Na mesma linha de denúncia através da farsa ou caricatura, esta novela se estrutura em torno da alienação que marca toda uma geração de índios integrados no mundo dos brancos: do visionário e tolo herói-bufão, Antônio da Silva Cardoso, ao seu bisneto, José, incluindo seu filho João e seu neto Pedro. Todos eles igualmente revoltados contra as autoridades invasoras que destruíram não só a cultura, mas também a dignidade humana dos índios. Todos eles empenhando a própria vida, um a seguir do outro, na luta falaz contra o poder que os esmagava..., mas não chegando além da loucura que determinava os seus gestos e decisões. Todos esses fazedores de guerras nunca desencadeadas!
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domingo, 26 de novembro de 2006
O pio da cauã (Nilto Maciel)
Como se não sentisse o frio que lhe estremece o corpo, voltado para o Camucim distante, Taguaibunuçu solta baforadas de fumo. Olha para o fundo dos vales ainda adormecidos debaixo do lençol da noite. Mira a lua que foge triste por detrás dos montes. Pelas asas geladas do vento volta-lhe aos olhos perdidos a fumaça azulada, misturada à névoa. Acocorado, espera sozinho o regresso do Sol, imerso nas águas, tinto de sangue do mergulho prolongado. Sim, ele despertará a Ibiapaba com o lamber de sua língua ardente.
quinta-feira, 23 de novembro de 2006
Se não leu, leia... (Jorge Medauar)
Em 1977 foi publicada uma antologia do chamado "conto marginal", organizada por Glauco Mattoso e Nilto Maciel, cujo título é Queda de Braço. Ali apareciam autores, uns ainda imaturos, outros com certo pronunciamento mais literário, no sentido de melhor convívio com a difícil arte de escrever. E outros, ainda, já com embocadura de escritor. Dois deles eram exatamente os autores daquela antologia, na verdade um canteiro florindo para futuro literário. Nilto Maciel, cearense de Baturité, na ocasião com 35 anos, comparecia no volume com "As fantásticas Narrações das Meninas do São Francisco" e uma "tragédia wildeana" com o seguinte título: "Sururus no Lupanar". Esses dois trabalhos, além de seu livro de contos, já marcavam um autor realizado, ou pelo menos com embocadura para as letras. O tempo foi caminhando e Nilto Maciel também. Seu livro de contos Tempos de Mula Preta pelo menos por nós foi saudado como ótimo livro de histórias curtas, da mesma forma que A Guerra da Donzela, já reafirmado por várias edições. Depois, esses livros foram sucedidos por Punhalzinho Cravado de Ódio, também de contos.
Vem agora Nilto Maciel com o romance Estaca Zero, edição Edicon, garantindo a carreira ascensional de um trabalhador das letras, que já adquiriu pulso e sabe manobrar a peça literária, nela deixando os sinais de sua criatividade (não tivesse sido ele um publicitário, redigindo com o rigor que a profissão impõe). Infelizmente, na exiguidade de espaço aqui disponível, não se pode comentar com mais amplidão o desenvolvimento desse seu romance, que mostra, como diz a editora, "a ação jurídico-policial contra os favelados, a morte de um operário, a violência acobertada pela lei". Por essa breve indicação já é possível avaliar-se a importância e atualidade dessa história, que vem a ser um dos aspectos sociais da luta pela sobrevivência de grandes massas populacionais, injustiçadas pelos desníveis econômicos e pela incúria política e governamental. Um livro para ser meditado, diante das reflexões de seu narrador.
(Gazeta de Moema, SP, 15 a 21 de agosto de 1987)
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Um novo homem (Nilto Maciel)
No dia de seu último natalício, Erialdo se viu agraciado com um pequeno cão. O presente saiu do coração solteirão de uma colega de sala. Por que diabos fulana presenteou-lhe aquela coisa viva? Bem podia ter pensado num acessório para o carro ou numa camisa.
