repetiu com mais
frequência nos últimos tempos. No início algumas “viúvas” foram devolvidas às
famílias. Depois, avaliando o perigo que constituiria a queda delas em mãos
policiais, foram eliminadas sem piedade. Conhecedoras das minúcias da vida do
bando, elas o deixariam em permanente risco. Mediante tortura, com certeza tudo
revelariam. Narram os autores algumas execuções dessas infelizes. Durante muito
tempo foi vetada a presença de mulheres nos bandos.
MEDICINA
SERTANEJA
Para os casos de doenças
e ferimentos os cangaceiros dominavam ampla “medicina sertaneja”. Conheciam as
propriedades de ervas e os efeitos de seus chás e todo um instrumental rústico
de cuidados para estancar hemorragias, evitar infecções, combater a dor e debelar
outros males. “A medicina cangaceira era a mesma do imenso sertão ao redor:
chás que serviam para tudo, garrafadas, emplastros, pimenta e sal soprados nos
ferimentos com canudos de mamoeiro, balas extraídas a ferro quente, remédios da
homeopatia primitiva, encontradiços nas boticas dos lugarejos, rezadeiras,
dentistas autodidatas, cachimbeiras, quando o menino não queria nascer” – dizem
os autores (pág. 39). Alguns cangaceiros se destacaram como competentes
“médicos”. Em casos de maior gravidade, parece que sempre surgia um meio de ser
examinado por médicos de verdade.
LAMPIÃO ENTRA EM
CENA
Foi nesse meio
fervilhante de cangaceiros que a figura de Lampião se impôs, entrando em cena
para reinar durante 22 anos de “carreira”. Quando o célebre Sinhô Pereira,
cangaceiro temido, decidiu mudar de vida, seu sucessor natural, reconhecido a una
voce, foi Lampião, já integrante do bando e então com 25 anos de
idade. A estreia do novo chefe ocorria em 1922, ano emblemático da história nacional,
e ele logo se destacaria pela inteligência, liderança inconteste, frieza e
crueldade.
Virgulino Ferreira da
Silva, o Lampião, nasceu em Serra Talhada (PE), em 7 de julho de 1897.
Segundo a lenda, teria ingressado no cangaço para vingar a morte do pai, embora
a verdade histórica revele o oposto, como mostram os ensaístas. Na realidade, o
pai foi morto depois da entrada do filho no cangaço e justamente por esse
motivo. A lenda, porém, se disseminou de tal forma que ainda hoje corre solta.
Mais de 500 cangaceiros das mais variadas procedências, formações e
temperamentos serviram sob seu comando ao longo desses anos. Com rara
habilidade, conseguiu formar uma rede de “coiteiros” e “coronéis de barranco”
que o apoiava de forma decisiva, fornecendo armas e munições em quantidade,
além de mantimentos e proteção. Entre eles estava o célebre “coronel” Zé
Pereira (Lima), chefe político de Princesa Isabel (PB) e que declarou a
“independência” de seu município, instituindo a República de Princesa, de breve
duração mas de repercussão nacional. Sobre ela o jornalista Joaquim Inojosa
publicou um livro onde informava de sua participação no movimento sedicioso. A
ligação de Lampião com Zé Pereira, no entanto, não se prolongou por muito tempo
e se transformaram em inimigos rancorosos (***).
O CAPITÃO VIRGULINO
Em 1926 Lampião e seu
grupo foram convidados a visitar Juazeiro do Norte, ocasião em que ele recebeu
a patente de capitão e membros do bando receberam patentes de graduação
inferior. Foram armados e municiados, passando a integrar os chamados
“Batalhões Patrióticos” que deveriam combater a Coluna Prestes, embora Lampião
nunca se defrontasse com a mesma. Numa atitude de incrível insensibilidade e
reacionarismo, as autoridades preferiram se colocar ao lado dos maiores
facínoras do sertão e contra os jovens idealistas que realizavam uma empreitada
épica pela melhoria de nossos costumes político-administrativos. É verdade que
esse ato custou caro, muito caro, tanto que os cangaceiros, agora armados até
os dentes, com farta munição e armas modernas, se tornariam invencíveis, e o
Padre Cícero Romão Batista morreu jurando não ser o autor da infeliz
iniciativa, fato que tem provocado o gasto de muita tinta, sem uma conclusão
definitiva. Para os ensaístas, no entanto, estão fora de dúvida a participação
do “Padim” no episódio e sua bênção aos novéis “oficiais”.
