Lucy,
Vou
chamá-la assim. Não sei o seu nome. Lucy, como na música dos Beatles. Creio que
posso também chamá-la de querida. Querida Lucy. Porque ontem, quando nos
reencontramos, depois de tantos anos, redescobri em mim um antigo afeto. Quem
diria, hein? O acaso. Eu estava lá num daqueles dias modorrentos, trancafiado
na minha rotina de funcionário público. Eu e minha cota de tédio e sacrifício.
E você surge do nada, como uma brisa agradável que o passado empurrou para o
presente. Você veio pisando com cautela, estudando o terreno. Precisava de uma
autorização, algo que eu, naquele momento, poderia resolver, naquela sala,
naquele birô, naquele prédio. Então, você se aproximou, sentou-se e estendeu o
documento, o documento que eu deveria liberar após um telefonema. E foi o que
fiz. Não levei mais do que dois ou três
minutos. Eu lhe devolvi o documento com a autorização. Com calma, você assinou
seu nome. E enquanto assinava, sem erguer a cabeça, você falou comigo, quase
num sussurro, como quem faz uma confidência. “Eu já estudei com o senhor”. Fiz um ar de surpresa, busquei seu olhar.
Quer dizer então que, nesse curto tempo, você me observava. E me reconheceu, um vulto do passado. Você se
apressou em esclarecer: estudara comigo no segundo grau. Quanto tempo faz?
Passaram-se mais de 30 anos.
Confrontamos informações. Sim, havíamos sido colegas no colégio. Entre
mim e você havia uma espessa cortina do passado. É inevitável que o tempo tenha
deixado suas marcas. Notei que você ainda era uma mulher bonita. Senti-me
intimidado. Ainda hoje sou um homem tímido. Talvez eu seja a negação do que o
poeta escreveu: Nosotros, los de
entonces, ya no somos los mismos. Não sei se concordo com ele. Mudamos, mas
no fundo permanecemos os mesmos. Ainda sou tímido. E sua beleza, Lucy, me
emocionou. Não trocamos mais do que umas poucas palavras. Mas senti que, por um
momento, voltamos a ser colegas, como antes. Foi tudo tão fugaz, mas aquele
instante deu um sentido especial ao meu dia. Deu uma dimensão ao meu próprio
passado. Alguém, uma mulher bonita, lembrou-se de mim, tantos anos depois. Você
pegou seu documento e partiu tão silenciosamente como tinha chegado.
Lucy,
eu lembrei de você desde o primeiro momento em que a vi. Mas banquei o
burocrata durão, frio e distante. Eu lembro
de você. Há pessoas de quem jamais esquecemos. Você era a garota mais bonita do
colégio. Do fundo da minha timidez, eu a admirava de longe; um sonho
inatingível; a garota que eu jamais iria convidar para dançar; ou ir ao cinema. Quem diria então namorar. Você não era muito estudiosa, não é? Desculpe, mas é
assim que eu a via. Você não fazia parte das garotas que tiravam as notas mais
altas. Você tornou-se uma grande profissional? Você casou? Teve filhos? Você é
feliz?
Você
partiu silenciosamente e me deixou com essas questões, como se eu quisesse,
ainda que tardiamente, fazer parte de sua vida. Mas haverá um passado e um
futuro? Ou será tudo parte de um todo indivisível? Como pode uma emoção antiga
ser tão ou mais forte do que um sentimento atual? Lucy, como essas coisas podem
acontecer? E o que você pensou de mim? Como pôde me reconhecer tanto tempo
depois? E como você me vê hoje? Será que os anos foram generosos comigo? Ah, se
eu pudesse lhe contar. Outro dia eu passei em frente ao nosso colégio. Quantas
lembranças. Quantos sonhos perdidos. Você também perdeu os seus sonhos, Lucy?
Trinta
anos. Sinto como se as velhas emoções ainda estivessem comigo. Ou é apenas um
autoengano, uma forma de recuperar o tempo perdido? Você ainda é uma mulher
bonita, e sinto que ainda hoje poderia namorá-la, talvez melhor do que no
passado. Talvez nunca mais eu venha a encontrá-la de novo. Se acontecer, talvez
eu tome coragem e diga todas essas coisas a você. Quem sabe até fazer o convite
que nunca fiz.
Até sempre, Lucy.
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