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segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Femínea fronteira (Calista Serpe)



ÊXTASE ÁUREO


Espero-te: que a minha fonte aguarda. O meu segredo

oculto numa concha. Há nela o mar:

mais áureo mar. Em mim todo o oceano

contido. Pode ali caber inteiro?

Guardado. Numa concha úmida e rósea

que em si fabula o ouro. E freme. E pura

emerge: áurea torrente. E o corpo treme:

eis meu dourado avesso a saciar

a sede que se abriga no teu peito.
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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Ledapoesia (Clauder Arcanjo)

Para Leda Maciel (in memoriam)




Ao nascer, um choro em decassílabo. “Bela como um cisne!” — pensou a mãe; sempre afeita às coisas da arte. Dito isto, de forma natural, brotou o nome sobre os lençóis do parto: Leda.

Com o tempo, o engatinhar e a melopéia infante. “— Lê, Lê, Lê...”. Nas primeiras letras, a descoberta: Lê, do verbo ler. Por entre as páginas dos livros, o chamego dos poemas clássicos, a paixão pela poesia. E, um certo dia, o amor de Lê se fez carne, recitando uma saudação em rimas toantes. O céu banhou-se de mais azul, e uma revoada de pássaros saudou a primavera nos lábios da pequena. Veio a juventude e, com ela, o primeiro soneto. A gaiola dos quatorze versos não era prisão para tanto canto. Seguiram-se os haicais, as quadras, os tercetos, os cordéis, além de um cordão gracioso de versos livres.

A cidade se acostumou com o ritmo, o engenho e o gracejo rimático de Leda.

“— O melhor remédio para a alma”; professoravam todos.

Mas, um dia, Leda viu-se enferma, a doença a minar-lhe as forças, a calar-lhe a voz. A medicina nada poderia fazer, os homens de branco deixaram bem claro. A ciência fazia-se letra morta. No entanto, os poetas da província resolveram prescrever uma injeção de poesia diariamente, direto na veia dos ouvidos de Leda. Desde então, passaram a varar dias e noites junto ao seu leito. E Leda resistia, até que... dormiram, exaustos. Ao acordarem só deram tempo de ver Leda subindo aos céus, a recitar um lindo poema para Cristo.

— Entra, poetisa, a casa é tua. — saudou o Senhor.

E uma legião de anjos e arcanjos anunciou, em versos, a chegada de um novo querubim: a divina Ledapoesia.


clauder@pedagogiadagestao.com.br
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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Os sinos da depressão (Ronaldo Monte)



Todo ano é a mesma coisa. Começa dezembro, os sinos bimbalham e eu me deprimo. É automático, inevitável. Vocês sabem muito bem de que sinos estou falando. Não é o sino da torre da velha igreja que todos trazemos da infância. Nem os carrilhões das grandes catedrais que conhecemos de passagem ou pelos filmes. Os sinos que me deprimem bimbalham nas musiquinhas cabulosas que tocam nas lojas, nos carros de propaganda e nos anúncios de televisão. Eles querem reproduzir em nossa memória uma lembrança que não temos. Querem nos lembrar os guizos de um trenó que desliza sobre a neve puxado por renas carregando um bom velhinho com um saco enorme cheio de presentes. E talvez seja isto o que me deprime.

Vejam que não estou falando de nostalgia, pois esta sempre nos lembra alguma coisa que perdemos e não podemos mais recuperar. Os sinos que bimbalham em dezembro não me lembram nada que alguma vez tenha perdido. Eu nunca vi um trenó, não conheço uma rena e não me lembro de nenhum velhinho gordo e simpático que me tenha dado um presente.

O que perdi, e disto sinto falta, foram os dias de correria que antecediam a noite de festa, no natal e no ano novo. O que perdi foi as mãos fortes do meu pai abrindo a massa do pastel com uma garrafa cheia d’água. Perdi também o cheiro dos pastéis assando no forno e depois se derretendo na boca, misturando o doce do açúcar com o gosto salgado da azeitona. Perdi também o presente achado debaixo da cama na manhã seguinte. Perdi o pai, a mãe as tias e uma parte dos irmãos que construíam comigo essas festas. Isto me faz nostálgico. Mas não me deprime.

É por isso que faço tudo para me recolher em casa assim que começa dezembro. Não quero ouvir o bimbalhar dos sinos. Não quero fazer parte da correria insana que leva as pessoas de um canto para outro em busca de uma coisa que não vão encontrar. Nem dentro delas mesmas. Pois esta coisa chata que as simones e os robertos cantam, que até o pobre do John Lennon é obrigado a cantar, não existe em canto nenhum de nossa memória. Elas existem fora de nós, fabricadas por uma indústria de ilusões e bugigangas. Não me perguntem, pois, por quem os sinos bimbalham. Uma coisa eu garanto: não é por mim.
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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

As galhofas de José Alcides Pinto (Nilto Maciel)



 
(José Alcides e eu)

Estive poucas vezes com Alcides Pinto. Antes de 1977, quando morava em Fortaleza, só o conhecia dos livros. E de ouvir falar. Não me aproximava dele, por retraimento. Talvez nem me ouvisse. Talvez nem me cumprimentasse. Ora, eu o sabia poeta muito conhecido, desde Concreto: estrutura visual-gráfica (1965) e Cantos de Lúcifer (1966), sem contar as antologias de que participara no início dos anos 1950. Além de poeta de renome, romancista, contista e autor da peça Equinócio (1973). E eu? Apenas um estudante, apenas um sonhador, apenas um quase-escritor. Mas um estudante, um leitor não podia se aproximar de um escritor, pelo menos para lhe pedir autógrafo? Podia e pode. Mas cadê coragem para tanto? Como eu me enganava! Alcides sempre se mostrou muito acessível. Nunca pareceu arrogante. Dava-se bem com jovens e velhos. Com “marginais” e “acadêmicos”.


terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Machado de Assis, segundo Jean-Michel Massa (Adelto Gonçalves*)


A dois anos do centenário de sua morte, nunca Machado de Assis (1839-1908) teve a sua obra tão estudada como agora. Uma das melhores coletâneas de estudos sobre a obra machadiana acaba de sair em volume duplo de 511 páginas referente aos nºs. 6-7 da Teresa — Revista de Literatura Brasileira, publicada pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), em co-edição com a Editora 34 e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

Coordenado pelo professor Hélio Seixas de Guimarães, autor de Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19 (São Paulo, Nankin/Edusp, 2004), este número especial de Teresa traz não só ensaios de estudiosos da própria USP como de universidades de fora, como Abel Barros Baptista, professor de Literatura Brasileira da Universidade Nova de Lisboa e autor de dois livros dedicados à obra machadiana, Paulo Dixon, da Pardue University, nos Estados Unidos, e Pablo Rocca, da Universidad de la República, no Uruguai, entre outros.

Na primeira parte, 13 ensaios discutem os contos de Machado de Assis, desde os mais conhecidos, como “O caso da vara” (1899) e “Missa do Galo” (1889) aos menos citados. Um dos melhores ensaios, sem dúvida, é de autoria do próprio coordenador, “Pobres-diabos num beco”, que trata da representação do artista e dos seus conflitos, concentrando-se na análise de “O machete” (1878), “Cantiga de esponsais” (1883) e “Habilidoso” (1885).

A partir desses contos e, especialmente, de “Habilidoso”, Seixas de Guimarães observa que muitas das questões introduzidas no romance machadiano a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) já faziam parte do universo daquelas histórias. “São questões relativas à dificuldade de relação com o público não apenas por causa do gosto anacrônico deste, mas também pela sua exigüidade e pelas condições precárias da comunicação do escritor com esse público”, observa o ensaísta.

Como diz o ensaísta em Os leitores de Machado de Assis, o romancista, na segunda metade do século XIX, sabia muito bem que escrevia para bem pouca gente, se levarmos em conta que, ao redor de 1900, os alfabetizados correspondiam a apenas 18% da população brasileira, dos quais apenas 2% eram capazes de comprar e ler livros. Como artista, vivia, portanto, num beco sem saída, talvez às voltas com a inutilidade de seu ofício, pois não existe nada pior para um escritor do que não ser lido. Tal qual o personagem principal de “Habilidoso”.

Outro grande ensaio deste livro é “Que reino é esse?”, de Eugênio Vinci de Moraes, doutorando em Literatura Brasileira na USP, que aponta para os ainda escassos trabalhos sobre as fontes italianas na obra de Machado de Assis. O autor procura reparar um pouco essa escassez com uma análise do conto “As academias de Sião”, cuja fonte é O príncipe, de Maquiavel, embora não referido explicitamente pelo contista. Para Moraes, a história, a exemplo de outros contos machadianos como “A igreja do Diabo”, de Histórias sem Data (1884) e “Um apólogo”, também conhecido como “A agulha e a linha”, de Várias Histórias (1896), pode ser lida como uma fábula, neste caso a respeito da natureza do poder e da luta para alcançá-lo.

Sem menosprezar, porém, os ensaios e resenhas que traz a revista — todos de qualidade superior —, o melhor mesmo da edição é a entrevista que o professor francês Jean-Michel Massa concedeu a Maria Claudete de Souza Oliveira no dia 13 de janeiro de 2006, em Paris, a partir de perguntas formuladas pelo professor Gilberto Pinheiro Passos. Massa, professor da Faculdade de Letras de Rennes, na França, é um dos principais pesquisadores da vida e da obra do escritor brasileiro e autor de Dispersos de Machado de Assis e de A juventude de Machado de Assis 1839-1870: ensaio de biografia intelectual.