Com o tempo, Erialdo se afeiçoou ao animal, a quem deu o nome de Ecce Homo, em homenagem ao seu antigo professor de latim.
terça-feira, 21 de novembro de 2006
De fantasmas e de favela: relatos (Hygia Calmon Ferreira)
Numa primeira abordagem de Estaca Zero de Nilto Maciel, a articulação interna do texto coloca o leitor diante de uma relação de tensão dialética entre a voz do narrador-personagem e as demais vozes. É assim que a ideologia subjacente se revela, implícita o explicitamente, através do dúplice discurso: de um lado, a figura do algoz/opressor/manipulador – a força, a persuasão, a ordem institucionalizada, o insulto, a imposição, o "sermão” –, da qual se fazem representantes Dr. Anísio Tanlares (o juiz), Dr. José Monte (o psiquiatra), Cordeiro Matos (o major), Luiz Rolim (o construtor e proprietário do terreno), Carlos Marinho (advogado do então comprador), Vicente (o tabelião), Seu Bernardo (o falso oprimido), Esmeraldo (o corretor) e, por extensão, a mulher deste, Violeta (a alienada); de outro, a figura do réu/oprimido/manipulado – o aniquilamento, aceitação, o caos, o silêncio do "sem voz", a submissão, o discurso fragmentado e por vezes ilógico de Cesário Valverde, anterior dono da favela Estaca Zero. Josefina, a irmã, é o ser alheio que se manifesta parcamente através de rezas, resmungos e cochichos.
O verdadeiro Mangarobeira (Nilto Maciel)
Dando prosseguimento ao nosso estudo sobre os heróis nacionais, dedicaremos a aula de hoje à figura do Marechal Mangarobeira.
Segundo os historiadores, sobretudo Francisco Rodolfo de Varrasco e João Capitolino de Trigona, homens criativos por excelência, mormente no apelidar personagens históricas, o Marechal Mangarobeira recebeu em vida alguns cognomes, entre eles o de Marechal de Pau.
Voltando às alcunhas, quero relembrar uns nomes famosos e seus respectivos apelidos. Direi os primeiros e vocês completarão. Vamos lá. Pepino. O Breve. Muito bem. Ivã. O Terrível. Ótimo. Guilherme. O Conquistador. Basta.
sábado, 18 de novembro de 2006
Estaca zero (José Alcides Pinto)
"Após as palmas e os chamados, Esmeraldo encostou à cara na tábua da porta e fechou um olho. No piso de madeira uma barata passeava, volumosa, tranqüila. Na parede a barba imperial do meu avô olhava para o lado da rua, cheia de rugas, solene. Mais ao lado, um Deus soprava nuvens e fúrias, ancião poderoso e terrível."
Um Canto, um Auto, um Grito Social, pode ser tudo isso Estaca Zero, o pequeno, mas significativo romance de Nilto Maciel, lançado pela Edicon, São Paulo.
A vida eterna de Luís Lamento (Nilto Maciel)
A notícia da morte de Luís Lamento arrastou para as ruas milhares de pessoas. O choro coletivo inundou as cidades num abrir e fechar de olhos, feito rios transbordantes. Alguns grupos iniciaram saques e depredações. Porta-vozes do governo trataram de desmentir a tragédia, antes que os pequenos tumultos se transformassem em grandes distúrbios. Apesar disso, os mais radicais não desistiram de quebrar vidraças, incendiar carros e praticar toda a sorte de vandalismos. A maioria, porém, conteve as lágrimas e voltou para casa. E a polícia baixou o pau em cima dos descrentes. Presos alguns, feridos outros, no início da noite acabaram-se as escaramuças.
quarta-feira, 15 de novembro de 2006
Estaca zero (Dimas Macedo)
Num dos trechos da novela A Guerra da Donzela, do escritor cearense Nilto Maciel, pode ser lida esta assustadora interrogação: quem, todavia, poderá conter as palavras?”. Conhecendo, como conheço, as possibilidades da escritura de Nilto Maciel, responderia que certamente não seria Cesário Valverde, o torturado e inquieto narrador do seu último romance, um personagem com certeza colocado à margem do próprio discurso que deliberadamente busca resenhar.
