A finalidade primeira da linguagem é comunicar. E só um animal social,
eminentemente social, conseguiria aprimorar esse instrumento. Estudar a
linguagem é estudar o pensamento, a comunicação, a cultura humana. A linguagem,
seja falada ou escrita, tem origem pré-histórica, como o pensamento, como
a própria humanidade. O homem ainda não conseguiu inventar outro
instrumento que substitua a linguagem na comunicação. No dia em que isto
acontecesse haveria a desumanização completa do homem, sua extinção como tal.
Tais são as conexões da linguagem com a vida humana; sem a comunicação que ela
nos possibilita, seria impossível a sobrevivência do ser humano
socializado.
Das considerações gerais passemos, agora, às de origem particular. O que nos
interessa é a linguagem literária, não a linguagem dos sonhos, não a linguagem
das cores; o que nos interessa é a linguagem escrita, perceptível pelo
intelecto e por ele traduzível em sensações e sentimentos, não a linguagem que
procura descrever objetos pura e simplesmente. A este respeito, ouçamos voz
autorizada de Merleau-Ponty, citado pelo Prof. Antônio Gomes Penna: «Uma
linguagem que, efetivamente, visasse apenas reproduzir as próprias coisas, por
mais importante que sejam elas, esgotaria o seu poder de ensinamento em dados
de fato. Uma linguagem que, pelo contrário, manifeste as nossas perspectivas
sobre as coisas e introduza nelas um relevo inauguraria uma discussão que não
termina consigo, suscita ela própria uma procura. O que não é substituível numa
obra de arte e faz dela muito mais do que um meio de prazer: órgão do espírito,
cujo equivalente se encontra em qualquer pensamento filosófico ou político se é
produtivo, consiste em conter, não idéia, mas matrizes de idéias...»(9)
Pela dificuldade de usar a força comunicativa medimos a angústia e a
infelicidade do homem do nosso tempo, apelando para a imagem plástica quase que
desesperadamente.
Não estamos sozinhos nem conseguimos ficar com os outros. Sentir a vida como um
devir, não como realização, deve ser o problema posto. Fala-se tanto em
comunicação que aos poucos o sentido da palavra se esvazia. É que
realmente precisamos de outra comunicação: a que vem cheia de sabor humano, não
essa comercializada, artificial, cheirando a produtos em série ou
abarrotamento de armazém. Seria possível expressar a realidade da alma humana?
E a compreensão de suas verdades íntimas?
Quem nos responde é, mais uma vez, o escritor E. M. Forster: «Na vida diária
nunca nos compreendemos uns aos outros, não existe nem a completa
clarividência, nem a confissão completa. Conhecemo-nos aproximadamente,
por sinais exteriores, e estes servem o suficiente como base para a vida social
e mesmo para a intimidade.» (10)
Não é a linguagem comum que guarda as sutilezas da alma, a nossa verdade. No
quotidiano, falamos pouco e superficialmente. É o pragmatismo. O material da
ficção difere bastante: paixões genuínas, sonhos, alegrias, tristezas,
meditações, o pensamento a transformar-se em ação, enfim tudo o que é
analisável no homem através do próprio homem. Arte literária pretende ser
vida, a vida escondida, a que não se vive exteriormente por respeito ou
polidez, mas que o artista da palavra transforma em ação e móvel de
compreensão. O que é fictício no romance não é tanto a estória, mas o
método pelo qual o pensamento se transforma em ação, um método que nunca ocorre
na vida diária, desde que nossas ações – acorrentadas
ao tempo e ao meio – não são
produto do pensamento criador: são simples cópia do que nos ditou o
código, a moral, etc. muitas vezes contrariando frontalmente o que vai no
íntimo.
É natural que, para transformar um pensamento em ação interiorizada, coisa
fictícia no romance ou na vida, o escritor há que ter à sua disposição
instrumento expressional da nova realidade, a realidade da arte. Esse
instrumento não é outro senão a linguagem literária ou poética, é o dizer
artístico, que «se distingue do comunicar comum pelo caráter
absolutamente novo de seus instrumentos expressivos, resultantes sem dúvida de
um puro ato de criação e esse ato de criação cumpre-se sob duas formas
diferentes: 1) ou em termos de um rearranjo nas formas comunicativas já
gastas pelo uso, ou 2) através da criação de novos instrumentos verbais.»
