Entreguei
a Cleto Milani quatro livros: Cila (Cabedelo: Edição do Autor, 2013), de Ronaldo
Monte; La otra oscuridad/A outra
obscuridade (Mossoró: Sarau das Letras, 2013), de Luis Raúl Calvo; Vento da tarde/ Viento de la tarde
(Mossoró: Sarau das Letras, 2013), de Rizolete Fernandes; e Os ossos da baleia (Vitória: SECULT,
2013), de Jorge Elias Neto. Após a leitura, trocaríamos umas ideias. Talvez a
tanto não chegássemos, tão atarefado ando com meu rebanho de letras. Então se aprontasse
para redigir uma resenha ou crônica. Ele sorriu. Precisa muito de incentivos
desse tipo. Como se pudesse dizer ao mundo: Vejam, também sou crítico e
cronista.
No sábado passado, ele
apareceu. Estacionou o carro diante do portão de minha choupana e, durante
cinco minutos, nos dedicamos à maluquice do trânsito de veículos, ao calor e à
seca, aos assaltantes e seus asseclas da polícia, etc. O escrevinhador de
resenhas espalhou os quatro volumes sobre a mesinha. Pegou o primeiro: Cila, de Ronaldo Monte. E se perdeu em parolagem sem fim. Anotei algumas frases:
“Cila,
ninfa da mitologia grega, recriada por um alquimista brasileiro em pleno século
XXI. E daí? Todo bardo da genealogia dos imortais, pelo menos uma vez na vida,
teve esse gesto (inspiração) de recontar trecho da ‘vida’ de algum deus, alguma
ninfa ou divindade superior. Ontem muito; hoje menos. De onde teria vindo o
estímulo propício à elaboração do cântico consagrado a Cila? ‘Caminhava na praia entre o mar e a falésia
quando avistei sobre as pedras um vulto que me pareceu de uma mulher’. Está
dada a explicação? Se caminhou mesmo, se sonhou, se imaginou, não importa. Interessa-nos
apenas a realidade do afresco, sua existência. Fez-se e está aí exposto ao
deleite dos leitores”.
Dez
minutos depois, Cleto se ergueu do sofá e passeou pela sala. Deu duas voltas, a
bufar e mirar o imensurável das ideias. Ainda azedo, voltou ao assento. Agarrou
Os ossos da baleia, de Jorge Elias
Neto. Consegui anotar apenas isto: “Os temas frequentados pelo menestrel são os
mais variados, desde a moça a sonhar até a tragédia de Realengo (a da
carnificina praticada por um louco numa escola). Jorge não se omite ou não tem
medo. O feiticeiro (seja do verso ou do traço na tela, do risco, do bordado ou da
nota musical) ou mágico, medroso ou incapaz de se afastar das pilastras dos
templos e das instituições, não será verdadeiro ou autêntico, nem quando se servir
da muleta da metáfora”.
Chegada a minha vez de espairecer,
dirigi-me até a porta e ergui a cabeça na direção do último andar do prédio recentemente
construído ao lado da casa onde vivo. O devasso morador do Benfica falava de Vento da tarde: “A poesia de Rizolete
neste novo impresso parece mais compacta ou mais enxuta, se for possível uma
poesia molhada, gorda, rotunda. Nem chega a ser poesia, se assim for. Os
primeiros versos (‘Remissão’) têm essa quase densidade (será possível ou
imaginável a quase densidade?). Vejamos: ‘Ah,
esses negros olhos do querer / esse sorriso / que acende n’alma / o sonho e
anima / o ofício de viver!’ São três as estrofes nesse diapasão, nesse
narrar da entrega amorosa. A seleta está em duas línguas, a nossa e a de
Cervantes”.
Enquanto um gato percorria
a extensão do muro, no rumo do quintal, o visitante se pôs a comentar La otra oscuridad: “Não são raras as incursões
de Luis Raúl Calvo pelo território da arte maior, não apenas literária (Victor
Hugo e Shakespeare), em alusões claras, mas também da pintura, de Van Gogh a
Goya, em estudado ou voluntarioso adentrar na seara dos mais admirados criadores:
‘Siempre fue así y ella lo intuye / desde
el calvario de Otelo y Desdémona’. Essa intertextualidade ou esse difícil exercício
imposto ao leitor inexperiente, conduzido entre ramagens, é, na verdade, um
passeio pela mais polida trilha da poesia”.
Quando cuidei, comentava
de novo a obra de Ronaldo: “Se composições poéticas não podem ser parafraseadas
ou ditas em outras palavras, como se explica o feito desse vate? A ideia (o
mito) é antiga, vem da Grécia. Ronaldo não está preocupado com teorias; espera
por respostas às suas indagações elementares e ônticas. Sonha com visitar o
templo dos deuses elementares e seu mistério. Por isso, ‘Como veio aportar nesta praia, / ao pé desta falésia sobre as pedras /
que se juntam em leito / onde sonho e tempo parecem morrer?’”
Meu amigo passou a’Os ossos da baleia: “Em Jorge o canto se
constrói num ritmo alucinante, em frases curtas, diretas ou certeiras, mesmo
quando envereda pelas mais sombrias ou escorregadias metáforas. Ele não se
preocupa em preencher espaços no papel (pode até nem anotar nada em cadernos). Hinos
traceja como quem lapida seres mitológicos. Quem sabe, escreve de olhos
fechados e, só depois, reproduz no papel os rabiscos imaginados. Em linguagem
comum, de prosa, ‘Portal dos anjos’ seria assim: ‘Anjos, dou-lhes de presente a minha sanidade. Sei o que me custará rolar
a cabeça no acaso... Anjos de poeta não implodem, esvaem-se na cabeceira da
cama do menino, retornam para a dimensão do sonho que se teve e se dispersou
com a razão. Retribuo com o poema a vigília e peço que devolvam a Paulo o
Patibulum e a culpa’. Esse, sim, não tem piedade de si mesmo nem medo de
afrontar os deuses, os patíbulos, sejam eles de antigamente, sejam de hoje”.
Senti vontade, mais uma
vez, de me movimentar, e me pus de pé. Meu comensal se irritou: “Sente-se e
anote”. Obedeci. E anotei isto: “Rizolete veleja bem pelo lirismo mais
subjetivo: queixumes de mulher (‘quando
anunciaste que te ias’, como nos esquecidos boleros e canções) ou lamúrias
humanas de qualquer tipo (‘ao fim do dia
/ cinza e ouro / para receber / da noite / a travessia / sempre açoite / sempre
festim / de taça única / e múltiplos brindes / à agonia / de só ser’.)”
Ainda imobilizado, ouvi
outro comentário à tecelaria verbal de Luis Raúl Calvo: “Também praticante do
verso livre, Luis percorre, com liberdade, o território físico de sua Buenos
Aires, com seus personagens, ou consigo mesmo, desde a infância, o pretérito
mais remoto, em sonhos e aventuras. Às vezes, se perde na própria narração e
faz crônica do cotidiano, dos acontecimentos banais (como em ‘Crimen pasional
en la Calle Tres Arroyos’)”.
Convidei meu conterrâneo
a lanchar. Bastava de poesia naquela tarde. Chamei Alice: “Se não lhe for
incômoda a pergunta, temos suco de maçã?” Vi um leve sorriso em seus olhos
(pois nunca me leva a sério): “Temos torta de banana e damasco e suco de mamão
com laranja”. Arrastei o vovô pelo braço: “Pois nos sirva, que este ancião está
a morrer de sede e fome”.
Fortaleza, 10 a 18 de
janeiro de 2014.