No correr dos anos,
entre vitórias e derrotas, Lampião perdeu os três irmãos cangaceiros – Antônio,
Livino e Ezequiel. Foi em geral bem sucedido, ainda que tenha ficado manco em
virtude de ferimento na perna direita. Entre seus ataques, na maioria
positivos, sobressaiu-se um fracasso: a invasão de Mossoró (RN), maior cidade
sertaneja da região, de onde se retirou para Pernambuco, cruzando três Estados
e varando o mais árido da caatinga, perseguido por centenas de policiais de
vários Estados. O malogro deixou profunda marca em sua alma de homem vaidoso e
preocupado com a própria imagem. É verdade que ele realizou esse ataque à
cidade potiguar algo contrariado. Suas incursões em regra visavam cidades onde
apenas uma torre de igreja apontava para o céu, ao passo que Mossoró possuía
quatro... As táticas de guerrilha, a chamada guerra móvel, os ataques pela
retaguarda e pelos flancos, a divisão em subgrupos, o despiste dos rastros, o
perfeito conhecimento da região, a surpresa, as falsas fugas, os contra-ataques
fulminantes, os informantes e a infiltração de “olheiros”, aliados à coragem
sobre-humana e ao terror que provocavam permitiram carreira tão bem sucedida e
longa.
PREMONIÇÃO DO FIM
Arguto como foi, Lampião
pressentia que o progresso selaria o fim do cangaço. Transformou-se, por isso,
em inimigo das estradas através das quais chegariam caminhões transportando
numerosos “macacos” bem armados. Sempre que possível, procurava atrapalhar a
construção de rodovias, amedrontando os trabalhadores e praticando violências
contra alguns.
MARCA PESSOAL: CANGAÇO SEM ÉTICA
Lampião imprimiu marca
pessoal no cangaço. Segundo os autores, com ele “muita coisa mudou no modus
vivendi dos cangaceiros. Os punhais enormes, as bandoleiras
enfeitadas com libras esterlinas, os chapéus enormes, ornados com estrelas e
signo de Salomão, os dedos cheios de anéis, apurado gosto na confecção de
luvas, lenços e embornais, vidros de perfumes baratos que eram usados em
profusão para afastar o odor do suor e para agradar as mulheres que eram
mimadas como princesas. Tudo isso trazia um pouco da marca pessoal de Lampião
que não era um gênio somente no campo de batalha” (págs. 39/40). Tocava
harmônica, realizava trabalhos em couro e “era metido a poeta”. Os cangaceiros
foram exímios costureiros, atividade que exerciam com naturalidade.
Segundo os ensaístas,
foi Lampião o iniciador da fase do “cangaço sem ética.” No seu reinado,
dependendo da situação, valia tudo, inclusive o assassinato de mulheres, velhos
e crianças, sequestros, extorsões, torturas, castrações, estupros, saques e
destruição de propriedades alheias. E de fato, os episódios relatados ao longo
do livro, todos confirmados, são de arrepiar os cabelos. “Conotações de
heroísmo”, “injustiça social” e a idéia de um “Robin Hood caboclo, que tirava
dos ricos para dar aos pobres”, não passam de lendas sem base histórica –
afirmam os autores (pág. 186). Pelo contrário, como rolo compressor, Lampião
passava sobre tudo que se opusesse aos seus desejos.
A GROTA DO ANGICO E A TRAGÉDIA FINAL
Lampião foi morto na
manhã do dia 28 de julho de 1938, na Grota do Angico (SE), aos 41 anos de idade.
Nos últimos tempos, cercado e atacado por todos os lados, agia mais como
“empresário do crime” que na linha de frente. O depoimento de Manoel Félix,
último coiteiro, deixa a impressão de que o Rei do Cangaço estava cansado,
descuidando da segurança e confiante em demasia. No local onde morreu só havia
uma saída, circunstância que não aconselharia a permanência, ainda mais diante
do alerta de outros cangaceiros sobre detalhe tão importante. Mas Lampião
parecia ter baixado a guarda, atitude que lhe foi fatal, marcando a partida
para o dia seguinte. Foi tarde demais.
