Leiam O Laboratório das Incertezas. Paulo Vieira (UFPB 2013) é dono de um
senhor currículo, que vai de pós-doutorado em Paris, junto ao grupo Théâtre du
Soleil (1996), ao doutorado na USP com tese sobre Plínio Marcos (A Flor e o Mal, Firmo, 1994); e do
mestrado com dissertação sobre Paulo Pontes (A Arte das Coisas Sabidas, UFPB 1998), à publicação de bons romances
– como O Ronco da Abelha (Beca) e O Peregrino (FCJA) –, mais um Bolsa
Funarte de Estímulo à Dramaturgia (2007), com o texto Anita, etc, etc, além do que é chefe do Departamento de Artes
Cênicas da UFPB, universidade para a qual criou o Mestrado Institucional em
Teatro e, com seus colegas, a Especialização em Representação Teatral.
– Em 1994 entrei pela primeira
vez na Cartoucherie. Não tenho palavras para descrever o que foi e o que
significou pisar naquele chão e ver – com olhos de não acreditar – enormes
galpões que abrigavam o que era para mim um mito: a sede do Théâtre du
Soleil. (A Arte do Efêmero, pág. 63).
Isso trouxe resultados.
A beleza e profundidade de O Laboratório das Incertezas – Ensaios
sobre Teatro – vêm justificar, com teoria e História, o respeito com que atores
paraibanos são recebidos nos teatros e em elencos de filmes de toda parte.
Senti isso quando, no final dos anos 80, excursionei com meu grupo para várias
regiões do país e, em 2010, fui participar – como ator – dos longas O Som ao Redor e Era uma vez eu, Verônica – de Kleber Mendonça Filho e Marcelo
Gomes, respectivamente. Todo mundo tira o chapéu para Luiz Carlos Vasconcelos
(como autor, ator e diretor), para Zé Dumont, para os irmãos Soya-Nanego-e-Buda
Lira, para Fernando Teixeira (ator, autor e diretor), Marcélia Cartaxo (atriz e
diretora), Suzy Lopes, Everaldo Pontes, Zezita Mattos, Servílio Gomes, Mayana
Neiva, Verônica Cavalcante, Madalena Acioly... e por aí vai, sem falar de um
dramaturgo do porte de Ariano Suassuna (Auto
da Compadecida), de um cenógrafo como Tomás Santa Rosa (do revolucionário Vestido de Noiva, de Nélson Rodrigues),
e é aí que Paulo Vieira se insere no campo teórico da dramaturgia.
O Laboratório das Incertezas conta, analisa, cita – com erudição e
experiência suficientes para também discordar e definir–, mas começo da base:
concordo totalmente com o que diz no ensaio “A Arte e o Conhecimento” (pág.
16):
– A arte tem a função, no
concerto da natureza e das habilidades humanas, de dar um prazer que atua no
sensível, mergulhando o homem na escuridão do seu próprio abismo, iluminando-o
na medida em que isto for possível.
E me surpreendo com o que ele
afirma:
– Qorpo-Santo (José Joaquim de
Campos Leão) antecedeu em cem anos o Teatro do Absurdo.
– O paraibano Órris Soares
escreveu Rogério, em 1919, texto que
somente veio a ser montado em 1993 em João Pessoa. (...) O Modernismo
Brasileiro ainda esperaria até 1922 para ser apresentado com estardalhaço.
E o vejo confirmar Bergson,
apenas em parte, quando o filósofo diz que “o riso é certo gesto social que
ressalta e reprime certo desvio especial dos homens e dos acontecimentos”:
– Mas ele é, também, a
expressão de nossa própria insensibilidade com as fraquezas ou os vexames de
outros. Sem essa insensibilidade não é possível haver riso. Ninguém ri do que
enternece ou comove. (“Do Fim da Comédia”, página 105).
Analisa:
– O Teatro do Absurdo centra-se
sobre a incomunicabilidade do ser humano, o que não deixa de ser até certo
ponto irônico e contraditório, quando vivemos na era da comunicação de massa. (“O
Enigma da Esfinge”, 118).
Teoriza:
– Quero acreditar que o sucesso
da Commedia dell'arte deveu-se,
sobretudo, ao aperfeiçoamento da velha comédia latina, tão comum na Itália,
antes que o mundo pagão fosse dominado pelo moralismo cristão. (“Do fim da
comédia”, 98).
Aperte o passo e acompanhe a
História, em “O Teatro Como Representação do Mundo”:
– Os palcos dos séculos XVII e
XVIII foram preenchidos por deuses e heróis helênicos, às vezes por reis e
nobres, mas jamais as gentes do povo. (...) O homem não encontrava espaço numa
cena tomada por deuses e ninfas. Ao passo que nas ruas a vida continuava
agitada e miserável, a corte divertia-se com a imagem de um mundo perfeito,
trágico em sua alta expressão, porém harmonioso assim mesmo. Até o instante em
que nas ruas o povo fez correr o sangue humanamente vermelho dos poderosos,
constatando que não era, afinal, azul. (págs41, 42). Pág. 51:
– O que Émile Zola, com seu
naturalismo, propunha, era (...) substituir personagens abstratas pelo homem
real. A partir de então o cenário jogaria um papel importante no quadro da
cena, pois ele é o meio onde nascem, vivem e morrem as personagens. Esse é o
mesmo ponto de vista que será defendido em 1903 por Antoine, o criador do Teatro
Livre e um dos primeiros encenadores modernos.
