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domingo, 28 de maio de 2006

Como surgiram Palma e seus habitantes (Nilto Maciel)


(Pharmacia Mattos, Baturité antiga)


Quase todas as minhas narrativas longas têm como cenário a fictícia cidade de Palma. E também alguns contos. Palma seria Baturité. Não sei se a omissão do nome real da cidade se deveu à vontade de me esconder, me sentir mais livre para criar ou de não parecer tão real, não ser um cronista. Para substituir Baturité, inventei primeiro Jeriquitiba. Depois Tamboaçu.

O topônimo Palma apareceu primeiro nos contos “A Beata de Palma”, “As Pontas da Estrela” e “Tony River”, do livro Babel, publicado em 1997, mas escrito logo após Itinerário, entre 1975 e 1976. Originalmente, no entanto, nas três peças eu ainda não denominava Palma a cidade de minha ficção. Assim, a segunda dessas narrativas intitulava-se “O Menino com uma Estrela na Testa” e se passava em Tamboaçu, tal como a primeira. Este nome perdurou talvez até 1982, quando passei a reescrever meus contos publicados em jornais e revistas.  

Incubação (Nilto Maciel)




O dia todo na labuta do campo, João e Maria nem tiveram tempo de se amar. Mal se deitaram, o sono chegou. Ainda trocaram duas ou três palavras. A cobra enroscada na árvore, promessa de chuva, fadiga no corpo.

No meio da noite, Samael se aproximou do tugúrio do casal. Sorrateiro, entrou. Há tempos seguia os passos de Maria. Quando a encontrava a sós, sussurrava-lhe lascivas palavras. E ela fugia, cega de ódio.

sexta-feira, 19 de maio de 2006

A revista O Saco e o Grupo Siriará (Nilto Maciel)

(Geraldo Markan, Rogaciano Leite Filho, Nilto Maciel, Guaracy Rodrigues e Celso Almeida)


Um dos mais substanciosos estudos sobre a revista O Saco é de Alexandre Barbalho: Cultura e Imprensa Alternativa: a revista de cultura O Saco (Editora da Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2000). Outros escritores também se manifestaram sobre este assunto em artigos.

Em 1976 um grupo de escritores criou O Saco, “revista mensal de cultura”. A partir do nº 5 tornou-se “uma revista nordestina de cultura”, apesar de, desde o primeiro número, publicar colaborações de escritores de todo o Brasil e até do exterior. A Revista apareceu como novidade, não somente no Ceará, mas no Brasil. Diferente das outras, as de então e as do passado. Porém não tínhamos pretensão de fazer escola, de ser anti-acadêmicos ou revolucionários. Pois escritores mais velhos, com livros editados também foram publicados.
 

Rosa dos ventos (Nilto Maciel)



Nenhum livro dormia à cabeceira da cama, nem havia copo ou comprimido à espera da mão sonâmbula de Rosa, que apalpava a cabeça, assanhava o cabelo, os olhos feito tochas a incendiar o quarto. Com a mão direita amassava o lençol e as dobras do pano fugiam-lhe entre os dedos. Com a outra buscava o corpo ausente de José, seu peito cabeludo, seus largos ombros, suas coxas grossas, seu duro queixo.

domingo, 14 de maio de 2006

Achados de um menino perdido (Nilto Maciel )


(Cidade de Baturité)

De certa forma, fui discípulo de Ailton. Adolescentes ainda, fazíamos versos, de preferência sonetos. Os meus não valiam nada, e pouco depois mandei toda a papelada ao lixo. Os dele são alguns destes agora reunidos em livro, pela primeira vez, passados tantos anos de sua morte. O que restou de tudo o que escreveu, apenas 30 poemas, alguns contos e fragmentos diversos. Há um poema datado de 1957, quando chegava aos 15 anos de idade. É verdade que são inúmeros os casos de escritores que escreveram obras-primas quando bem jovens. Porém, a maioria dos adolescentes deixa de lado as veleidades literárias também muito cedo. Não foi o caso de Ailton, logicamente. Porque tinha talento. Sua poesia é de bom nível. Não por saber metrificar e rimar, como todo bom poeta o sabe. Ailton sabia métrica e rima porque lia e estudava. Lia os bons poetas, como Castro Alves, um de seus ídolos. Sabia de cor páginas inteiras do poeta baiano. Escreveu poemas de excelente extração, a lembrar os românticos. Aliás, o vocabulário de Ailton é quase sempre romântico. E rico. E os versos românticos são o melhor dele. Quando pretende fazer poesia político-social, como em "Desperta, Brasil", só nos resta lamentar.