Este ensaio, que constitui a tese de doutoramento de Massa defendida em 1968 na França, foi publicado em 1971 pela Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro, mas nunca mais ganhou nova edição. É uma raridade só encontrada em grandes bibliotecas e constitui leitura obrigatória para a compreensão dos anos de formação de Machado de Assis. Tal é a procura por este livro em cursos de Letras das faculdades brasileiras que não há explicação para o fato de que nenhuma editora tenha tido, até agora, a perspicácia de reeditá-lo.

Na entrevista, o professor lamenta que Machado de Assis, o maior escritor brasileiro, não tenha uma edição de sua obra completa até hoje. A melhor edição é a da editora Jackson dos anos 30, mas não reúne tudo do autor. A de Afrânio Coutinho, publicada pela editora Aguilar, diz Massa, tem centenas de erros e limita-se a três volumes, quando a edição completa deveria reunir de sete a oito.

Depois de provar que Machado de Assis não pertencia a um meio tão humilde como sempre pretendeu a crítica brasileira nem tampouco era gago ou epilético quando jovem, Massa descobriu, em Portugal, que sua mulher Carolina pertencia a uma família burguesa do Porto e foi namorada e cortejada por três poetas portuenses — Augusto Morais, Nogueira Lima e J. Cândido Furtado, que lhe dedicaram versos —, antes de mudar-se para o Rio de Janeiro. Era irmã de Faustino Xavier de Novais, igualmente poeta, muito amigo de Machado de Assis, por intermédio de quem o escritor a conheceu.

Machado de Assis era filho de uma açoriana, que morreu quando ele tinha dez anos de idade, e de um pintor de paredes, que sabia ler e assinava o Almanaque Laemmert, mas vivia na casa de uma família rica, de fazendeiros cujas terras iam do Morro do Livramento até bem depois da atual Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Teve a proteção da proprietária, sua “madrinha”, que, provavelmente, financiou seus estudos, pois, com menos de 20 anos, escreveu um poema em francês, republicado por Massa em Dispersos de Machado de Assis (Rio de Janeiro, Ministério da Educação/Instituto Nacional do Livro, 1965).

Recentemente, saíram pela Editora Crisálida, de Belo Horizonte, dois livros de Massa. O primeiro, Três traduções por Machado de Assis, reúne textos inéditos de três peças francesas do teatro realista que nunca foram apresentadas no Brasil. O segundo, Machado de Assis tradutor, é um ensaio em que o professor retoma estudos nunca traduzidos no Brasil e produzidos há mais de dez anos. Segundo ele, Machado de Assis fez cerca de 50 traduções, das quais 15 estavam perdidas.

Massa contesta também um crítico brasileiro, Eugênio Gomes, segundo o qual Machado de Assis conhecia o idioma inglês ainda muito jovem. Para ele, essa afirmação precisa ser examinada. Machado de Assis conhecia bem o francês, como seria natural num intelectual do século XIX. Segundo Massa, o crítico, para afirmar isso, baseou-se numa tradução que o romancista fez de Oliver Twist, de Dickens, em 1870. Mas o professor francês provou que o tradutor utilizou totalmente uma das quatro traduções em francês de Oliver Twist que àquela altura estavam disponíveis no mercado. Como se vê, a entrevista de Jean-Michel Massa é imperdível para quem admira a obra de Machado de Assis.

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TERESA, REVISTA DE LITERATURA BRASILEIRA. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo/Editora 34/Imprensa Oficial do Estado de S.Paulo, nºs. 6-7, 2006, 511 págs. E-mail: teresalb@usp.br

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* Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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sábado, 21 de novembro de 2009

Carlos Emílio e as órbitas celestes (Nilto Maciel)

(Nilto, Carlos e Edson Cruz, num restaurante em Fortaleza)

Havia mais de dez anos eu tentava escrever contos. Não sabia a quem mostrá-los. Meus irmãos Ailton e Edinardo – bons leitores – não faziam restrições a meus escritos. Coisa de irmãos. Eu fazia. Ensaiava outras peças. Parecia-me muito difícil aquela tarefa. Depois de centenas de tentativas, selecionei os melhores. Apenas quatorze. O restante virou lixo. Pronto o livro, Itinerário, onde apresentá-lo ao público? Nas livrarias – aconselharam-me. Não, os livreiros não aceitariam expor um livrinho pobre, quarenta páginas, de autor desconhecido. Conversei com o dono de um bar, no térreo do edifício onde eu trabalhava, nas proximidades do riacho Pajeú. O que é lançamento? Não sei também, mas quero lançar meu livro no seu bar. Garanto boa despesa, cerveja e tira-gosto. E assim se deu, num sábado, meio-dia, de 1974.

No fim da festa, todos bêbados, diversos exemplares vendidos, apareceu-me uma figura estranha, cabeluda, roupas frouxas, livro debaixo do braço. Quem é? Uma escritora inglesa. Deixe-me ver: Mrs. Dalloway. Folhei o volume. Em inglês? Sim; você não lê inglês? Não respondi, encabulado. Nunca leu Virginia Woolf? Mudei de assunto. E assim conheci o jovem Carlos Emílio.

A partir daquele dia, iniciou-se nossa amizade. Ele me mostrava (ou lia) seus contos enormes, pedia opinião (não aceitava ser contrariado; só admitia elogios). Andava, para cima e para baixo, com seus manuscritos, seus contos mais novos, que lia com eloquência, onde quer que encontrasse um amigo ou um ouvinte: no saguão do cinema, no ponto de ônibus, num bar, numa esquina. Esses maus entendedores fugiam dele, mal o viam. Meia palavra do menino representava uma eternidade. Alguns desistiam do filme, outros pegavam ônibus errados, espavoridos. Diversos bares de Fortaleza se fecharam, aos poucos. Pois, se neles se sentava o futuro escritor, logo se esvaziavam. Eu não fugia dele, porque, embora obrigado a ouvir suas leituras demoradas, terminava ganhando um bom livro. Assim conheci Faulkner, Joyce, Proust e tantos outros.

Ele não lia apenas os próprios escritos. Lia também seus autores favoritos. Abria um ensebado The Sound and the Fury e se punha a ler: “In the midst of the voices and the hands Ben sat, rapt in his sweet blue gaze. Dilsey sat bolt upright beside, crying rigidly and quietly in the annealment and the blood of the remembered Lamb”. E parecia saber de cor uns e outros. Pois muitas vezes baixava a mão com a papelada ou o livro e continuava a falar. Olhos nos olhos, os lábios quase a tocar a face do ouvinte, como se quisesse se unir ao outro, penetrá-lo, possuí-lo. E respingava de saliva o rosto à sua frente, com seu hálito bom de criança sadia.

Percebida, logo no primeiro dia, minha indigência intelectual, não passava dia sem me emprestar ou presentear livros. Conhecia todo mundo: escritores jovens e velhos, jornalistas, artistas plásticos, músicos, compositores, atores. Apresentou-me todos os grandes nomes da literatura brasileira e estrangeira. Andava sempre com uma novidade debaixo do braço: em inglês, francês, italiano, espanhol. Falava-me de escritores europeus, ibero-americanos e brasileiros que eu não conhecia nem pelo nome. Você precisa ler D. H. Laurence. Sim. Cortázar. Claro. Lucio Cardoso. Perfeitamente. E ele mos apresentava e eu os lia. E conversávamos. Precisamos sacudir a literatura do Ceará. Como? Uma revista literária.

Carlos Emílio é o verdadeiro criador de O Saco. Organizou as primeiras reuniões de escritores, em 1975, com o objetivo de se fazer algo novo no Ceará. Escreveu e publicou em jornal a “chamada geral”, convite público a todos os que se dedicavam às artes. Marcou encontros em sua casa (de seus pais). Deu as diretrizes da publicação, embora eu me opusesse a quase todas elas. Convenceu Raposo e Jackson a participarem do empreendimento. Viajou por todo o Brasil à cata de reportagens, entrevistas, colaborações.

É um romântico, embora saiba tudo o que acontece aqui, ali, nos confins do mundo de ontem, hoje e amanhã. Muita gente não o leva a sério, por não ser um cidadão comum, não ser casado com mulher, não ter filhos, não frequentar igrejas e estádios, não cortar cabelo em cabeleireiro, não andar bem vestido. Às vezes parece mendigo; outras vezes, louco. Não cumpre horários e compromissos. Pode almoçar à meia-noite, tomar café-da-manhã no meio da tarde. Comparece às reuniões após seu encerramento. Telefona a amigos, de madrugada, para ler contos quilométricos. E acha tudo normal. Tão romântico é que dois de seus sonhos mais parecem alucinações: a volta dos suplementos literários em todos os grandes jornais brasileiros e a contratação de escritores para cargos públicos. Os periódicos fariam a publicação semanal (ou diária) de contos, poemas, romances. Para ele, os donos dos jornais só têm a ganhar com isso. Digo-lhe que literatura não interessa a esses empresários, leitores de jornais não querem saber de literatura, etc. Ele olha para mim, perplexo, horrorizado, como se eu fosse um inimigo dele. No outro sonho, os governos deveriam dar aos escritores emprego público. Com bons salários, para que os escritores não precisassem mendigar empregos em empresas privadas. Nada de assinar ponto, nada de chefe. Só uma mesa, o tempo inteiro para ler e escrever. Digo-lhe que isto é imoral, ilegal e impossível. Ele fala dos mecenas. E me chama de realista. Em duplo sentido: amigo do rei e ...

