Translate

sexta-feira, 4 de abril de 2014

A ditadura matou a minha mãe (Carlos Gildemar Pontes)




                                                                        (Liceu do Ceará)

Eu senti as dores das mães da Plaza Del Mayo, em Buenos Aires, que reclamavam seus filhos perdidos durante a ditadura na Argentina. Aqui no Brasil, a ditadura militar vitimou milhares de jovens e feriu o coração de milhares de mães, impondo um toque de recolher na esperança e fazendo da ausência uma lacuna indevassável no seio familiar.

        Eram jovens que idealizavam um Brasil sem a intervenção do Capitalismo selvagem e que resistiam aos ditames burros dos antipovo, fardados, travestidos de salvadores da pátria. Eu, ainda era uma criança, quando estourou o Golpe de 64. Exército nas ruas, polícia espancando, torturando, matando sob a maldição do Estado, massacrando trabalhadores, estudantes e quem ousava pensar e externar o desejo de liberdade.

Minha mãe costumava passear comigo no Centro de Fortaleza. Era o que faziam as donas de casa, quando alguém contava as novidades em tecido, móveis, utilidades do lar. Eu ia junto para assegurar que a revista em quadrinhos e o bulim fizessem parte das compras. Mas eram tempos difíceis. Qualquer sirena alarmava o povo que saía às tontas, sem saber para onde correr, com o alarido dos ambulantes gritando: lá vêm os estudantes do Liceu! Sim, esse era o nome do colégio mais tradicional de Fortaleza, que abrigava os estudantes mais conscientes do seu papel na construção de um país livre e cidadão. Quando se reuniam no pátio do colégio e partiam para a rua, o primeiro obstáculo a ser vencido era o quartel dos bombeiros, logo ao lado do Liceu. E houve prisões, mortes e muita revolta, causando mais revolta e mais gente nas ruas exigindo liberdade. 

Muitas vezes, minha mãe tinha que me levar nos braços, a pé, do centro até o bairro onde morávamos, a Vila Santo Antônio, hoje Carlito Pamplona. Cerca de cinco quilômetros de caminhada forçada, embalada pelo medo e pela necessidade de me proteger. A ironia é que, nessa época, meu pai era militar da Marinha e servia no Rio de Janeiro, bem no foco das manifestações.

Por várias vezes, minha mãe correu comigo no colo, porque os alunos do Liceu incendiavam os ônibus e ocupavam a Praça José de Alencar, em clima de guerra, até a chegada dos caminhões da 10ª Região Militar e do 23º Batalhão de Caçadores, repleto de jovens que cegamente atiravam noutros jovens, como eles, que se negavam a obedecer a intervenção externa dos americanos na América Latina. O Brasil se tornava uma presa fácil do poderio americano e montava uma das maiores máquinas de tortura do mundo, treinando militares para matar gente e tornando os militares a força no combate ao comunismo que nunca ameaçou o nosso território. Aliás, o combate era contra a expressão da juventude que queria um país livre. O comunismo era apenas uma bandeira como outra qualquer, pois faltava-nos a educação para escolher os ideais de algo próximo ao que Leonel Brizola chamou de Socialismo Moreno. 

Mas minha mãe, morena, descendente de mulatos, não era socialista, era uma guerreira que enfrentou com orgulho, força e sentimento materno a ditadura militar. Suas longas caminhadas apressaram o coração que trabalhou forçado, para poder me dar hoje o sentido de que o amor de mãe, de família, de poder lutar, fez de mim um homem capaz sonhar um mundo livre, sem medos. A ditadura apressou a morte da minha mãe, mas não matou o seu amor nem o seu exemplo. Ditadura nunca mais. Nunca mais nada que torture o amor.
/////