A menina dos olhos (Nilto Maciel)




Corríamos pelo campo, não sei bem com que intenções. Possivelmente desejávamos pegar borboletas ou grilos. Talvez quiséssemos apenas correr. Não consigo lembrar-me dessas migalhas. Já faz muito tempo. Eu devia ser um pedacinho de gente de uns cinco ou seis anos.

Havia uma cerca de arame a dividir o terreno em dois mundos opostos: de um lado capim rasteiro; de outro, terra nua. E tratamos de transpô-la. E já então arrastava-nos a determinação de achar não sei o quê. Uns pareciam mais decididos, como se comandassem os demais. Raquel, sobretudo, que caminhava à frente e de vez em quando parava, abaixava-se, cutucava o chão. Uns acercavam-se dela, faziam-lhe perguntas, arranjavam gravetos e espetavam a terra. Imitavam-na ou queriam agradá-la. Outros, como eu, permaneciam ao largo, mais curiosos que agitados, à espera de novas invenções de Raquel.

segunda-feira, 8 de maio de 2006

Uma crônica de João Brígido (Nilto Maciel)


(João Brígido)

Um editor me pediu um escrito natalino para um jornal. Pensei num cartão, numa carta, numa cartona. Imaginei uma virgem e seu filho. Vasculhei a Bíblia, minha biblioteca. Cheguei a ler um auto pastoril. E terminei na Antologia de João Brígido. Passei o dedo pelo índice e fui dar na crônica “Uma manhã de Noel”. O livro tem quase seiscentas páginas. Parece-me ser esta a única crônica do livro, compilado pelo poeta Jáder de Carvalho, a tocar o tema do 25 de dezembro.

sexta-feira, 5 de maio de 2006

Ícaro (Nilto Maciel)



Rotineiramente nos meus sonhos sou levado de roldão no turbilhão das chafurdices mais absurdas. E acordo brigado comigo mesmo, por ser frágil, pequeno, indefeso — criaturinha atômica perdida na grandeza das coisas.

Há pouco eu ia ladeira abaixo, desembestado, numa carreira de doido. E se não conseguisse nunca mais parar, fosse bater no fim do mundo? Bem feito, quem me havia mandado sair daquele jeito! Não, eu podia me esborrachar nas pedras, terminar todo arranhado, quebrar perna, braço, rachar a cabeça. Ah meu Deus! E que vontade de voltar atrás, ao tempo da partida! De pelo menos estacar, tomar fôlego, andar apenas, passo aqui, passo ali, feito cachorro vadio. Porém já nenhuma vontade eu carregava, nada eu conseguia fazer para diminuir a velocidade, desgovernado seixo na correnteza. E descia, rolava, perdido, danado. Grão de areia arrastado pelo ar, eu sentia sumir-me o chão dos pés, levitar, alçar voo. As pernas, soltas no espaço, balançavam agarradas ao resto do corpo, feito as de um enforcado. E me guiavam os quatro ventos do desespero para as alturas e as perdições. Na boca, o gosto do nada; nos olhos, o medo de precipitar-me; no peito, a ânsia da desgraça. Sim, a queda. Não podia durar muito minha aventura de pássaro sem asas. Como voar para sempre? A menos que eu buscasse o mar, seguro porto de todos os voadores. Nunca, ele não existia, e, se existisse, vivia longe, longe demais. Mas quanta burrice, eu quase alcançava tocar com os pés as cabeleiras das árvores. Não carecia preocupar-me tanto. Bastava soltar-me das argolas do céu e saltar. 

Drummond na visão de outro poeta (Nilto Maciel)


(Carlos Augusto Viana)


Alguns estudos literários lavrados por Carlos Augusto Viana e publicados em jornais já vinham chamando a minha atenção para a face crítica do poeta de Primavera Empalhada. Se não duvidava de sua capacidade de elaborar ensaios e artigos de crítica literária do mais alto nível, ao mergulhar na leitura de Drummond: a insone arquitetura pude conferir o quanto está ele preparado para os largos vôos da análise de obras de quaisquer gêneros.