Fortaleza, setembro de2009.
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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Poemas de Inocêncio de Melo Filho

(Inocêncio de Melo Filho)


Ofício


Perco-me entre palavras


E sílabas inquietas.


Quando volto a mim


Sinto-me abatido.


Tu me chamas, fecho o livro,


Nego-te os ouvidos...






Sólio


Este trono de merda é só meu


Trono fétido por natureza,


Se é que tem natureza o objeto de sua constituição...


É nele que faço minhas leituras


É nele que busco palavras


É nele que busco poemas


É nele que cago e mijo.


Este trono de merda é só meu


Não o divido com ninguém


Comprei-o com meu próprio dinheiro


Finquei-o à terra usando minhas forças


Trono plebeu!


Trono fétido!


Trono verde indivisível...






Defesa


Eu sou inofensivo, senhores,


Trago enigmas fatigados nas mãos


E fartos cabelos brancos na cabeça.


Minhas pálpebras estão exaustas


E o meu olhar nega-se a contemplar


Esse mundo caduco.


Este céu que nos cobre causa-me tédio.


Mas ainda há palavras em minha boca, posso feri-los


Posso jogá-las no vácuo ou aprisioná-las


Entre as unhas.


Senhores, sou inofensivo,


Verbalizar sentimentos não significa


Um ataque,


Concretiza o medo que se faz defesa.






Insulto


Que fique na tua boca


O meu hálito fétido


Como resposta


Aos teus insultos...

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quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Os primeiros escritos de Nilto Maciel (Henrique Marques-Samyn)



A verve experimentalista de Nilto Maciel confirma-se através da leitura do primeiro volume de seus Contos reunidos (Bestiário, 2009), que reúne os textos publicados nos livros Itinerário (1974/1990), Tempos de mula preta (1981/2000) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). Autor prolífico e multifacetado, entre os méritos de Nilto está uma incansável disposição para repensar sua própria produção literária, algo que já pode ser percebido nesses primeiros textos – entre os quais merecem destaque o forte “Punhalzinho cravado de ódio”, o patético “Detalhes interessantes da vida de Umzim” e o bem urdido “Tadeu e a mariposa”.

Extraindo seus motivos de temas históricos, regionalistas ou fantásticos – não sendo incomum a mescla de elementos oriundos desses diversos campos –, Nilto Maciel é o tipo de escritor que resiste a rótulos e a categorizações. Transparece nesse pluralismo um pendor fundamentalmente comprometido com o próprio exercício da escrita: é esse um autor para quem a criação literária é uma forma de organizar e questionar o real – conquanto esse termo, no vocabulário do autor cearense, seja de difícil definição.

Reunindo os primórdios da obra de uma importante figura das letras brasileiras contemporâneas – sobretudo por sua atitude democrática, justamente destacada pela prefaciadora Liana Aragão, que por longos anos materializou-se na revista Literatura – , Contos reunidos de Nilto Maciel vem, em boa hora, ocupar um espaço de valor em nossas estantes: aquele lugar destinado às obras dos que, além de criadores, são também fomentadores da cultura brasileira.
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terça-feira, 10 de novembro de 2009

E o boi não lambe (Batista de Lima)



Gerôncio chegou vestido de treva ao armazém. No fundo do salão escuro o negro Sabiá jazia inerte e acorrentado ao pilão deitado. Verificou que o negro estava vivo mesmo depois de tanto apanhar para confessar o roubo.

Foram várias patacas desaparecidas do baú da casa grande no domingo de páscoa. Mas o negro carregador de água já confessara tudo. Só não soube dizer aonde guardara o tesouro.

No curral ao lado o touro “surubim” já escavava o chão com os chifres, após dia e meio sem comer e sem beber e passaria mais um naquele estorrico. Era preciso muita fome para enfrentar o negro. Era preciso exemplar o negro na frente dos outros.

Dia seguinte lá pelas onze o negro foi levado e amarrado nu ao mourão no centro do curral ensolarado. Seu corpo foi untado de manteiga da terra e o touro solto de suas amarras. Era um touro de mais de trezentos quilos esfomeado e sedento, sentindo o cheiro da manteiga que escorria com o suor do negro amarrado ao tronco.

O touro se aproximou, cheirou o corpo do negro, amanteigado, e deu a primeira lambida na barriga úmida. Foi o suficiente para que se ouvisse o grito do condenado e o filete de sangue escuro escorrer pelas pernas. Assim o touro quanto mais lambia a manteiga com o sangue mais parecia enfurecido com tanta fome e sede. Em pouco tempo estava o coitado em carne viva, tentando livrar-se daquela língua lâmina.

Aos poucos ia perdendo todo o sangue e a força do grito, e pendia entregue à dor, desfalecido e exangue. Os outros negros do outro lado da cerca se benziam de olhos marejados.

Na porteira do curral o patrão recebeu o delegado que chegava, avisando ter encontrado o tesouro nas mãos de um meirinho que já estava preso na cidade.
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domingo, 8 de novembro de 2009

Notas poéticas: Três martes, de Davino Ribeiro de Sena (Henrique Marques Samyn)



Havendo estreado na poesia na década de 90 com Castelos de Areia, obra premiada na 5ª Bienal Nestlé de Literatura, Davino Ribeiro de Sena já mereceria algum destaque no ambiente poético contemporâneo por aliar, em sua obra, a preocupação formal à busca do lirismo, ambos comumente relegados pela maior parte dos que atualmente se aventuram pela vereda da poesia – que confundem, geralmente, forma com formalismo e lirismo com pieguice. Distante de ambos os vícios, Davino entrega-se a um labor construtivista sem deixar de dar ouvidos à sua matéria lírica, logrando, não poucas vezes, alcançar resultados notáveis.

Três martes, sua obra mais recente (7Letras, 2004), parte de uma proposta artística tão interessante quanto curiosa: em uma espécie de fantasia semântica, tenciona o poeta versar sobre Marte enquanto planeta e enquanto ente mitológico, desvelando um terceiro Marte que seria produto dos dois primeiros. Davino pretende, por esta via, realizar uma reflexão sobre a alteridade; no entanto, sendo esta alteridade tão enigmática, a meditação acaba sendo não sobre o outro, mas sobre si mesmo e o que o cerca – o mundo, a vida, a História, a experiência humana. O terceiro Marte torna-se, enfim, um espelho.

O longo poema segue uma estrutura fixa, com estâncias de doze versos de medidas variáveis, somando ao final mais de dois mil versos. Todavia, é nesta extensão que está sua fragilidade. Coexistem, no poema, momentos de possante força lírica – veja-se, por exemplo, a descrição do “planeta frio”: “Nenhuma sombra, nada / que recorde a vida / no horizonte monótono / quebrado pelas dunas / de areia avermelhada / e pensar monossilábico (...)” – e momentos em que o ímpeto criativo perde o fôlego, tangenciando o prosaísmo, o que resulta em versos que pouco se afastam do trivial – “Um dia seremos lúcidos / mais do que lúdicos. / Misterioso não é o anjo / mas o homem com o banjo.”. É quando a dimensão contingente – construtiva e intelectiva – sobrepuja a dimensão lírica, esta a verdadeiramente essencial.

Davino destaca-se em meio à esterilidade lírica patente na poesia surgida nas últimas décadas justamente por ser um poeta que tem grande familiaridade com suas fontes de inspiração (o que, aliás, rendeu belíssimas obras em seu livro anterior, Vidro e Ferro, de 1999). Ainda que tais fontes se façam presentes, aqui e ali, em Três martes, o que compromete a inteireza do livro são precisamente os momentos em que a razão se faz excessiva, esvaziando o verso de seu substrato lírico. Davino procurou desvelar um terceiro Marte em meio à tensão entre o Marte-planetário e o Marte-mitológico; poderíamos pensar, analogamente, em uma tensão entre o Davino-lírico e o Davino-construtivista. É quando o último não excede o primeiro, quando ambos se harmonizam, que vemos despontar, verdadeiramente, o Davino-poeta.
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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Batista de Lima e a arte de seduzir (Nilto Maciel)

(Nilto, Aíla Sampaio e Batista de Lima, na UNIFOR,Fortaleza, Ceará)



Meu irmão Edinardo cursava Letras na UFC, desde 1970. Falava-me dos professores e dos colegas. Porque sabia do meu interesse por Literatura. Mostrava-me livros, cadernos e trabalhos escolares. Um dia, me apresentou o colega Batista de Lima. “Ah, você também escreve? Já conhece o Clube dos Poetas?” Num sábado, tomei umas cachaças, peguei o ônibus na Bezerra de Menezes, desci na Praça José de Alencar e, sorrateiramente, me encaminhei para a Casa de Juvenal Galeno, onde se realizavam os encontros dos jovens poetas. E lá estava Batista, risonho, empertigado, bem vestido, solícito. Fez-me travar conhecimento com Carneiro Portela e outros. Não sei se (ou de quê) me aborreci. Não voltei mais à casa e, durante muito tempo, perdi o contato com Batista. Meu irmão fez concurso para a Caixa, foi convocado para assumir o emprego em Salvador e abandonou o curso. Surgiu O Saco, Batista reapareceu, perguntou por Edinardo. Pouco tempo depois, em 1979, meu irmão faleceu, em acidente automobilístico. Batista concluiu suas letras, tornou-se professor e, em 1977, publicou o primeiro livro, Miranças.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Cem anos de ficção brasileira (Adelto Gonçalves)



Houve um tempo, lá nos inícios da década de 70, em que contista bom no Brasil só podia ser mineiro. É claro que ainda há bons contistas nascidos em Minas Gerais, mas de uns tempos para cá o que se vê são grandes críticas mineiras, quase todas professoras militantes nas grandes universidades do Estado. Correndo o risco de imperdoáveis omissões, pode-se lembrar, assim de uma enfiada, os nomes de Letícia Malard, Melânia Silva de Aguiar, Maria Nazareth Soares Fonseca e Maria Angélica Guimarães Lopes, sem falar de historiadoras como Júnia Ferreira Furtado, Carla Maria Junho Anastásia, Eliana de Freitas Dutra e Adriana Romeiro.

