A gente
nunca sabia quando Alice ia dar o show. Ela
irrompia rua abaixo aos gritos, cabelos alvoroçados, como se tivesse acabado de
ver assombração. Os pés estavam sempre descalços. Usava uma saia um pouco acima do
joelho, naquele limite suficiente para fazer disparar a imaginação. Uma
camiseta, que ela usava sem sutiã, completava o conjunto.
Vivia trancada em sua casa, como alguém que sofresse de uma moléstia
contagiosa. Mas, às vezes, a família afrouxava a guarda, e Alice aproveitava e
fugia. Descia a rua gritando frases incompreensíveis, e seu ritmo não era páreo
para ninguém. Por sorte, ela se detinha sempre no mesmo lugar. A praça ao final
da rua. E lá permanecia entregue a uma dança com uma coreografia desencontrada,
como as palavras que insistia em falar.
Ali era o seu palco. A hora do show. Primeiro, ela tirava a camiseta com
rapidez, como se tomada por uma volúpia incontrolável. A peça era
arremessada para longe. Nessa hora, as pessoas já tinham formado um grupo, como
uma platéia. Uns se apiedavam. Outros debochavam e torciam para que a exibição
evoluísse com rapidez. Alice era
uma mulher atraente. Se a gente olhasse direito, percebia os traços de beleza
camuflados pelas marcas do sofrimento e da doença.
A dança atingia um ritmo frenético, como se Alice tivesse sido possuída por uma
força estranha. Os olhos se abriam como se dobrassem ou triplicassem de
tamanho. O rosto inteiro estremecia como se alvo de descarga elétrica. A
apoteose vinha minutos depois. Com uma habilidade que fazia lembrar um número
circense, ela se livrava da saia. Era um número previsível, mas recebido com
assobios e aplausos.Dependendo do dia, a plateia podia ver Alice em pelo. Às
vezes, uma calcinha era a cortina que impedia o êxtase.
Depois desse ato final, alguém da família surgia e envolvia Alice num lençol.
Ela se deixava conduzir sem resistência de volta para seu mundo sombrio. Eu
nunca vi Alice nua, mas os garotos da rua Direita viviam se gabando de que
tinham visto. Eles se gabavam de tudo. Diziam que já tinham conhecido mulheres.
Talvez falassem só pra impressionar. Eram quatro anos mais velhos do que a
gente. Então, podia ser o tipo de conversa que se fala só para impor respeito,
como a gente faria com um irmão mais velho. A gente matava aula e ia jogar
bola. Eles normalmente venciam. Diziam que éramos otários, que nunca tínhamos
visto Alice nua, nem qualquer mulher. Xingavam a gente o tempo todo, e maricas era o mínimo que diziam da gente.
Mas a gente tolerava porque aprendia com os garotos da rua Direita. Comentavam
até que um deles já tinha matado um homem, mas a gente achava que isso tudo não
passava de um exagero. Era tudo fanfarrice, uma estratégia de auto-afirmação,
pois no fundo não passavam de uns cagões.
Eles, porém, podiam ostentar um troféu: já tinham visto a nudez de Alice.
Decidi que ia reverter o jogo em nosso favor. Passei a rondar a casa de Alice.
Com alguma sorte, eu poderia ver o show do começo ao fim. Os maricas iam calar os
cagões.
A casa de Alice era de madeira, ficava no alto da rua, e era silenciosa como um
túmulo. As janelas estavam sempre fechadas, a qualquer hora do dia. Estabeleci
minhas rondas em turnos diferentes. Algumas vezes, matava uma aula e ia
bisbilhotar a casa. Talvez eu desse sorte.
As fugas não tinham um sentido lógico, não obedeciam a um horário, daí porque
ver Alice nua era um prêmio difícil de obter. Era preciso ter sorte e estar na
praça na hora certa. Sorte que os cagões tinham.
Certo dia, fiquei tão impaciente que resolvi forçar as coisas. Atirei uma pedra
numa janela da casa de Alice. Podia ser um estopim para fazê-la sair em
disparada rumo à praça. A pedra explodiu contra a madeira, fazendo um pou! seco. Nada aconteceu.
Comentaram que Alice era noiva, e que
perdeu o noivo num acidente. Por isso, tinha ficado daquele jeito. Tem gente
que afirma que foi de tanto estudar. Mas dizem ainda que foi estupro, daí por
que ela tem essa coisa de ficar nua durante os shows.
Uma vez quase consegui. Ouvi o barulho na praça. Só podia se Alice. E era. Vi
quando ela estava sendo envolta num lençol. Um seio ainda estava do lado de
fora. Um seio. Foi tão fugaz, um vislumbre apenas, mas para mim foi como uma
redenção. A gente agora podia ter o que dizer aos cagões. Eu vira um seio de
Alice.
Mas eu não podia imaginar que as coisas não iriam além de um seio. Mudei de
escola, de bairro e de cidade. Essa os cagões venceram. Fiquei torcendo para
que na minha nova cidade existisse outra Alice. Talvez eu tivesse mais sorte.
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