Sua morte ecoou na
caatinga e os sertanejos em geral não podiam crer que um “homem como aquele
pudesse morrer assim” (pág. 363). Decorridos tantos anos de sua morte, a figura
do Rei do Cangaço ainda intriga e fascina. Os artigos que tenho escrito a
respeito provocam bastante interesse.
A SECA DO JOÃO MIGUEL
Em 1931, acuado por
Getúlio Vargas para dar fim ao cangaço, o interventor Juracy Magalhães urdiu um
plano tão inacreditável quanto desumano: esvaziar os sertões, obrigando a
população a migrar para as cidades, onde foi engrossar as favelas periféricas.
As famílias foram instadas a apanhar o que pudessem, deixando tudo mais ao
deus-dará. Esse plano insólito ficou conhecido como “seca do João Miguel”,
recebendo o nome do oficial encarregado de sua execução. Entre dez e quinze mil
sertanejos foram coagidos a abandonar terras, casas, roças e criações,
transferindo-se para as cidades, onde muitos sobreviviam de esmolas. Imaginavam
os mentores de tão estapafúrdio plano que esvaziando as caatingas, o cangaço
morreria por ausência de apoio, mas o resultado foi o oposto: os sertanejos
pobres voltaram miseráveis e o cangaço se banqueteou em liberdade com tudo que
foi deixado (págs. 34 e 321).
O BANDO E O ESTADO-MAIOR
O estado-maior de
Lampião sofreu inúmeras alterações. Muitos de seus integrantes ingressaram,
saíram e retornaram; outros pertenceram a gerações diferentes, nem sempre se
conheceram ou foram contemporâneos. Apesar dessas dificuldades, os autores
rastrearam toda a história de Lampião e levantaram as biografias dos mais
importantes. Em forma sintética, anotamos a seguir os elementos essenciais de
cada um deles:
Antônio Ferreira
(1895/1926). Irmão mais velho de Lampião. Homem sisudo, não ria e nem sequer
sorria. Autêntica víbora. Morreu por acidente, numa brincadeira – um “sucesso”,
na linguagem do cangaço.
Livino Ferreira, vulgo Vassoura (1896/1925). Também irmão do
Rei do Cangaço. Tagarela e extrovertido, foi um indivíduo bruto e áspero no
trato. Corajoso ao extremo, levava uma faca nos dentes na hora do ataque.
Antônio Matilde. Irmão
bastardo do pai de Lampião. Esteve afastado do grupo e morreu em 1927.
Antônio Rosa, vulgo Antônio do Gelo (1897/1924). Alagoano.
Valente e vaidoso. Foi morto pelas costas por Livino e Enéas.
Antônio Augusto Correia,
vulgo Meia-Noite ou Bagaço. Alagoano. Valente e mau ao
extremo, matou quando ainda era menino, Virou inimigo de Lampião. Morreu traído
por um coiteiro.
Horácio Novaes, vulgo Horácio Grande (1891/ ? ). Misto de
cangaceiro e policial; ora um, ora outro. Desapareceu para sempre sem deixar
vestígios.
Sabino ou Sabino das Abóboras. Lugar-tenente de
Lampião. Homem corajoso, violento e cruel ao extremo. Atarracado e feio, nada
temia e praticou “um rosário de crimes.” Ferido, foi morto a seu próprio pedido
e a sangue-frio, pelo cangaceiro Marguião (pág. 105).
Cícero Costa (de Lacerda
– ? – 1924). Paraibano. Figura curiosa, de nível superior ao bando. Destemido e
feroz na luta, matava com facilidade, embora se recusando a torturar, roubar e
maltratar mulheres, idosos e crianças. Simpático, conquistava as pessoas com
facilidade. Foi o “médico” do grupo, conhecendo os tratamentos e a farmacopéia
do sertão. Parece que não foi sepultado, ficando seu corpo ao relento.