(11) No último caso, apontaríamos Mário de Andrade e Guimarães Rosa;
no outro, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Cornélio Pena, Lúcio Cardoso e
O.G. Rego de Carvalho.
A linguagem de O. G. Rego é contida, depurada na sintaxe. Poderíamos
dizer tradicional, clássica. E exemplificamos com o texto:
«Um trovão irado rebentou no horizonte. Apenas aí compreendeu Lucínio que a
chuva não cessaria logo. Todo o céu estava envolto de nuvens cinzentas e
fecundas, prontas a despejar. Nenhuma estrela; nenhuma esperança. Só a
noite impenetrável e densa. Figuras sombrias ao lado – espectros de
troncos, de galhos e folhas e frutos agitando-se no espesso véu das águas. Um
pensamento escapou-lhe do fundo da memória: a vigília. Assustadora, a
certeza de que aquela porta nunca se abriria, enquanto o pai
estivesse doente.» (Rio Subterrâneo, pg. 8)
No vocabulário, aqui exerce a faculdade de criar por derivação, ali de usar
alguns neologismos (estrangeirismos em «Rio Subterâneo» e brasileirismos em
«Somos Todos Inocentes», destes, alguns ainda não dicionarizados até),
mas com moderação suficiente, não chegando a tirar a feição nobre do escrito.
Dá preferência a palavras que, por falta de uso nos nossos escritores
contemporâneos – apegados ao coloquialismo e ao linguajar de certas regiões –
nos parecem de sabor quinhentista. Para exemplo, apontamos: «íngreme», «senda», «bosque», «alameda»,
«balaústre», «umbral», «empós». O. G. Rego não teme as
palavras, procura-as se necessário.
Com exclusividade, usa a forma «cousa»
em vez de «coisa», assim como «rapariga» em vez de «moça», e só isto mostra quanto
o falar de Oeiras está impregnado da herança portuguesa, pois é francamente
observável a preferência por tais vocábulos no quotidiano dos oeirenses. Outras
preferências: o uso da preposição «a» e não outras, mesmo em expressões em que
o vulgo já a subestimou e os escritores aceitaram, e o tratamento
na segunda pessoa e não na terceira, observáveis especialmente em «Somos Todos
Inocentes», acentuam a asserção do gosto clássico, por nós apontado.
Daí ter surgido dúvida em Vivaldo Coaracy, formulada em carta ao autor, quando
da publicação de «Amor e Morte»: «Permita-me uma observação, talvez
impertinente. Notei no livro certa peculiaridades de estilo ou linguagem que me
deixaram intrigado. Seria curioso saber se elas refletem uma busca de
preciosismo ou artifício por parte do autor, ou se de fato reproduzem
modos de falar corrente no Piauhy.» (12)
Até aqui já estamos suficientemente informados para afirmar que o preciosismo
apontado, se se pode considerá-lo preciosismo, não é artifício nem reproduz o
falar corrente no Piauí. Apenas reflete modo de falar corrente em Oeiras. E o
resto fica por conta da arte do escritor, que apresenta a naturalidade estética
na suas obras, nunca a naturalidade da vida, para usar os termos empregados
pelo Prof. Massaud Moisés, citando João Gaspar Simões (13)
Quem andou acertando a respeito foi Hélio Pólvora, numa apreciação recente,
publicada no «Jornal do Brasil»: «O
rigor da expressão literária lembra o modelo clássico. A escrita é, por vezes,
preciosista, na herança portuguesa recebida provavelmente da ilha da Madeira,
por via familiar. Bastaria esta particularidade, para definir sua prosa no
capítulo das conquistas pessoais.» (14)
A musicalidade da frase, deslizando num envoltório de estesias e hipotiposes
(vejam-se as expressões verbais denotativas da visão como fitar, mirar, remirar,
encarar, especialmente nos diálogos), continua a tendência impressionista de
prosadores do passado como Raul Pompéia, Adelino Magalhães e Euclides da Cunha
e torna-se uma constante de toda a obra, embora em «Rio Subterrâneo» já se
possa apontar o aparecimento da técnica expressionista, porém de parceria com
aquela.