Dessas, apenas Maria Angélica Guimarães Lopes fez carreira no magistério longe das montanhas de Minas Gerais, tendo se transferido para os Estados Unidos há várias décadas. Hoje, é professora de Literatura Brasileira da Universidade da Carolina do Sul, mas já passou pela Universidade de Pittsburgh e pela Universidade do Sul da Califórnia. É também editora da seção “O Conto Brasileiro” para o Handbook of Latin American Studies, a bibliografia bienal da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.

Durante todo esse tempo, escreveu ensaios e resenhas de livros de autores brasileiros, quase sempre restrita à contística, gênero a que se dedicou, espalhando seus escritos por numerosas revistas universitárias norte-americanas que se dedicam às letras ibero-americanas, o que inclui as brasileiras. O curioso é que não tenha nunca se preocupado em reunir esses trabalhos num volume, pelo menos até a publicação de Coreografia do Desejo: Cem Anos de Ficção Brasileira (São Paulo, Ateliê Editorial, 2001), que saiu só nove depois de um apelo feito pelo escritor Manoel Lobato (1925), responsável pelo texto que cobre as orelhas do livro.

Quem já teve um livro recenseado pela professora Maria Angélica Guimarães Lopes, como este articulista1 , sabe que se trata de uma crítica de rara erudição, que constrói frases poéticas em meio a análises sofisticadas e sempre baseadas em autores de grande reconhecimento mundial, mas que, dificilmente, comparecem nas recensões que costumamos ler por aqui. Naturalmente, os largos anos de convivência no meio universitário norte-americano abriram-lhe outros horizontes, colocando-a em contato com os mais diversos ensaístas e ficcionistas das línguas inglesa e francesa. Por isso, fez vários trabalhos de Literatura Comparada, opondo autores brasileiros a seus pares de línguas inglesa e francesa, sempre com notável perícia interpretativa, como aponta o professor Fábio Lucas na apresentação.

Alguns desses trabalhos estão em Coreografia do Desejo. Um deles é o mais extenso e significativo dos 14 textos reunidos neste volume, “Estátuas esculpidas pelo tempo: imagética como caracterização em Quincas Borba e The Portrait of a Lady”, em que a mestra faz raras e percucientes comparações entre Machado de Assis (1839-1908) e Henry James (1846-1916), examinando tropos de teor metafórico usados na caracterização das principais personagens de dois romances contemporâneos de inegável valor.

Ambos tratam da influência da riqueza e posição social nas relações sentimentais dos protagonistas. Como se sabe, tanto o carioca como o novaiorquino eram admiradores do francês Honoré de Balzac (1799-1850), que foi quem levou mais longe esse tipo de caracterização.

Outro estudo, “O Banquete da Vida: Quincas Borba e O Nababo”, confronta o romance machadiano com aquele de Alphonse Daudet (1840-1897), a partir da temática da amizade traída pelo interesse, tendo como pano de fundo o império brasileiro e o francês. Em sua análise, a professora, além de ressaltar o parentesco entre as duas obras, procura mostrar o valor e a permanência do romance brasileiro em comparação com o francês.

De fato, hoje, como observa a crítica, Le Nabab, “apesar de sua pujança e sinceridade”, é pouco lido, tendo virado “peça de museu”, enquanto Quincas Borba, mais de um século de sua publicação, continua a suscitar estudos de críticos brasileiros e estrangeiros, sem contar que, freqüentemente, faz parte de listas de livros de leitura obrigatória para acesso a cursos de graduação.

Na mesma senda do comparativismo, Maria Angélica aproxima Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade (1890-1954), de João Ternura, de Aníbal Machado (1894-1964), “verdadeiros filhos do Modernismo, que contribuíram para trazer a pujança necessária à prosa brasileira”. A rigor, os dois livros são contemporâneos, embora o de Oswald de Andrade tenha sido publicado em 1924 e o de Aníbal Machado em 1965. É que a parte inicial de João Ternura é de 1926-1932, tendo ficado na gaveta por mais de três décadas.

Coreografia do Desejo oferece ainda a oportunidade ao leitor moderno de conhecer duas autoras brasileiras que estão esquecidas e reduzidas a poucas linhas em obras de referência e de consulta obrigatória. Uma delas é Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), que foi mulher do escritor Filinto de Almeida (1857-1945), que, nascido no Porto, veio para o Brasil com 10 anos de idade e chegou à Academia Brasileira de Letras como um de seus fundadores. Filha de pais portugueses cultos (a mãe foi música e o pai médico e educador), Júlia de Almeida escreveu romances em que a temática era a família burguesa do Segundo Império e da Primeira República.

Embora seja acusada por José Carlos Garbuglio no Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira, de Massaud Moisés (org.), de carecer de “maior penetração psicológica para criar obra significativa”, é vista sob outro ângulo por Maria Angélica, que nela reconhece “perícia em manipular elementos literários com os quais entretece fios ideológicos, conservando a harmonia e incisão próprios de um romance realista bem realizado”. Seus romances A Família Medeiros e Correio na Roça, diz a professora, atestam a seriedade com a qual a autora se preocupou com a instrução feminina, única alternativa que via para a mulher fugir da submissão ao mundo masculino.

Já Carmen Dolores, pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Melo (1852-1911), destacou-se mais como jornalista, lutando igualmente pela educação feminina, pelas oportunidades de trabalho remunerado para a mulher e, principalmente, pelo divórcio, embora não tenha sido entusiasta do voto feminino nem da incorporação da mulher à política.

O título do livro Coreografia do Desejo, que abarca um século de ficção brasileira, incluindo ainda autores modernos como Clarice Lispector (1925-1977), Oswaldo França Júnior (1936-1989), Manoel Lobato e Frei Betto (1944), vem do ensaio que autora escreveu para A Dama do Bar Nevada, conto de coletânea homônima de Sérgio Faraco (1940) publicada em 1987. Nesse texto, Faraco, um dos melhores contistas brasileiros da atualidade, a estória começa com um encontro casual em que uma mulher idosa muito maquilada e de trajes chamativos oferece a um jovem pobre e faminto, num bar do centro de Porto Alegre, os seus serviços mais íntimos, além de uma substanciosa remuneração, tudo dentro de uma conversa educada, regada a xícaras de chá.

Para a autora, o diálogo entre a velha senhora sequiosa por reencontrar o fogo da juventude e o rapaz “é também uma dança, coreografada pelo mais forte — a dama: mais velha, mais astuta e mais rica. É ela quem conduz o parceiro em direção aparentemente ignota e perigosa”. Basta uma observação como esta para se ter uma idéia da alta qualidade do trabalho analítico de Maria Angélica Guimarães Lopes.
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A COREOGRAFIA DO DESEJO: CEM ANOS DE FICÇÃO BRASILEIRA, de Maria Angélica Guimarães Lopes. São Paulo: Ateliê Editorial, 232 pp., 2001. www.atelie.com.br
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* Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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terça-feira, 27 de outubro de 2009

Homem não chora, não é, Airton Monte? (Nilto Maciel)



(À direita, em pé, Airton Monte)

Um dia eu conheceria Airton Monte. Num bar, numa livraria, num encontro de escritores, numa calçada, apresentado por amigo. Estava escrito. Porque escrevíamos e morávamos na mesma cidade, não tão grande ainda. No entanto, meu ingresso na Universidade (1970) propiciou, mais rapidamente, esse conhecimento. Pois na Faculdade de Direito conheci alguns escritores (principiantes, como eu) que falavam muito bem de um estudante de Medicina – certo Airton Monte. Tinha ele pouco mais de 20 anos e pertencia ao Clube dos Poetas Cearenses, do qual foi um dos fundadores. Grupo de jovens que escreviam versos. Reuniam-se, com frequência, na Casa de Juvenal Galeno, sob a liderança de Carneiro Portela. Liam seus poemas, elogiavam-se, faziam planos, publicavam coletâneas. Com o tempo, desapareceu e, com ele, quase todos os seus poetas. Poucos deles persistiram, como Airton Maranhão, Barros Pinho, Batista de Lima, Iranildo Sampaio, Márcio Catunda, Ricardo Guilherme.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A Inextricável Liturgia de um Boçal (Ilidio Soares)



Eu, Antonio Silveira, vosso criado, digo que o que mais me espanta é o seu rebolado. Ficou bom, não? Então deixa eu começar de outro jeito. Eu, Antonio Silveira, seu escravo, digo que entre o seu rebolado e a minha serventia o que me deixa doido, mas doido mesmo, é o seu jeito escrachado. E que o bom deus a abençoe e guarde, mas só pra mim, porque de sacanagens esse senhor não entende. Quer dizer, entender ele entende, mas a sacanagem dele é por carência, nunca por abundância, porque enquanto ele cintila lá no céu é você quem vaza na cama; e como hoje em dia é bom se precaver contra certas injustiças, não custa pedir que ele a abençoe e guarde. Com abundância, das coxas ou línguas, não importa, o que vale é a guarda, sobretudo a benção. Essa coisa beata, com som de harpa, mas quando bem tocada até que funciona.