Os irmãos Marinheiros. Pernambucanos. Foram
quatro, de gerações diferentes: Cassiano, José, André e Antônio. Os dois
últimos abraçaram o cangaço a pretexto de vingar o assassinato dos irmãos.
Entregavam-se à extorsão, ao rapto de moças e às ameaças. Fugiram para o
Maranhão e desapareceram. “Nos sertões pernambucanos – ensinam os autores –
diz-se marinheiro aquele cuja aparência física lembra os invasores holandeses
que vieram pelo mar. Estatura elevada, cor branca, cabelos loiros, olhos azuis,
características comuns a esses quatro irmãos bandoleiros” (pág. 137).
Mariano (Laurindo Granja
– 1898/1937). Pernambucano. Fiel a Lampião, acompanhou-o tanto nos tempos bons
como nos maus. Alegre, risonho, tocador de gaita. Não cometia atrocidades
desnecessárias. Valente até o fim, morreu baleado e esfaqueado múltiplas vezes.
Os Marcelinos. Também irmãos: Manoel (Bom Deveras), João (Vinte e Dois), Raimundo (Lua Branca) e José, este último ladrão
contumaz, fugiu para São Paulo. Cruzavam a Chapada do Araripe para o Ceará e
Pernambuco, sempre acoitados por gente graúda. Vinte e Dois foi morto pela polícia e Lua Branca ferido e preso na mesma ocasião, assim como Manoel
Toalha e Pedro Miranda, ambos do
bando chefiado pelo primeiro. Também foram presos Joaquim e João Gomes, primos,
acusados de coiteiros. No dia 5 de janeiro de 1928 os cinco foram levados ao
lugar Alto do Leitão e sumariamente executados, depois de cavarem as próprias
sepulturas (pág. 171).
Virgínio Fortunato da Silva (Moderno –
1903/1936). Cunhado de Lampião,
nascido no Rio Grande do Norte. Educado, comedido, pouco falante. Foi o
“capador oficial” do bando.
Ezequiel Ferreira (Ponto
Fino – 1908/1931). Irmão mais jovem de
Lampião, morreu aos 23 anos de idade. Criou-se na malandragem de rua de
Juazeiro do Norte (CE) e idolatrava o irmão, de quem foi a própria sombra.
Tinha excelente pontaria e não foi sanguinário.
José Zeferino Andrelino
dos Santos (Oliveira ou Alagoano – 1912 – ? ).
Pernambucano. Cangaceiro-mirim, entrou no bando aos 14 anos, sendo considerado
uma espécie de filho por Lampião. Muito malvado na juventude, ficou famoso
pelas crueldades praticadas. Deixou o bando em 1928 e cumpriu pena de prisão.
Em 1984 ainda vivia, quando foi entrevistado pelos autores, descrevendo o
ambiente do cangaço e as chegadas do bando nas cidades daquela época.
Participou da frustrada invasão de Mossoró (págs. 196 e 198).
Antônio Massilon Leite (Benevides). Nascido no Rio Grande do
Norte, fôra pistoleiro profissional e já teria chegado ao Ceará com 26 mortes
nas costas. Atirador exímio, dizem que foi um cangaceiro sofisticado, usando
bússola na caatinga, andava sempre bem trajado e sabia dirigir veículos. Um dos
idealizadores do assalto a Mossoró, dele participou, no dia 13 de junho de
1927, quarta-feira, por volta das 16:00h. Repelido pela população enfurecida, o
bando se retirou para o Pajeú, numa marcha inacreditável através da caatinga.
No ataque morreu o cangaceiro Colchete, e Jararaca, ferido, foi preso e consta
que teria sido sepultado vivo. Deixando o bando, conforme uma versão, Massilon
se entregou a assaltar fazendas e parece que foi bem sucedido. Com o dinheiro,
fugiu para o Rio Grande do Sul, onde teria mudado de nome e ingressado na
polícia, chegando a oficial. Nos anos 50 foi visto no Nordeste, bem trajado e
elegante, num caminhão novo, de sua propriedade, com motorista particular.
Visitava parentes e amigos no Ceará e dizia residir em algum recanto do Brasil
Central (págs. 110 e 235). Segundo outra versão, teria fugido para o Maranhão,
onde acabou morto no Sítio Granjeiro, distrito de Caxias, em março de 1928.