Note-se, entretanto, que O. G. Rego procurou, exaustivamente, utilizar a maior
variedade possível de vogais tônicas na frase, assim como, pelo exercício da
sinonímia, não repete uma só palavra na mesma página escrita, sem prejuízo da
mensagem, ou seja, a integridade da expressão. Assim, não se encontra, em
cada pensamento expresso por cinco palavras seguidas, duas vogais tônicas
do mesmo timbre, sacrificando até uma frase como:
«Mens sana in corpore...» ( «Rio Subterrâneo», pg. 70)
Apontaremos outros exemplos demonstrativos do que poderíamos chamar de
estrutura melódica do romance citado, pois todo ele é construído nesse
diapasão:
«Do sol apenas restava um leque de estrias róseas e azuis. Envolta, assim,
no embaciamento da tarde, a ponte de madeira parecia mais íntima aos olhos de
Helena. Era ali que se encontrava com Pedro, nos últimos dias de seu
namoro...» («Rio Subterrâneo», pg.69)
Assonâncias e aliterações, comuns em outros escritores descuidosos do sem-valor
disto na prosa, não existem na obra de O.G. Rego, tornando-se o texto de
uma limpidez incomum. Não se encontra o menor tropeço, a pontuação
obedece a um ritmo interior largo, sem transpor as fronteiras do decassílabo,
estreitando-se, porém, se o ritmo interior o exige. Mas, de modo geral, o ritmo
da frase se alonga.
Encontra-se num dos seus primeiros trabalhos, inserto em «Amor e
Morte», a preferência pelo emprego do diminutivo. Num pequeno conto de
três páginas contamos 19 diminutivos. Esse uso foi caindo ao passo que o
escritor se apoderava de seu instrumento de expresão; porém, nas origens,
dado fenômeno indicaria o caráter de brandura e calor humano de que se
estava impregnando seu estilo. E esse caráter, mais adiante,
patenteamos pela incidência constante do adjetivo terno e derivados como
enternecer, enternecimento, ternura, ternamente, de par com outros
vocábulos sinônimos ou afins. Basta saber que, em toda a obra de O. G. Rego de
Carvalho, e numa estatística um pouco apressada, encontrei os números abaixo
(englobando terno, seus derivados, sinônimos e palavras afins):
Em «Amor e
Morte».............................
26
em «Ulisses Entre o Amor e a Morte»
33
em «Somos Todos Inocentes»............... 76
e em «Rio
Subterrâneo».........................
100
Bem sabemos que a palavra isolada não caracteriza a linguagem intelectual e
afetiva porque a unidade linguística está necessariamente na frase. (15)
Entretanto, a acreditarmos que tenha a palavra tido origem no
canto, como afirmam muitas autoridades, podemos admitir que sua sonoridade
guardaria mais fidelidade às origens. Por isto mesmo a palavra (ou
frase) sonora seria a mais verdadeira.
Não fiquemos apenas na estatística. Nem apenas nos vocábulos. Vamos, então, ao
discurso:
«Recuei devagarinho, e a empregada me tomou a mão, abrangendo com o olhar as
relíquias que Oeiras amava.» (Ulisses, pg. 11)
«Quando subimos os degraus do alpendre, que as trepadeiras envolviam de
verdura, Marlene voltou-se para o lado da montanha e apontou a escuridão:
– A floresta e o rio
negro.» (Amor e Morte, pg.19)
«Uma voz tímida veio do canto:
– Se seu Raul deixar eu
mostro.» (Somos Todos Inocentes, pg. 75)
«Desceu a mão pelo corpo, imaginando que era a própria Afonsina quem o fazia,
excitada pelo bater de vento e chuva nos oitizeiros.» (Rio Subterrâneo, pg.75)
Não
foi necessário nomear a ternura do olhar da empregada que conduzia Ulisses, a
doçura de Marlene, a delicadeza de Dulcinha nem a afetividade sonambúlica
de Hermes por Afonsina, para que o leitor fosse tomado por essas sensações.
Nisto é que consideramos o ajustamento da linguagem ogerreguiana: ajuda o
leitor compreender melhor o sofrimento e a morte, a angústia e a solidão, da
mesma forma que a música ajuda a a platéia do filme a transpor o desespero, a
tragédia, enfim, a carga emocional. Em O.G. Rego, a linguagem é suporte
musical, fundo lírico, onde se recorta o drama do ser entre tensões e
distúrbios que se processam no íntimo e não na periferia.
