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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Arreia, arreia, arreia... (Natercia Rocha)





Final de tarde. Fila serpenteando na espera do ônibus Parangaba-Papicu. Uma súcia de estudantes encurrala em círculo fechado seu Antônio das Nuvens, um velho que perdeu o juízo e a moral nas paradas da vida. Vulgarmente batizado de “Dona Tonha”, seu Antônio leva a vida perambulando de terminal em terminal, esculachando Deus e o mundo com um repertório de palavrões invejável.

          Ele provoca. Fica intimando para ficar aporrinhado até soltar o verbo e a franga. Diz a lenda que em outros tempos exercera a profissão de médico, tivera esposa, filhos, dinheiro e que fizera parte do clã de uma tradicional família do norte do Estado. Ninguém sabe ao certo.

O fato é que, hoje, beirando 70 anos, anda rebolando, com uma flor atrás da orelha e sacudindo uma saia imaginária. “Tu virou viado depois que ficou doido? Ou ficou doido depois que virou viado?”

A meninada exaspera seu Antônio que ouve o insulto, desce do salto, risca a faca e espalha a garotada na risadaria. Nesse dia, mergulhei nas lembranças da infância em Juazeiro do Norte onde mexer com doido era a aventura predileta na volta da escola.

Estudei em colégio de freiras, rígido, no tempo das aulas de OSPB, EMC e onde as irmãs pelejavam para ensinar bordados em panos de prato e bicos de crochê, aplicados em toalhas de rosto. Mas, felizmente, a escola ficava em frente à Matriz de Nossa Senhora das Dores, epicentro das romeiradas que acontecem o ano inteiro e era difícil segurar na sala de aula um bando de adolescentes que queria ficar nos batentes da Igreja, comendo bolo de puba com cajuína, paquerando os romeirinhos e vendendo dindim e fita K7 com o sermão do Padre Murilo. Tudo ao som de Márcio Greyck que troava numa rural laranja, ornada com seis megafones vermelhos no teto (contraí matrimônio, anos depois, com o proprietário desse veículo).

Naquele final de tarde, no terminal de ônibus, olhando seu Antônio das Nuvens, pesaram na consciência duas lembranças: os anos a fio em que perturbei a Amaral, uma senhora que vivia na frente do colégio, arribando a saia e arremessando pedra em quem a chamasse de doida, e a perseguição ferrada ao Miguel Penitente, um errante que caminhava de cruz nas costas, assoviando e benzendo os quatro cantos da cidade.

Como essas duas figuras lendárias tiveram muitas. Lembro que era sempre na época das grandes romarias, quando disputávamos brechas atrás do altar para espiar a igreja entupida de vela acesa, lenço branco e chapéu de palha, que os paus-de-arara deixavam para trás levas de mendigos vagando pela cidade.

Mesmo com os pecados da semana expiados na confissão de domingo, na segunda-feira começava tudo novamente. Os caminhões iam embora e ficávamos pela praça, depois da aula, pleno meio-dia, reparando nos novos romeiros que por ventura tivessem ficado por ali.

O tempo ainda era de caderno do catecismo, calça azul e conga branco, sem Parangaba-Papicu... Mas a gritaria no meio do mundo era a mesma: arreia, arreia, arreia...

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