“Com o nome de Floriano, foi assassinado por um Vicente, negro, seu amigo, por
uma brincadeira, dizendo cada um que tinha o corpo fechado” (Do livro
“Massilon”, de Honório de Medeiros, Natal, pág. 104). Já o escritor e jurista
Manoel Onofre Jr., também de Natal, informa que um pesquisador obteve uma
certidão de óbito confirmando o falecimento de Massilon que, portanto, não
poderia ter visitado o Nordeste nos anos 1950. Lucetti, no entanto, afirmava
que teve contato com pessoas que viram o cangaceiro nessa visita.
José Leite de Santana (Jararaca – 1901/1927). Nascido em
Buíque (PE), foi soldado da polícia e do exército, tendo andado pelo Sul e
participado da Revolução Paulista. Voltando à terra natal, formou o primeiro
grupo e iniciou a “carreira”. Foi ferido e preso no assalto a Mossoró, onde
acabou executado.
Antônio Francisco ou
Antônio Inácio da Silva (Moreno –
1909/2010). Pernambucano. Irmão
de um dos matadores de Delmiro Gouveia. Em 1938, ao saber da morte de Lampião,
teria fugido para o Maranhão e nunca mais se soube dele. Na verdade, segundo se
soube mais tarde, evadira-se para Minas Gerais, onde faleceu em 7 de setembro
de 2010, em Belo Horizonte.
Estava viúvo de Durvalina (Durvinha) há dois anos e usava o
nome de José Antônio Souto. Tinha grande receio de ser decapitado após a morte,
como aconteceu com tantos de seus companheiros (“Folha de S. Paulo”, 9 de
setembro de 2010, Pág. C 3). Segundo o escritor mineiro Manoel Hygino, Moreno
andava com problemas de saúde e havia sido internado no hospital onde ele
trabalha.
Cristino Gomes da Silva
Cleto (Corisco ou Diabo Louro – 1907/1940). Muito
famoso, foi o derradeiro dos grandes chefes. Virou verdadeiro carrasco, embora
às vezes revelasse um lado bom. Em virtude de ferimentos, ficou aleijado de
ambos os braços, incapacitado para o manejo de armas longas. Nunca se entregou.
Segundo depoimentos, bebia muito nos últimos anos e foi dominado pela mulher,
Dadá, autoritária e valente, que na prática chefiou o bando em sua derradeira
fase. A morte de Corisco é apontada pelos historiadores como o termo final das
atividades cangaceiras.
Os Engrácias. Família
baiana, teve vários membros envolvidos no cangaço. Foram eles:
Antônio de Engrácia
(1897/1930). Cangaceiro garboso, rival de Lampião, foi assassinado pelo próprio
irmão, Cirilo. Era considerado um dos dez maiores cangaceiros existentes.
Cirilo de Engrácia (Véio Cirilo – 1890/1935). Com o
assassinato do irmão, ficou marcado para sempre. O crime foi escondido pelo
bando por muito tempo.
Manoel Moreno (Bentevi – 1905/1937). Sobrinho de
Antônio e Cirilo. Preguiçoso e covarde, gostava de perfumes, danças e mulheres.
Um bon vivant das caatingas.
Aleixo, vulgo Zé Baiano (? – 1936). Sobrinho de
Antônio e Cirilo. Indivíduo perverso, sádico e tarado, estuprador sistemático.
Marcava as pessoas a ferro e usava uma palmatória a que chamava “Boneca de laço
e nó”, com a qual aplicava “bolos” nas mãos das pessoas.
José Ribeiro Filho (Zé Sereno – 1913/1981). Sobrinho de
Antônio e Cirilo. Esteve com Lampião em Angicos. Conseguiu escapar ao massacre
e fugiu para São Paulo, onde viveu recolhido, quieto e até respeitado pelos
conhecidos.
Esses foram os Engrácias, célebres e temidos.
Mariano Barbosa da Silva
(Azulão – 1911/1933).
Baiano. Foi o terceiro com a mesma alcunha, mas não o último. Decepada, sua
cabeça foi levada para o Instituto Nina Rodrigues, em Salvador (BA).