Visto que falamos em lirismo, vejamos o que ocorre com a linguagem de O.G.
Rego, especialmente em «Rio Subterrâneo». Não passará despercebida do leitor a
cadência do decassílabo. E o Prof. Vidal de Freitas, num estudo publicado no
jornal «O Cometa», declara haver contado cerca de 800 decassílabos, e segue
enumerando alguns. Num trecho em que O.G. Rego fala do ambiente, na fumaça,
encontra seguidamente os seguintes: (16)
«... dança ao sopro do vento, e traz até
o corredor o cheiro de resinas,
essências e perfumes de floresta
distante que a madeira inda conserva...(pg. 11)
Outras citações são feitas, porém sem obedecer ao critério de sequência
do texto. E dá os seguintes exemplos isolados:
«O rosto na penumbra era belíssimo» (pg.50)
«E o rio engrossa como em vinte e seis»(pg. 7)
«Sua irmã tinha o corpo adolescente» (pg. 5)
«Lucínio estremeceu só em pensar» (pg.4)
Antes, porém, apresenta alguns pares de versos como:
«Gostava de sentir os seios dela
em suas mãos: carne macia e tépida» (pg. 36)
Quando o crítico Hélio Pólvora assinalou que «a primeira parte de Rio Subterrâneo – Limbo – é um monumento solene da prosa brasileira»(17), em verdade
não achei exagero. Antes pelo contrário: todo o livro é solene, imponente sem
verbosidade, linguagem sem jaça, estilo de boa cepa; só poderíamos encontrar
paralelo nos portugueses, nunca nos brasileiros. As aproximações que se
fazem com Machado ou Graciliano prendem-se a outra face da obra ficcional, jamais
ao estilo. Prendem-se precisamente à interioridade, à técnica, a um
mínimo de ação em proveito do enredo propriamente dito.
Engano é tachar de preciosista o seu estilo só porque usa os
falares de sua terra, transfigurados literariamente, ou porque, não
querendo seguir a corrente de escritores que inventam palavras e expressões – o exemplo mais digno de nota
é Guimarães Rosa – usa de
alguns arcaísmos (mas porém, dês, alfim, etc.), especialmente em «Somos
Todos Inocentes», mas sem redundância e acidentalmente, de forma que não chega
tal uso a caracterizar sequer um capítulo de sua obra.
Por último, lembrei-me de focalizar o que há de mais importante para
identificação de um escritor de fôlego: o emprego do adjetivo. O. G. Rego
faz adjetivação constante e variada, não chegando ao esteticismo de Eça,
ao preciosismo de Coelho Neto. E sem descer ao vulgarismo dos românticos
brasileiros em geral (exceção de José de Alencar).
Um paralelo com Cornélio Pena, de quem Fausto Cunha afirma «não conseguir
sofrear o caudal amazônico dos vocábulos, inanes para representar o drama
interior da vida», seria algo interessante. (18)
Assim escreve O. G. Rego de Carvalho:
«E adiante, o rio cor de barro: imenso, vertiginoso, túrbido, a refletir o
sol que nem um espelho.» (Rio Subterrâneo, pg. 122)
Assim escreve Cornélio Pena:
«As montanhas negras, escorrendo chuva, apagadas pelo denso nevoeiro que sobe
da terra, calçada de ferro e também negra, caminham aos meus olhos, lentamente,
como em sonho sufocante.» (Fronteira, pg. 19)
Observe-se nos dois a mestria do uso do adjetivo, correto, necessário. O que há
de mais diferente entre ambos é o ritmo, caracterizando o estilo de cada um.
Propositadamente escolhi um autor que tratasse do mesmo tema – a loucura – no arriscar um paralelo, para
enfatizar a originalidade de O. G. Rego de Carvalho, mostrando, assim, que um
tema semelhante não requer estilo idêntico. Só o ser Cornélio Pena da geração
imediatamente anterior à de O. G. Rego – pois
o primeiro livro daquele foi lançado em 1933 – poderia
mostrar uma coincidência de gostos estilísticos quando muito, nunca uma
influência que na realidade não houve.
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