Páginas 54 e 55:
– A forma politizada desse
teatro assumiu proporções mais claras com as encenações de Piscator, que não
queria mostrar o trabalhador em suas relações com o capital, mas elevar o
teatro às dimensões da História, tomando as novas tecnologias como apoio para a
cena. Assim foi que, havendo como fim ilustrar a narrativa, misturou cinema e
cena de forma a obter uma visão de conjunto dos movimentos sociais.
– Até 1917 (ano da revolução
bolchevique) o teatro e suas instalações não pertenciam à classe oprimida.
(...) Piscator estabeleceu a base do teatro épico que seria explorado mais
tarde por Brecht.
E Paulo Vieira resiste, na
página 57:
– A meu ver, o esforço que
Brecht desenvolveu para negar o aristotelismo, de certa maneira foi em vão,
pois seus melhores textos jamais deixaram de conter uma regra que tem
sobrevivido aos séculos, a unidade de ação. Profundamente aristotélico no seu
antiaristotelismo, sabia que em teatro, texto ou cena, não importa, ação é
fundamental.
Há um tópico precioso, em “O
Enigma da Esfinge”, página 113:
– Em nosso século de velocidade
e de cultura de massa, de indústria de moda, embaralharam-se os caminhos na
caça pela novidade que a cada instante precisa ser reinventada. Perderam-se os
fundamentos do que seja o novo e do que não o é. (...) Não há linguagem
contemporânea para o teatro, que é o que sempre foi – magistralmente definido
por Lope da Veja: um tablado, dois atores e uma paixão. (...) A linguagem
teatral, desde o advento das vanguardas no século XX, sofreu tantas mudanças,
tantas foram as suas novidades, que parece impossível que haja algo que seja
realmente novo na contemporaneidade. (...) Ao romper com a tradição, as
vanguardas abriram caminho para seu próprio aniquilamento estético. (116).
Às vezes me vejo na leitura de
Paulo Vieira, embora não citado lá. Por exemplo: minha primeira peça – O Vermelho e o Branco – que data de 68,
montada por Ariosvaldo Coqueijo, em Pombal, no alto sertão paraibano, foi sobre
a morte do estudante Edson Luís, que acabara de acontecer, e que acabou
causando tal estrago na Ditadura, que resultou no AI-5. Veja, na página 132, de
O Laboratório das Incertezas:
– Além de fazer teatro, a sala
do Opinião serviu, muitas vezes, de lugar onde estudantes frequentemente
realizavam reuniões, como a que ocorreu logo após a morte de Edson Luís nas
dependências do restaurante Calabouço, no ano de 1968. A década efervescente,
praticamente, terminou com a edição do Ato Institucional número 5, em dezembro
de 1968.
De fato: meu texto foi
severamente proibido pela censura, “por ferir a dignidade da pátria e ser capaz
de sublevar os ânimos da juventude”.
Paulo Vieira relata, resgatando
toda uma época de miséria da cultura, em “A vingança do Maldito”, página 155:
– Havia dois modos de censurar
uma obra: o primeiro era aquele que a proibia para exibição em todo território
nacional. Todo autor, diretor ou produtor de teatro, quando desejava montar o
seu espetáculo, tinha a obrigação de pedir a Brasília um certificado nacional
de liberação. Após a obtenção, solicitava-se ao Departamento de Censura da
Polícia Federal uma nova liberação. O tal Departamento recebia uma cópia do
texto, uma data era marcada para a vistoria do espetáculo, dois agentes da
polícia federal compareciam ao teatro, assistiam ao espetáculo em que tudo era
passível de censura, do texto ao gesto dos atores, da luz ao cenário.
Quando eu montava uma
adaptação, atualização minha da Antígona
de Sófocles, mandei o texto pra Brasília, fui chamado à Polícia Federal. O
censor me disse:
– Já existe uma peça com esse
nome.
– Há várias. Todas conservando
o nome do texto original, de Sófocles.
– Mas e se Sófocles reclamar.
Fiquei olhando pro cara, sem
saber se me gozava ou se era, realmente, estúpido. Mudei o título pra Creonte, mas jamais recebi a liberação,
pelo que minha montagem gorou.
Doutra feita, Rosângela
Cagliani montara o balé Caldo da Cana, roteiro meu, música do maestro Carlos
Anísio, e o homem da censura foi ver a apresentação feita exclusivamente pra
ele. No final, disse:
– Vão ter que tirar a cena em
que o coronel se agarra com a negra que faz Nossa Senhora Aparecida.
– Mas isso é de Casa Grande & Senzala! Vai censurar
Gilberto Freyre?!
– Rsrsrsrs: tava brincando...
A Paraíba, especialmente, ganha
com o livro de Paulo Vieira:
– O último texto de Altimar
Pimental, montado com enorme sucesso, é Como
Nasce um Cabra da Peste, rara comédia na obra de um dramaturgo que pode e
deve estar entre os grandes da dramaturgia brasileira. Outro nome que deve figurar
entre os fundadores do teatro nordestino é o de Lourdes Ramalho.
Até eu acabo ficando pra
posteridade, no final do livro, quando se fala de Bráulio Tavares (Brincante), do maranhense Aldo Leite (Tempo de Espera), Vital Farias (Auto das Sete Luas de Barro), Eliézer
Rolim com dois espetáculos deslumbrantes: Homens
de Lua e Anjos de Augusto, Álvaro
Fernandes (Última Estação) e conclui:
– Não se pode esquecer de
Waldemar José Solha, paulista-paraibano, autor de textos intrigantes.
Termino como nos comerciais de
TV:
– Leia o livro!
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