Porra
de tanta luz! Lasqueira de sol! É gente
espiando como se de bronze fosse... bronze nada! Concreto enlodado. Imagem de
fuligem e merda branca. No entanto está ali, necessariamente ao sol, com a
prata a invadir-lhe todos os poros, a gritar sua figura incandescente ao pingo
das duas.
Desde
o dia que viu um cara lá das bandas do Rio Grande posando na Praça do Ferreira
achou o máximo. Esteve o seu artista enquadrado num daqueles pórticos de aço.
Um cangaceiro pós-moderno entre colunas de vermelho chinês! Tão logo se juntou a dezenas de outros olhos
passou a espreitar aquela figura imune às galhofas da cearensada.
Tratou
de capturar o mínimo detalhe. Inclusive nunca soube que estátua suasse até
aquele dia e... com o calor parecia atrair a molecada que, feito mosquito,
enxameava o corpo do infeliz xeretando os badulaques do figurino. Inerte o
artista continuou. Homem de aço.
No
completo arco do sol deu pra esquadrinhar a escultura de carne, deu para
capturar a economia muscular do sujeito de forma tal que não mais precisasse
reencontrá-lo.
Que
aquilo dava certo, dava. A julgar pelo apurado! O problema seria a fantasia.
Depois de meticulosos cálculos arranjou camisa, calça e sapato. Tão surrados que bem poderiam ter saído de
uma cova rasa. A gravata foi negociada com um vendedor de semáforo. O sujeito
só queria vendê-la no pacote. Verdadeiro imbróglio, uma vez que só liberava o
acessório com o Judas a tiracolo. Por fim os óculos espelhados surrupiou na
calçada da General Sampaio, no roldão da turbamulta.
Ao
final compusera o personagem. Banal, mas um personagem, posto que nunca fora de
mostrar-se de terno, muito menos engravatado.
O
fato é que ainda lhe faltava o principal. Justo a prata que era o chamariz! Ou
de que adiantaria ficar feito dois de paus a posar no meio do tempo sem a tal
pasta? Decerto chamariam o pessoal da Messejana para levá-lo.
Rodou
por farmácias e armarinhos do Centro sem conseguir o tal elixir da notoriedade.
Já estava para desistir quando percebeu o som de metal cortado. Colocou a
cabeçorra pra dentro de uma porta de enrolar, dessas que se espremem pelos
quarteirões da São Paulo. No interior, varas e mais varas de alumínio
enfeixadas. Quase ao pé da porta, o esmeril jateava fogo sobre o chão enquanto
a poeira de prata acumulava no pé da máquina. Finalmente!
A
primeira semana pareceu-lhe promissora. Apurou quase duzentos e cinquenta paus.
Havia por fim encontrado o quê e como fazer. Autodecretou que seus dias de
cafezeiro haviam terminado.
Enquanto
o corpo acomodava-se ao desenho possível, os olhos – escondidos que estavam –
observavam o trânsito da praça. O diacho é que a praça tem seus espiões. Haviam
descoberto seu truque. Em pouquíssimo tempo esquinas, calçadas, qualquer
logradouro público pululava estátuas vivas. Iridescentes, ofuscavam seu
alumínio pioneiro. Povim invejoso, o
cearense!
Com
os meses a paciência foi desmilinguindo. A grana em primeiro. Ultimamente saía
da pose para solicitar um adjutório, um trago do que fosse. Se o lombo
desfalecido necessitava de apoio, então tamborete pra ele que ninguém é de
ferro. Dessa forma a graciosidade da pose foi sendo substituída pelo retrato do
enfado. E assim transcorriam suas intermináveis insolações diárias.
Deu-se
que, numa bela manhã, o numinoso invadira-lhe o quarto de tijolos desnudos. Se
houvera endoidado não sabia, mas definitivamente não era mais o mesmo. Até no
jeito de levantar-se da rede: Ao estilo retumbante de um salto acrobático! As
estranhices continuaram. Fora do alcance da visão percebeu a mulher na cozinha
preparando os elementos de sua pasta brilhosa. Anteviu-a misturando o óleo de
soja com a farinha de alumínio para depois passar o produto em sua cintura
ovalada, nas costas, pernas, articulações e artelhos, cobrindo-lhe
pacientemente o corpo. (Há algum tempo que da própria pele fizera traje). Ao
entrar na cozinha tudo se confirmou. E viu que era bom.
A
caminho do Centro nem os apupos indígenas da moçada do bar, presenciou. Todos
mudos. As coisas se passavam diferentes sim e flutuava diante dessa íntima
certeza. Quando adentrou majestaticamente o Paranjana, o trocador franqueou-lhe
a passagem. Os passageiros retraíram-se humildemente nos bancos em sinal de
reverência e passeou intangível pelo corredor da condução.
