Em 1964, eu tinha 12 anos de idade e assisti ao golpe militar da janela de
minha casa. A morada de meus pais era no Largo Teresa Cristina, 27, defronte
para o prédio do Sindicato dos Operários Portuários de Santos, localizado à Rua
General Câmara, cuja lateral direita dava para a praça. Foi por ali que
chegaram os soldados da Polícia Marítima, do comandante Seco, ostensivamente
armados. Da janela, vi como alguns daqueles homens de uniforme azul com
metralhadoras em punho e longos bastões – que no cais eram mais conhecidos como
“pés de mesa” – escalaram o muro dos fundos do sindicato, assumindo posições
estratégicas.
Depois, ouvi o estilhaçar de uma vidraça do edifício do sindicato, talvez rompida por uma granada de efeito moral ou uma pedra. E, então, percebi algumas poucas cabeças que se desenhavam nas vidraças: eram os dirigentes do sindicato acuados, provavelmente à espera de notícias que pudessem vir de Brasília sobre um eventual esquema de resistência ao golpe.
Depois, ouvi o estilhaçar de uma vidraça do edifício do sindicato, talvez rompida por uma granada de efeito moral ou uma pedra. E, então, percebi algumas poucas cabeças que se desenhavam nas vidraças: eram os dirigentes do sindicato acuados, provavelmente à espera de notícias que pudessem vir de Brasília sobre um eventual esquema de resistência ao golpe.
Mais
tarde, ainda da janela, pude perceber uma aglomeração na Rua General Câmara com
o Largo. Então, tomei coragem e desci à rua e vi quando alguns daqueles homens
que estavam acuados na parte de cima do sindicato desceram as escadarias, sob a
mira de metralhadoras, e entraram numa espécie de “corredor polonês” aos tapas
e pescoções em direção a um caminhão coberto. Entre eles, lembro-me de ter
visto Manoel de Almeida, que era o presidente do sindicato, e Rafael
Babunovitch, diretor. Com outros diretores e alguns associados solidários,
seriam conduzidos para o navio-prisão, que por muitos dias ficaria ancorado em
frente ao porto de Santos com sua presença ameaçadora, tal como uma forca na
praça principal de uma pequena cidade.
Eu não sabia por que aqueles acontecimentos se davam, mas a minha solidariedade
era para com aqueles que eram agredidos a caminho do caminhão. Em 1961, eu
havia me formado na escola primária do Sindicato dos Operários Portuários, com
10 anos de idade. Eu ingressara na escola não porque meu pai trabalhasse na
Companhia Docas, mas porque ela ficava perto de casa e um amigo da família,
portuário, havia se proposto a me apresentar como seu sobrinho. De modo que
houve um arranjo para superar as normas, já que a escola, a princípio, só
poderia ser cursada por filhos de portuários. E o meu pai era dono de um
pequeno armazém de conserto de sacaria de café na Rua Tuiuti, 34, na beira do
cais do Valongo.
Fosse como fosse, saí daquela escola como um de seus melhores alunos. Ao final
de 1961, o então presidente da República, João Goulart (1919-1976), fez uma
visita ao sindicato e, na ocasião, cumprimentou uns três ou quatro daqueles
alunos que haviam recebido medalha de aplicação ou de honra ao mérito. Eu fui
um deles. Lembro-me ainda hoje do cumprimento dado pela mão suarenta do
presidente.
Naquele ano de 1964, eu cursava o segundo ano ginasial no Colégio Comercial
Coelho Neto e assistira, indiferente, à pregação de uma professora que
costumava angariar adeptos para as manifestações que a União Cívica Feminina
organizava contra o governo Goulart. Até porque não nutria nenhuma simpatia por
aquela gente.
Por
acaso, também sem sair de casa, eu conhecera o prefeito de Santos, José Gomes
(1920-1974), que teria o seu mandato cassado depois do golpe: via-o
frequentemente cruzar o Largo Teresa Cristina em direção à Rua General Câmara a
caminho de seu trabalho na Rádio Cacique, onde apresentava um programa. Certa
vez, ele, com seu cabelo ruivo e voz tonitruante, parou à janela do porão de
minha casa encantado com a vitalidade de meu cachorro, o Rick. E me fez
algumas perguntas a respeito do cão.
Anos mais tarde, quando eu tinha 17 ou 18 anos de idade e sentei-me para
escrever num caderno escolar os primeiros apontamentos para o romance Os
Vira-latas da Madrugada, ainda no porão daquela casa do Largo Teresa
Cristina, fui impulsionado por muitas dessas lembranças. Tanto Almeida como
Babunovitch, “o homem de bochechas vermelhas” e que “parecia ter uma batata
quente na boca quando falava”, são personagens que aparecem disfarçados, ao
lado de tantos outros, naquele romance que reescrevi, dez anos mais tarde, à
época em que era subeditor de Política na redação do jornal O Estado de
S.Paulo.
O
romance ganharia em 1980 uma menção honrosa do Prêmio José Lins do Rego da Livraria
José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, e seria publicado no ano seguinte.
Tantos anos depois, também seria vítima da ditadura militar. Lançado na sede da
editora no dia 30 de abril de 1981, juntamente com outras obras premiadas pela
comissão julgadora, o livro trazia um prefácio em que o jornalista Marcos
Faerman (1943-1999) dizia que aquele “romance de sons delicados e histórias
tristes” não agradaria “àqueles que venceram em 1964”. Àquele lançamento
coletivo, estiveram presentes os ex-ministros Darci Ribeiro (1922-1997) e
Eduardo Portela, o compositor Tom Jobim (1927-1994), cuja irmã Helena ganhara o
prêmio principal do concurso, e ninguém menos que Luís Carlos Prestes
(1898-1990), o Cavaleiro da Esperança, por sinal, também personagem
ocasional do meu romance.
Como
se sabe, naquela noite, houve uma bomba que explodiu no RioCentro antes da hora
e fez gorar uma tragédia que poderia ter provocado muitas vítimas. Talvez esse
episódio tenha levado a editora a pensar duas vezes. Até porque, em dificuldades
financeiras, estava sob intervenção do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES). Por isso, a edição foi recolhida à gráfica e o
livro distribuído sem o prefácio. Guardo comigo, porém, um exemplar que traz o
texto impresso.
A
editora Associação Cultural LetraSelvagem, de Taubaté-SP, do escritor
Nicodemos Sena, tem anunciado “para breve” uma segunda edição desse livro com o
prefácio “censurado” e um estudo introdutório do poeta Ademir Demarchi. Espero
que saia ainda neste ano. Por razões óbvias.
______________________
(*) Adelto Gonçalves, jornalista, é doutor em
Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e
autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho,
2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de
Letras, 2012), entre outros.
/////