E já que tocamos no tema funcionamento, diz pra mim Glorinha, por que quando você cruza os braços os seus seios estufam? Como você faz isso? Isso não é coisa de anatomia, parece mais de demônio, demônio sacana, diga-se, que não tendo mais com que me azucrinar põe seus peitos à mostra para me provocar uma exploração minuciosa, prazerosa e conclusiva, como um geólogo diante das crateras de vulcões ativos. Dois inencontráveis cerros, isolados, inesquecíveis, como uma insônia onde se repensa temas sérios ou como a primeira trepada lá pelos quinze. A estrutura deles é coisa pra especialistas, gente que passa a vida estudando núcleos, gases, cataclismos. Só no olhar vamos da terra a lua sem passar pelos chicotes gravitacionais tão incômodos para os que querem alcançar o gozo declinando das expectativas. Seus seios, Glorinha, é a minha falta de ar que, fora a porra da pressão, eu deveria passar a vida inteira tendo.


E já que tocamos no tema ter, diz pra mim Glorinha, por que você não me quer? Eu já disse, seu escracho não me incomoda, até peço bênçãos, e em toda tarde aqui no escritório eu lembro do sacolejo ronronante que sai da sala da secretária e vem dar mais trabalho aos que eu já tenho comumente. Procuro ir pra casa mais tarde, invento eventos diversos, só pra turma de lá não me encher o saco com os meus contumazes adiamentos. Quando eu a chamo pelo ramal e você diz alô, eu levito, dá um curto-circuito danado que quando eu me reconecto foi você quem me desconectou. E se isso não fora bastante ─ gostou do pretérito, tenso, né não? ─ eu mudo o rumo dos compromissos para garantir que eu vou ver seu gingado, sem interesse algum pelo trabalho, mas focado no perfil fisionômico e intransferível do seu rabo. Eu sei que você quer mais, quer que eu resolva problemas que nem os neurologistas sabem solucionar, quer que eu dê um pé na bunda da Olga, mande a Laura e o Rodrigo procurarem outro pai porque esse aqui já tem dono e adora invencionices que a mãe deles nunca soube criar. Veja, não é bem assim. A Olga é boa mãe, boa marida, tivesse mudado de lado eu diria que a Olga é um baita macho para sustentar essa merda toda de rebolado, adiamentos, faltas e aleivosias. Mas acontece que ela só é sustentável no dia seguinte, no dia posterior ao da Glorinha, do seu rebolado, do escracho e de nossa sacrossanta putaria.


E já que tocamos no tema, diz pra mim Glorinha, ô, saco! Tem alguma importância eu comer a Olga ao longo do mês apenas alguns dias? Sabe, eu às vezes acho que você desliga o telefone pela manhã só pra partir prum tudo ou nada irritante a fim de definir logo o dia. Esse sujeito é ou não é meu? Veja, a coisa não funciona bem assim. Primeiro precisamos definir a quem pertence o rebolado. O escracho e o rabo são seus, não resta duvida, mas o rebolado é pra quem? É pra mim, pro Silvério, pro patrimônio dessa companhia, seu Isidoro, enfim, pra quem você rebola enquanto eu invento histórias sem compromissos com o fim? Se for para mim, veja Glorinha, todo envolvimento supõe fuga, seja da Olga, da Laura ou do Rodriguinho, mas sempre há fuga. Pelo menos do colchão que denuncia facilmente o evadido. É sério. Da perplexidade física com os vulcões, desfeita quando se atinge o ridículo de uma rotina, sinceramente Glorinha, os vesuvinhos da Olga até que não são ruins. E não veja nisso qualquer demérito, os seus são colapsos insistentes, como o seu rebolado, que antecipa uma distribuição equânime do corpo e desorganiza qualquer ser vivente. Mas fugir, fugir mesmo, eu não fujo. Eu, Antonio Silveira, afirmo que apesar do seu rebolado, do escracho que é a marca do seu perfume, com a mente altiva e numa prece onde eu só encontro graças, digo não se preocupe, pois eu sou você amanhã, pelo menos na subserviência, do seu sempre e inesquecível Antonio Silveira vosso criado.
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terça-feira, 20 de outubro de 2009

Reinventar (Pedro Du Bois)


Reinventada


a roda


se assemelha


em raio


e circunferência






destoa a origem


na repetição


com que roda


o espaço elementar


do tempo.

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outros poemas:

http://pedrodubois.blogspot.com

http://valeemversos.blogspot.com
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sábado, 17 de outubro de 2009

Primeira carta (1976) de Airton Monte a Nilto Maciel

 – Nilto, o primeiro sentado (à esquerda); Airton, o primeiro de pé (à direita) –

Amigo Nilto, como você já devia saber, nunca fui nem pretendo ser crítico literário, sou antes um criador e um sensitivo fruidor de literatura ou de outra qualquer forma de expressão artística. Portanto, as opiniões que aqui exponho sobre seu trabalho nada mais são que frágeis e sinceras sensações que seu trabalho há me despertado. Espero que me perdoes a superficialidade e a falta de originalidade dos meus comentários, mas que são, isso eu asseguro, profundamente francos.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Dimas Carvalho e o reino da Poesia (Nilto Maciel)


(Dimas, Nilto, Felipe Barroso e Poeta de Meia-Tigela, na casa do segundo)


Conheço a literatura de Dimas Carvalho há muito tempo. Li quase todos os seus livros. Meu conhecimento dele, porém, veio depois. Vi-o pela primeira vez numa tarde de janeiro de 1997. Inaugurava-se o Bosque Moreira Campos (Faculdade de Letras da UFC). O evento está registrado em fotografias, três delas reproduzidas nas páginas derradeiras do Almanaque de Contos Cearenses, daquele ano.

Não lembro mais quem me apresentou a Dimas. Talvez Pedro Salgueiro, relações-públicas da literatura cearense. Conhece todo mundo: acadêmicos engravatados, cordelistas de chapéu de couro, poetas de todos os naipes: enigmáticos, sorumbáticos, asmáticos. Frequenta, com desenvoltura, o banquete dos escritores de fraque e cartola e a alcova das hetairas. Pois deve ter sido ele o autor da apresentação de Dimas a mim.

De longe, avistei aquela figura esquisita, a sorrir e palrar. Supus tratar-se de algum cigano (Pedro se dá bem com todas as maiorias e minorias), em busca da mulher perdida. Vestia calça de linho branco e camisa colorida (talvez portasse um punhal na cintura). Na cabeça, chapéu de feltro. No pescoço, cordão dourado. Nos braços, relógio e pulseiras de ouro. “Não vá se assustar. Dimas gosta de se mostrar assim. Além disso, anda sempre com, pelo menos, duas mulheres jovens e belas. É o dândi da ribeira do Acaraú.” Não me assustei, porque nem a poesia mais enigmática me assusta.

Depois daquele dia festivo (Moreira Campos merece mais homenagens como aquela), Dimas e eu pouco nos vimos, ele na sua Acaraú, eu em Fortaleza. Estivemos em bares e encontros de escritores, palestras em faculdades, lançamentos de livros, entrega de prêmios (as paredes e estantes de sua casa estão repletas de certificados, medalhas, etc). Tanto abocanhou prêmios que julgadores de concursos já dizem: “Não, desta vez Dimas não deve ganhar. Precisamos democratizar os concursos literários.” Não concordo com certas práticas democráticas. Pois isso ocorreu em certo concurso, do qual fui julgador. Dimas concorreu na categoria “livro publicado”. Dei meu voto, convicto de estar escolhendo o melhor. Os demais julgadores, no entanto, votaram em outra obra: “O livro de Dimas é o melhor, sim, mas ele já ganhou prêmios demais. Agora é a vez de outros.”

Amante das fêmeas humanas, Dimas escreve com um olho na folha de papel e outro nas ancas das moças. Apesar disso, não há uma só página em sua obra em que se vislumbre ao menos uma curva mais erótica.

Admirador de padre Antônio Tomás, sabe-lhe de cor todos os sonetos. E os diz, ufano, como se cantasse o Hino Nacional Brasileiro. Como o primeiro quarteto de “Verso e reverso”:

Essa mulher de face encaveirada

Que vês tremendo em ânsias de fadiga

Estendendo a quem passa a mão mirrada

Foi meretriz, antes de ser mendiga.

É sua intenção publicar em livro a obra do grande poeta de Acaraú.

Dimas é viajante nobre. Todo ano vai à Europa. Conhece, palmo a palmo, as ruas das principais cidades européias. E tem memória fabulosa. Narra até os pormenores de seus passeios por Lisboa, Paris, Roma. Para o ouvinte é como se estivesse ao lado do poeta nas caminhadas pela História.