Já
na praça escolheu lugar estratégico. Mui galhardamente tomou o sol como
refletor armando sua estática inicial, cumprindo o mesmo ritual de antanho num
frescor que nem nos melhores tempos de exposição houvera experimentado. A
diferença foi que nada esperou além de exibir sua arte. Mostrou praquele povo
que não precisava de esmolas. Impaciência? Fome? Suadeira? Que nada! Foi um
super-homem de postura estratosférica! E não é que tenha desconcentrado,
perdido o élan, mas uma força coercitiva impeliu-o a projetar levemente a nuca
como a alcançar a prosa duns rapazes bem apessoados. Combinavam os tais onde poderiam assistir o
Brasil e Uruguai dali há pouco. Foi quando, intimamente possesso, proferiu: Ganhou
de dois a um! Os caras olharam-no meio sem entender. O Brasil ganhou de dois a
um! Confirmou. Os olhos expressavam mais brilho que sua barriga exposta ao
terrível sol da tarde. Tamanha convicção não soou como vaticínio. Ele sabia e
por saber os caras escoltaram-no decididamente. Levaram-no prateado mesmo que
ele seria um deus inca encarnado num rastaquera suburbano. As meninas vibrariam
com o espetáculo.
Desde
o primeiro minuto a boa cerveja nunca lhe faltou. Acepipes e toneis de bebida
importada foram avidamente consumidos.
Trinta
e oito minutos do segundo e a partida rumava para decisão nos penais. Os patrocinadores da estátua falante já chutavam
cadeiras. O mulherio era um só frisson. Ele sorria com o canto esquerdo da
boca. Senhor do porvir. A Canarinho já
levou essa. Dois a um!
E
aí profeta fuleiro, como é que fica? Isso reclamava um dos que tiveram a bela
ideia de empacotá-lo para mascote. Timidamente, outros já ameaçavam golpeá-lo,
expulsá-lo a pontapés.
Nos
quarenta minutos! Tranquilizava a todos enquanto cântaros de cerveja escorriam
adentro e afora dos beiços. E ria, e comia muito. Sai aos quarenta! Agora, neste escanteio,
neste exato segundo. Falava ele como que de um acontecimento transato apontando
inclusive o nome do artilheiro.
Quando
tudo se deu – na justa forma prevista – ajoelharam-se todos. As meninas ficaram
absortas. Algumas arriscaram abraçá-lo, outras demoraram a entender tudo
aquilo. Quiseram tocá-lo quase em sinal de devoção. Os rapazes alçaram-no aos ombros feito uma
deidade mesopotâmica. Abarrotaram-no mais ainda de agrados e iguarias.
Não
tardaria até que as mulheres desfilassem pela sua frente em franca oferenda.
Coxas e bundas colossais fremiam a dois palmos de seu nariz ao som de atabaques
eletrônicos... Balançavam em frenesi num
óbvio convite ao acasalamento. As vulvas
quase a polir o chão eram avidamente colhidas pela potestade que lhes fincava
as garras na maciez do sexo. Assim que largava uma carne loura, mordiscava,
violentamente, as bochechas esculturais recém-saídas de um shortinho diminuto.
Daí a pouco já rolava pelo chão com a ruiva em beijos febris para, em seguida,
sugar desesperadamente os mamilos intumescidos de uma quarta numa voracidade
pantagruélica! Tudo ali sob os olhares masculinos que, prostrados diante da sua
magnificência, entoavam cânticos de louvores.
Foi
quando um grito de terror solapou a embriaguez de toda aquela libação. Notaram
que manchas humanas se mesclavam ao prateado de sua cútis divina. As beldades também miravam-se horrorizadas.
Por sobre (e dentre) tanta formosura, resíduos de alumínio. No rosto os
primeiros sinais de sua gentilidade. O nariz pardo, quase a nu, assimilava-o a
um urso coala. Parte do cabelo já mostrava cor e texturas naturais e até se
percebia um canino superior, junto com dois pré-molares inferiores a vagarem-lhe
na boca de sorridente gozo. Terror. Pânico. Entre os homens ira, revolta.
Alguns apertaram-lhe acintosamente as narinas buscando a completa revelação.
Não havia mais dúvidas. Foram vergonhosamente enganados. As calcinhas
espalhadas pelo recinto foram colhidas pelos homens que buscaram em desespero
cobrir a nudez de suas amadas. Outros três já o levavam aos safanões para o
olho da rua. Surraram-lhe à exaustão. Coisa feia de se ver.
Após
desastrosa queda, o despertar numa manhã alvacenta de azul e cimento. Mal abria
os olhos de tão inchados. O ar era outro. Inodoro. Tristemente terreno. Levou os dedos à boca. Apertada de tanto
soco. Depois ao nariz que supôs ensanguentado. Estava! E o sangue misturava-se
aos resíduos do poder que numa noite esteve entre seus dedos!
Enquanto
tentava suportar o peso da cabeça um cortejo de cangaceiros gaúchos, bêbados
chistosos, meninos mosquitos... Todos o rodeavam.
Por
cima o astro rei que a tudo dilui, expande, desfoca.
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