Ângelo Roque da Costa (Labareda ou Anjo Roque – 1899 – ?). Pernambucano.
Entregou-se à polícia e ainda viveu muitos anos.
Luiz Pedro (Cordeiro –
c. 1910/1938). Permaneceu cerca de quinze anos com Lampião. Em acidente, matou
Antônio Ferreira, irmão do Rei do Cangaço, mas foi perdoado por este,
reconhecendo que fôra um “sucesso”. Fiel extremado ao chefe, morreu com ele em
Angicos.
FIGURAS SINGULARES
Resta uma palavra sobre
três personagens envolvidos com o cangaço e que ficaram na história. O primeiro
foi o Padre José Furtado de Lacerda, mais conhecido como Padre Lacerda, da Vila
do Coité. Segundo os autores, ele “achava que a vontade de Deus vez por outra
precisava da ajuda das armas para ser cumprida. Muito valente, andava sempre
armado e cercado de homens de sua confiança” (pág. 124). Chegou a ser atacado
por bandos de cangaceiros, travando-se violentos tiroteios que deixaram sua
casa perfurada pelas balas. Antônio Teixeira Leite (Antônio da Piçarra – 1855 – ? ). Foi o mais conhecido coiteiro de
Lampião no Cariri Cearense. Vivendo isolado em meio à caatinga, esse fazendeiro
alegava que não teria como negar ajuda ao cangaceiro sob pena de implacáveis
represálias. Entrevistado pelos autores, muito colaborou com eles. Odilon Flor,
o Nazareno (nascido em Nazaré, hoje
Carqueja), perseguidor implacável de Lampião e colaborador de quantos
procuraram o cangaceiro, morreu frustrado pela ausência de reconhecimento de
seu trabalho e pela traição da “volante” que eliminou o Rei do Cangaço (págs.
358/359).
COMPARAÇÃO IMPRÓPRIA
Por fim, uma palavra a
respeito da confusão que tantas é feita entre Cangaço, Canudos e
Contestado. Embora fossem revoluções populares arcaicas, denunciando
estruturas injustas e omissão de qualquer assistência, Canudos e o Contestado
foram movimentos messiânicos, características que o Cangaço não teve. Embora
este último, em certa fase, contasse com o apoio do Padre Cícero Romão Batista
ao grupo de Lampião, apenas isso não lhe confere índole religiosa ou mística.
Foi o Cangaço uma espécie de banditismo organizado sem similar no país ou no
mundo. Mas os três acontecimentos espelhavam o mal-estar social diante da
miséria, da injustiça, do abandono e da incompreensão. Contasse o país com
governantes mais sensíveis e todos eles, com seus horrores, poderiam ter sido
evitados. Acabaram ficando como manchas indeléveis de nossa civilização.
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(*)
Segundo os dicionaristas, coiteiro é o indivíduo que dá asilo a bandidos ou os
protege. Coito é o local onde se escondem.
(**)
Em um de seus romances memorialistas, o escritor piauiense J. P. de Lima Cordão
relata a tranquilidade com que o cangaceiro Antônio Silvino passou vários dias
numa pequena vila, revelando sentir-se em casa, com total segurança. O
aparecimento repentino do cangaceiro, um dos “donos do sertão”, provocava medo
e curiosidade. Labioso e vestido de forma aparatosa, destoante da pobreza
geral, sua presença agitou a vila nos quatro dias em que lá esteve. Após sua
partida, sobreveio o receio da “volante” que poderia estar no seu encalço. Elas
podiam ser tão violentas quanto os cangaceiros (“Muquém”, Edição do Autor –
Teresina – 1996). Analisei esse livro em “Fazer o Piauí”, B. Camboriú, Editora
Minarete, 2000.
(***) “República de
Princesa – José Pereira x João Pessoa”, de Joaquim Inojosa, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira/MEC, 1980; “A Revolta de Princesa – Poder Privado x
Poder Instituído”, de Inês Caminha L. Rodrigues, S. Paulo, Editora Brasiliense,
1981; “Presença de Inojosa”, de Enéas Athanázio, ensaios, Blumenau, Fundação
Casa Dr. Blumenau/Gráfica 43, 1985.
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