Por tudo isso, já valeria a pena conhecer Dimas Carvalho. Mas há ainda o poeta e o contista, ambos excelentes. É ler seus livros, suas fábulas perversas, suas pequenas narrativas, suas histórias de zoologia humana, seus poemas. O mais recente – Acaraú & outros países – é uma homenagem ao seu pequeno reino, a oeste do império dos tapuias. Nele há também um poema longo, monumental, desses que só os maiores conseguem compor: “Outros países”. São 21 sonetos de esquemas variados. Assim, os 11 primeiros se apresentam dentro do chamado modelo inglês. Todos – ou o todo – compostos como numa partitura. E então se vê, sobretudo, o rosto de Camões (não só nos versos “é para muito além que eu não desejo / cruzarmos os olhares redundantes / por mares nunca navegados dantes / dormem os caminhos que pra nós prevejo”) e o olhar iluminado do Jorge de Lima de Invenção de Orfeu (“Ser que nasceu bem antes do princípio / e que decerto nunca há de ter fim / pois ele é o próprio abismo, o berço, o início”).

Para ser poeta da estatura de colosso, bastaria este poema. Obra de quem se situa entre o eterno e o universal.

Fortaleza, 24 de agosto de 2009.
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sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O ponto (Aníbal Beça)



De ponta a ponta me aponta um .

no apronto da escritura.

Seguido ou final

há-de se entretê-lo

nos cascos do poema

cavalo passado do passo ao trote

e

ao

solto

ga

lo

pe



Na senda branca:

meu desafio.

Fio em que meu ato

desata desatentos pontos

de vista

nem sempre convergentes.



Às vezes o . é pedra subindo ladeira

para depois rolar ladeira abaixo

e novamente subir ladeira acima.

Outras, o . empaca teimoso

asno turrão

no meio do caminho

no meio da selva selvagem.



Gosto

em especial

do . rolado

no verde relvado

dos campos de futebol:

no . como na bola

- sua pareceira -

há que saber parar

para fazer o gol.
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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Herança azul (Clauder Arcanjo)



Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.
(Carlos Pena Filho, em Soneto do Desmantelo Azul)


Das roseiras que pouco plantei, gostaria de ficar tão-somente com as pétalas das rosas mais simples, daquelas que, caídas ao chão, são relegadas pelos enamorados, ou nunca atraentes para compor os buquês das vitrinas. Ou, quem sabe, com o perfume mais ocasional das begônias, e com os espinhos das flores mais murchas, a fim de espicaçar a tristeza das horas infindas. Das amizades as quais muito insisti, queria ter hoje o bálsamo das risadas loucas, folgança despretensiosa da conversa franca, e pouco, mas muito pouco mesmo, do atrito das querelas insípidas, do ciúme injustificável pela ventura de um amigo.

Das manhãs de inverno — gotejantes no telhado dos anos, raros momentos onde o destino me brindava com a lassidão da preguiça, junto com a dádiva de permanecer, quieto e mudo, na rede aquecida e cheirosa dos lençóis de Djanira —, me honraria muito o mero prêmio dessas lembranças, augustos momentos que eu, infelizmente, não fui digno de eternizá-los.

Dos banhos de rio — mergulhos no Acaraú da minha província, no olho do remanso da Licânia dos meus fantasmas —, ousaria pretender, pela última vez, a falta de fôlego da ousadia maior de infante. Era quando pulava, de ponta-cabeça, do alto da ponte nova, orando para que o batismo da água me encobrisse o corpo, protegendo-me do possível perigo de uma pedra, temida, mas, graças a Deus, nunca encontrada.

Das viagens que pouco fiz, ficou, cá dentro de mim, a marca da primeira. Era o tempo do êxodo do garoto para a capital. A engenharia sonhada fazia-me necessariamente optar pelo desterro. No ônibus de linha, um halo de lágrima, e um gosto amargo nos lábios. Nos olhos dos meus pais, o silêncio da bênção trêmula. E, desde tal dia, carrego a pecha do degredo.

Das fantasias, aspiro à máscara de um pierrô teimoso, solitário e gauche, amigo do passe hesitante, adorador do gracejo de picadeiro, a arrancar o riso das faces por demais doridas. Rasgando as máscaras que vem encobrindo, há tempo, os rostos de velhos abandonados, de crianças envelhecidas, de namoros malogrados, de casais a fingir felicidade, ao tempo em que vivem mergulhados no vinho negro do rancor.

Da poesia, eu ficaria com o soneto de pé quebrado, escandido por um vate bissexto e desatento, que busca a melopéia inaudita na forja das lágrimas, na incandescência da impossibilidade, e sob o fole da pertinácia. Ao cabo, um poema a ferir o rigor da métrica, mas a trescalar a sândalo dos puros de coração.

Das utopias, eu, pelo menos agora, abriria mão. Ficaria tão-só com a fome que habita os olhos dos desesperados, dos incansáveis sonhadores, dos ditos e havidos como fazedores celerados. Há sementes de utopia por demais sobre a face da Terra, a tal semeadura é que vem sendo sobremaneira adiada.

Das aulas, dos colégios, das universidades, dos doutos do conhecimento, eu solicitaria a lição dos humildes, daqueles que soem fazer o que é entendido e decifrado na prática dos dias, no laborar da vida; e pouco, ou quase nada, entendem da teoria que não se eterniza em flores e frutos.

Dos jovens, queria apropriar-me da crença na imortalidade, aliás, melhor diria, do nem sequer imaginar a existência da Indesejada da gente. E, ao assim proceder, fazer, de cada ínfimo instante, uma celebração maior ao hoje, um tributo ao infinito que habita o nosso íntimo.

Das simpatias, eu evocaria a do primado da singeleza; singeleza que, para mim, só vejo existir, na sua forma pura, nos lábios dos que sabem emitir um riso de esguelha, mesmo ao serem trucidados pelo ferrão dos poderosos, ou sob a égide da (in)justiça oficializada.

Das borboletas, eu tenciono o vôo branco das menores e por deveras tímidas; das que não precisam da completa primavera para transmudar-se no milagre do vôo, nem muito menos abrem mão da cadência da lagarta na curta viagem no rumo da furtiva luz.

Dos desejos, eu pleitearia ficar com todos. Minha única herança. Em especial, o desejo mais azul, anseio dos que colorem de azul a quem nunca seria azul por jamais ter o azul nas pupilas. E se, mesmo assim, algum dia me encontrarem sem nada, que, pelo menos, me julguem louco, no entanto um louco que sonhou com o azul, quando outros, funéreos, morriam abraçados com a cor vazia do nada.

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clauder@pedagogiadagestao.com.br

Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão,

espaço Questão de Prosa, edição de 25/03/2007.
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segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Mendoza: vender novelas como churros – Adelto Gonçalves (*)



I

No começo dos anos 90, a editora Círculo de Lectores, de Barcelona, quando imaginou lançar a coleção Maestros Modernos Hispánicos, dentro de sua Biblioteca Universal, convidou o escritor Eduardo Mendoza (1943) para dirigi-la, encarregando-o de selecionar títulos e autores. Sem maiores títulos acadêmicos, além de um diploma de advogado, o catalão Mendoza sempre foi um leitor contumaz do melhor das literaturas espanhola e hispanoamericana, além de ser hoje talvez o maior romancista espanhol vivo, o que, de certa forma, é reconhecido não só por boa parte da crítica como pelo grande número de tiragens e edições que seus livros alcançam. Por isso, não lhe foi difícil desempenhar uma tarefa que, de antemão, já se sabia que seria muito difícil e sujeita a polêmicas.

Escreveu, assim, 24 apresentações para os títulos que escolheu, além de dois prólogos, que agora saem reunidos em Quién se acuerda de Armando Palacio Valdés? Explica-se: os outros 22 prólogos foram escritos por autores que, ainda que não fossem especialistas, eram ao juízo de Mendoza personalidades afins à obra ou ao autor em questão. A coleção abrangia autores que viveram no período histórico que vai do final das guerras napoleônicas até o início da guerra civil espanhola (ou da Segunda Guerra Mundial, no caso da América espanhola), uma época extensa e extremamente agitada, marcada por guerras, revoluções, quebra de convenções sociais, ascensão de ideais reformistas, “grandezas e misérias de uma sociedade complexa e desorientada”, como diz o autor no prólogo que escreveu para as 24 apresentações e os outros dois prólogos.

Repetia, assim, tarefa que Jorge Luís Borges (1899-1986) desempenhou em 1974 em Prólogos com um prólogo de prólogos (Buenos Aires, Torres Aguero Editor, 1975), que reúne os quase quarenta prólogos que escrevera entre 1923 e 1974, exercitando um gênero que, como observou, “na triste maioria dos casos, confina com a oratória de sobremesa ou com os panegíricos fúnebres e abunda em hipérboles irresponsáveis, que a leitura incrédula aceita como convenções do gênero”. Não é, porém, o caso de Borges e muito menos o de Mendoza. Quem vier a ler ambos os livros só terá a ganhar, pois equivalem a um precioso roteiro para um curso de literatura em língua castelhana, no primeiro caso, e de literatura universal, no segundo. Até porque, para repetir Borges, o prólogo, “quando são propícios os astros, não é uma forma subalterna de brinde, mas uma espécie lateral da crítica”.

II

Como não poderia deixar de ser, Borges também faz parte dos autores selecionados por Mendoza, com sua Historia universal de la infamia (1935), que, por sinal, encerra o ciclo cronológico da coleção. E o que o selecionador faz questão de ressaltar é que, quando em seus verdes anos descobriu Borges, o que mais lhe chamou atenção foi a erudição do autor, que “parecia utilizar seus insondáveis conhecimentos para inventar fábulas e urdir alegorias impensáveis”. Só mais tarde descobriria que muitos dos conhecimentos de Borges eram, na realidade, apócrifos: versículos da Bíblia que não existem, edições de antigas enciclopédias que nunca vieram à luz.

É de lembrar que no “prólogo de prólogos”, Borges revela que tinha em conta escrever um livro de “índole análoga” em que reunisse uma série de prólogos de livros que não existem, com citações exemplares dessas obras possíveis. “Há argumentos que se prestam menos à escritura laboriosa que aos ócios da imaginação ou ao indulgente diálogo, tais argumentos seriam a impalpável substância dessas páginas que não se escreverão”, justificava. É de destacar ainda que em Historia de la eternidad (1936) Borges faz a resenha de um livro que só existia em sua imaginação e que para Ficções (1944) escreveu prólogo em que deixou esta observação: “Desvario laborioso e empobrecedor o de compor extensos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma idéia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que esses livros já existem e oferecer um resumo, um comentário”.

III

À falta de espaço, não se pode aqui tecer comentários sobre todos os autores escolhidos por Mendoza para a coleção que dirigiu, mas deve-se lembrar que, entre os escolhidos, além de Borges, estão grandes nomes como Benito Pérez Galdós (1843-1920), Ramón del Valle-Inclán (1869-1936), Pío Barroja (1872-1956), Juan Valera (1824-1905), Leopoldo Alas Clarín (1852-1901), Rosalía de Castro (1837-1885), José Zorrilla (1817-1893), Miguel de Unamuno (1864-1936), Carmen de Burgos (1867-1932), Emilia Pardo Bazán (1852-1921) e Ramón J. Sender (1901-1982), entre os espanhóis, e Horacio Quiroga (1879-1937), Lydia Cabrera (1899-1991), Ricardo Palma (1833-1919), Rómulo Gallegos (1884-1969) e Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), entre os hispanoamericanos.

Até aqui, temos nomes conhecidos, pelo menos entre os estudiosos da literatura hispânica, mas o que surpreende é que Mendoza tenha ressuscitado também autores que o esquecimento havia atirado ao limbo, como a cubana Gertrudis Gómez de Avellaneda (1814-1873) e Antonio Ros de Olano (1808-1886), nascido em Caracas, filho de um militar catalão e igualmente oficial do exército espanhol, que se tornou mais conhecido por ter inventado um gorro militar que leva o seu nome (ros). Ou ainda Armando Palacio Valdés (1853-1938).

IV

Mas quem foi Armando Palacio Valdés? Ao responder essa pergunta no extenso prólogo de 15 páginas que escreveu, Mendoza lembra que Valdés, até sua morte, foi um dos mais célebres escritores não só na Espanha, mas também em outros países, como Estados Unidos, onde era admirado por estudiosos e por um público-leitor expressivo, e na França, onde recebeu a Legião de Honra. Além disso, seu nome figurou freqüentemente entre os candidatos ao Prêmio Nobel. E vários de seus romances foram levados ao cinema.

Hoje, porém, seu nome figura apenas em rodapés dos modernos manuais de literatura espanhola. E o Wikipedia, na Internet, só lhe reserva duas linhas e uma foto, além da lista de suas obras. A única biografia que lhe fizeram é de 1949 e está fora de catálogo, prejudicada por uma retórica franquista. Por que teria sido condenado a tão implacável olvido? É o que Mendoza procura responder em seu ensaio à guisa de prólogo.

Nascido em Entralgo, aldeia de Astúrias, Valdés era proveniente de uma família bem posta na vida: seu pai fora um advogado que preferira deixar a profissão para cuidar da propriedade rural da família da mulher. Estudou em Oviedo e, depois, em Madri, onde se diplomou em Leis, como o pai, mas nunca exerceu a advocacia. Atraído por amigos literários, fez-se sócio do Ateneo, entidade equivalente a uma academia literária, da qual foi presidente, cargo a que renunciou por causa da postura subversiva de seus sócios, que criticavam a ditadura de Primo de Rivera (1923-1930). Por aí se vê que seria um homem de idéias de direita.

Foi, porém, mais tarde, republicano militante, ainda que nunca tenha se candidatado a cargo público. Fosse como fosse, ainda que de convicções algo retrógadas, diz Mendoza, Valdés foi sempre um republicano confesso, de opiniões moderadas, afável no trato, que vivia de rendas e escrevia por gosto. Casou-se duas vezes e foi por influência de sua segunda mulher que se tornou profundamente religioso. Mas nunca foi extremista: inimigo de todo fanatismo, defendeu o voto feminino e condenou sempre a injustiça social flagrante que existia na Espanha de seu tempo.

Liberal, segundo Mendoza, Valdés encarnou um velho sonho espanhol: o de uma direita civilizada. Seus escritos, sobretudo os dos últimos anos, estão, porém, impregnados de um ar de palácio e sacristia que tanta irritava seus contemporâneos, diz. Mas não era um autor que encarnasse a velha direita espanhola, que haveria de empolgar o poder depois da guerra civil com o general Francisco Franco à frente. Literariamente, pertencia à escola naturalista francesa: seus personagens não tinham muita profundidade psicológica. Mas era um romancista raro: um católico com sentido de humor. “É um homem cujos rígidos princípios morais vão perdendo força, talvez sem que ele saiba, por influência voltaireana”, define Mendoza.

O resultado disso é que seus romances mostram de vez em quando alguns detalhes extravagantes que os redime de qualquer anacronismo. Para provar o que diz, Mendoza transcreve trecho de um dos romances mais célebres de Valdés, Marta y María, em que uma de suas protagonistas, a jovem religiosa María, para imitar os santos da antiguidade, decide se flagelar e, sendo moça de boa família, convoca uma criada para manejar o chicote, até que alcançasse o êxtase místico. Segundo Mendoza, são cenas que fariam corar o marquês de Sade (1740-1814).

Fosse como fosse, talvez isso explique por que os romances (ou novelas, em bom espanhol) de Valdés vendessem em sua época como churros. Tratava-se de um cínico? “Nunca o saberemos”, conclui Mendoza para logo observar que não há como deixar de sentir simpatia por um homem que, ao final da vida, ainda publicou um ensaio intitulado El gobierno de las mujeres em que defendia que a política fosse confiada integralmente ao sexo feminino porque governaria a coisa pública tal como a privada.

V

Eduardo Mendoza Garriga nasceu em Barcelona e viveu dez anos em Nova York (de 1973 a 1982), época em que trabalhou como tradutor da Organização das Nações Unidas (ONU). Atualmente, vive em Barcelona dos direitos autorais de seus livros que igualmente vendem como churros. Surgiu para a literatura espanhola em 1975, três meses antes da morte do generalíssimo Franco, com a publicação de La verdad sobre el caso Savolta (até hoje não traduzido no Brasil). Seu grande livro é La ciudad de los prodígios (1986), publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 1987.

Escreveu ainda outros bons romances que atraem por sua agilidade cinematográfica, como El misterio de la cripta embrujada (1978), El laberinto de las aceitunas (1982), Sin noticias de Gurb (1990), Una comedia ligera (1996), La aventura del tocador de señoras (2001), El último trayecto de Horacio Dos (2002) e Maurício o las elecciones primarias (2006). Em 1989, publicou La isla inaudita, romance bem diferente dos demais, que mostra a sua preocupação em não se repetir.

É autor de um perfil biográfico de Pio Baroja, Baroja la contradicción (2001). Escreveu ainda duas obras teatrais: Restauración (1990) e Gloria (2007). Em colaboração com sua irmã Cristina, é também autor de Barcelona modernista (1989). Suas obras, na maioria, foram publicadas pela Seix Barral, de Barcelona. Maiores informações na página oficial do autor na Internet: www.clubcultura.com/clubliteratura/.../mendoza/

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QUIÉN SE ACUERDA DE ARMANDO PALACIO VALDÉS?: escritores de lengua espanõla: veinticuatro presentaciones e dos prólogos, de Eduardo Mendoza. Barcelona: Galaxia Gutenberg/Círculo de Lectores, 118 págs., 2007, 14,90 euros.
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa e mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispanoamericana pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.br
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domingo, 4 de outubro de 2009

Francisco Carvalho: Utopia e eutopia (Nilto Maciel)



Tenho lido Francisco Carvalho desde minha adolescência. Primeiro nos suplementos literários – que havia disso no Ceará. Publicavam-se neles, semanalmente, poemas, crônicas, contos, estudos dos bons escritores cearenses de então, quase todos do Grupo Clã.

Mais adiante, já taludo, já escrevendo também, já sonhando com ser poeta do tamanho de Francisco Carvalho ou contista da estatura de Moreira Campos (coitado deste sonhador), conheci o futuro autor de Exercícios de Utopia (Fortaleza, Expressão Gráfica, 2009). Foi num dia de 1977, reitoria da UFC, onde trabalhava o poeta, época da revista O Saco, vésperas de eu arribar do Ceará em busca de melhores dias no Sul. O autógrafo constata: 1º de fevereiro. A obra: Pastoral dos Dias Maduros.

Todo o livro é pura poesia, desde os primeiros versos:

“A qualquer hora o espectro do sono flutuará

na penumbra da sala.

As mãos do morto afagarão a estranha latitude

do seu corpo.” (“A visitação)”

Até os derradeiros:

“Chuva, trigo do céu, hulha

na terra espúria do sonho.

Música da nuvem e leite do seu ubre.

Chuva que te quero rubra.” (“Chuva”)

Apresentou-mo o jovem e delirante Carlos Emílio, que frequentava, com desenvoltura, os velhos cultores do delírio em nossa terra, como se fossem seus pares. Além disso, lia Virginia Woolf em inglês, Proust em francês, Thomas Mann em alemão, Cervantes em espanhol. Um prodígio! Eu me contentava – e como ser diferente, se mal sabia ler Alencar em português? – com meus livrinhos ensebados e cheios de traça, comprados à beira das calçadas, no chão, nas ruas do centro de Fortaleza.

Depois, já fugido da seca, exilado no Planalto Central, então a ler traduções de Woolf, Proust, Cervantes, Mann, continuei a me entusiasmar com Francisco Carvalho e todos aqueles que durante muito tempo me ensinaram a ler nos suplementos literários.

Visitei o poeta de Russas, do Brasil e do mundo mais de uma ou duas vezes, se me não engano. Mas o li – e leio – sempre. Não digo todo dia, que mentir muito é feio. Agora – as retinas fatigadas pelo sol, pela sujeira dos dias, pela visita dos micro-organismos –, agora me chegou às mãos este pequeno conjunto de poemas intitulado Exercícios de Utopia. Li-os, entre um gole e outro de cicuta – mato-me aos poucos, por prescrição médica: um comprimido aqui, uma cápsula ali, uma colher de ácido ao meio-dia, outra às vésperas de delirar na cama.

Tudo é salutar nos livros de Francisco Carvalho. Neste, até a capa de Carlos Alberto Alexandre Dantas é de encher os olhos de bom espanto. A apresentação de Gilberto Mendonça Teles é de mestre. E poeta. Os versos, livres ou metrificados, têm ritmo de sonata. As rimas são sonoras, embora haja as comuns. Mas isso não é o mais relevante em poesia. FC é poeta da chuva e da estiagem, da pedra no meio do caminho e das galáxias em rodopio, dos pobres andrajosos e dos tetrarcas de reinos destruídos, dos pássaros, que são anjos em busca do canto, e dos anjos – pássaros emudecidos.

Tudo é pura poesia em Exercícios de Utopia, desde os primeiros versos:

“Acredito nos anjos

que não precisam de asas

para voar.

Moram em casebres de taipa

e recolhem mendigos

para a ceia.” (“Exercícios de utopia”)

Até os derradeiros:

“raios do vento

raios do fogo

raios da chuva

raios de ira de Deus

raios do paráclito

raios que o partam.” (poema 175).

O breve estudo de Gilberto Mendonça Teles se encerra assim: “O certo é que se trata de um excelente Exercícios de utopia, melhor dizendo, de Eutopia, de belo e de bom, deixando para o leitor a sensação de que o natural e o transcendente se juntam no sentido plural de toda grande poesia.”

Fortaleza, 17 de agosto de 2009.
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quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Capitu narradora contemporânea: representações de Capitu por ela mesma (Fabiana de Pinho)




Resumo: O narrador de Dom Casmurro, em leituras possíveis, deseja provar a culpa de sua esposa. Assim, desenha uma menina/mulher Capitu como adúltera em potencial, dissimulada e diabólica. De acordo com Mary Del Priore, ‘Capitu foi descrita com todos os ingredientes de um diabo de saias’’. Essa descrição não foge às representações históricas nas quais as mulheres não só provocavam o mal, mas também seriam capazes de levar um homem à perdição. As representações femininas, construídas sob forte influência do patriarcalismo, estavam fortemente associadas à malignidade que precisaria ser domesticada, sobretudo pelo marido. A Capitu ambígua, vilã, vítima, uma discreta feminista antecessora do feminismo, com olhos de cigana oblíqua e dissimulada, inspirou autores do século seguinte a criar contos, romances, filmes e outras manifestações artísticas. Muitas delas foram criadas depois do advento do feminismo e da abordagem teórica de que feminilidades e masculinidades são construções históricas, portanto, variáveis. Pensando no avanço das discussões sobre a redefinição de papéis masculinos e femininos e tentativas, inclusive teóricas, de desnaturalização das hierarquias de poder, pretende-se com este trabalho investigar em textos - como os contos Dez Libras Esterlinas, de Nilto Maciel, e Capitu: para que saber, de Lya Luft, – que dialogam com Dom Casmurro e cuja narração é conduzida por Capitu, e não mais por Bento Santigo, se ocorreram mudanças na representação da principal personagem feminina de Machado de Assis.

Bibliografia
BOSI, Alfredo. Historia concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix. 2004.
FERNANDES, Rinaldo. Capitu mandou flores. São Paulo, Geração editorial, 2008.
SCHPREJER, Alberto.(org.).Quem é Capitu? Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2008.
STEIN, Ingrid. Figuras femininas em Machado de Assis. Rio de Janeiro, Paz e Terra,1984.
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segunda-feira, 7 de setembro de 2009

O copo azul do menino Caio (Nilto Maciel)


(Caio Porfírio Carneiro)


Há dias não conseguia ler nada, não por mandriice ou fastio das letras, mas por obra de um vírus não-letal, que me deixou quase cego. E cadê tua Maria Kodama? – perguntarão os desconfiados. Para não lhes dar resposta indecorosa, dou um passo adiante.

O primeiro livro lido por mim após o arremetimento do pequeno ser é de meu amigo Caio Porfírio Carneiro. Não um amigo do peito, porque pouco nos vimos, sobretudo porque moramos em cidades bem distantes uma de outra. Ele sempre em São Paulo (“sempre” é exagero de linguagem), para onde se mudou em 1955. Naquele ano eu não o conhecia ainda, como não conhecia nenhum escritor, a não ser os dos livros célebres, como José de Alencar, Machado de Assis, Alexandre Herculano, todos mortos antes do meu nascimento. Enquanto Caio morava na maior metrópole brasileira, eu sobrevivia em Baturité (até 1961), depois em Fortaleza e Brasília. E nunca o via, embora lesse seus livros. Lia por sabê-lo escritor de alta linhagem, além de ser meu conterrâneo. Vi-o pela vez primeira numa tarde do início do século XXI, em Fortaleza, para onde voltei em 2002. Apresentou-mo (ora, eu já o conhecia dos livros, desde os anos 1970) o jovem Pedro Salgueiro, que conhece de perto quase todos os grandes escritores brasileiros nascidos no século XX. Frequenta ou frequentava casas e escritórios – onde toma ou tomava chá, come ou comia biscoito, cochila ou cochilava nos sofás – de nomes eminentes como Dalton Trevisan, José J.Veiga e Rachel de Queiroz. E eu me encantei com Caio, sua prosa nervosa e galopante. Sua simplicidade, sua simpatia. Recebe jovens e velhos sem pedantice, em todo o tempo a brincar.

Toda essa digressão poderá parecer enfadonha ao leitor. É que quero deixar de lado a pretensão de ser crítico literário. Ou escrevinhadeiro de resenhas ou comentários. Serei apenas um cronista que lê (desculpem-me os cronistas se os ofendo, eu que nem consigo escrever crônica) e se serve das leituras para rabiscar frases engatadas a frases.

E aqui começa de fato a crônica da leitura do novo livro de Caio. O título é simpático, embora simples: O copo azul (Scortecci, São Paulo, 2009). Pequenos contos, de uma a cinco páginas. De tão curtos, são poucos os narradores ou protagonistas com nomes explícitos. Mas não é por serem concisos que os nomes são omitidos. É porque Caio escreve alegorias, parábolas, como em “O ponto”. Caio escreve metáforas. É um filósofo. Quando há nomes, como Maria Viviane, o nome não é do narrador ou do personagem central. Maria Viviane é apenas uma lápide.

Alguns desses contos se aproximam perigosamente da nova tendência do chamado “realismo urbano” e destoam do conjunto, como “E daí” e “Capuz”. (Outros escritores muito conhecidos têm se perdido nessas ruelas, como Dalton Trevisan.) Outros relatos de Caio se abeiram da brincadeira literária, como “Pois é”, construído à maneira de peças teatrais. “A travessia” segue esta linha. O melhor do livro está no pintar a alma do homem, perdidos em si mesmos. Seres angustiados, desiludidos (ou ainda iludidos) com sonhos, amores, novidades. Homens velhos à procura do passado. Ou de mulheres que somem, desaparecem, se esfumam nas ruas.

E o que dizer da linguagem, sempre esmerada, tratada com cuidado de ourives, como se cada frase surgisse após longo alisamento manual, como o fazem os artesãos de pequenas peças de barro? Dedicação de artista, de escultor, de apaixonado pela própria obra. Quem escreve com raiva, ódio, vontade de ferir, maltratar, não alcança a arte. Mas falar disso não cabe aqui, pois muito já foi dito a respeito do que seja arte.

Caio Porfírio Carneiro escreve com arte. Até quando brinca, ele brincalhão por natureza, quase menino ainda aos 80 anos. Escreve certo por linhas retas, sem parecer jornalista. Sua linguagem é clara, como se conduzisse o leitor, lado a lado, em conversa franca, por caminhos estreitos ou largos, sob sol forte ou chuva. Ou ao luar. Não quer enganar o leitor, levá-lo a atalhos que vão dar em abismos. Não se embrenha pelos cipoais ou pela caatinga. Não é um regionalista típico. Também não é discípulo cego dos antigos. Caio é Caio. Pra todo tipo de leitor.

Fortaleza, 15 de agosto de 2009.
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