Masmorrer (Nilto Maciel)
O GRANDALHÃO
percebeu o Rapazinho a olhar para suas pernonas cabeludas e virou a cabeça, afobado, para o outro lado. Certamente pensa no mundo lá fora, na longa viagem ou em qualquer acontecimento de seu passado. Ou pensava. Abaixou a cabeça, coçou as suíças esquerdas, rum rum rum. O Ruivo ergueu as sobrancelhas a se apagarem ao sol e passeou os olhos esbugalhados pelas faces dos companheiros de pernas estiradas ao logo do chão. E fixou-os, assustados, no negro dos olhos do Baixote sentado ao ângulo oposto ao seu. O Baixote abriu um sorriso preguiçoso nos cantos da boca, que murchou abrupto num olhar para o céu. Nuns olhares para os céus. Nada de especial lá em cima: só o sol a pino e brancas nuvens a deslizarem, desgovernadas, feito barcos sem remo. Aproveitou-se da distração geral para sacudir a dormência das pernas e fazer um careta assombrosa. Mexeram-se odiosos os lábios grossos e o queixo barbudo do Grandão e os quatro muros de pedra entoaram um grito de guerra: vamos ficar aqui parados esperando pela morte? O Rapazinho levou a mão da testa ao queixo e deixou-a por mais segundos no nariz. O Cabeça Chata tremelicou de assombro.
ESMURRARAM OS MUROS
como se um deus medonho os impelisse a rir com o rigor dos furiosos, aviando as raivas grudadas nas profundas de seus desejos sufocados. Fizeram-se bumbuns estrondeantes. Qual das quatro paredes seria a mais frágil, a mais demolível, a mais rachável ao som daquele bater insistente? Pedras! Partiram da coragem recém-parida a decisão de agir do Ruivo, que girou sobre os pés, dançarino saltitante. Mas nada de pedras havia, nada que pudesse de picareta demolidora servir, nada além de mãos, corpos exauridos de esforços e fadiga.
ESCAVACARAM AS RÍGIDAS E PÉTREAS PAREDES ESCURAS
com as mãos cansadas, embora calosas, másculas, musculosas, insetos sem eira nem beira nem ramo de figueira, naquele mundão de pedra, ferro e concreto, grandes insetos amordaçados pela prisão e pela morte no oco do mundo. E feriram-se as pontas dos dedos, caídas as unhas de tanta labuta, rac rac rac, e encheu-se o pátio de imprecações desesperadoras: Que crueldade! E os muros insensíveis se lambuzaram de crueldades sangrentas.
NAQUELE ABANDONO
mais intolerável que as barbáries dantanho, naquela imensa solidão, naquele estar livre de donos ou chefes, o continuar a ser seria uma quimera inalcançável, cansável. E famintos da fome fugida dos vales de lágrimas, governados, reinados, imperados, e asilada naquele minúsculo campo de morte, entoaram gritos, gemidos roucos e loucos e mirraram os mirtos, as murtas semimortas que não mais puderam escavacar, cavacar as rijas paredes pétreas, concretas erectas e caíram, desfalecidos, sangrados, as mãos calosas, embora rubras tinturas tingidas e os muros tão duros de misteriosas imprecações de crueldades pintados, tão iníquas e ferozes para humanos corpos mui frágeis diante de quão estúpidos e cúpidos minerais. A inércia do cansaço e da fome e do desespero nascida e da inépcia humana diante das pedras inúteis, vorazes, ferozes.
O EXCITADO RAPAZINHO
viu estrelas no céu e um sol que se apagou, ai, e cambaleou como se o peso do globo sobre seu corpo rolasse e lento caiu. Os olhares capiongos, molengas, capengas, famintos de seus ex-companheiros se foram encontrando na altura distante de seu corpo inerte. E olharam tão longos com seus olhos tão grandes e suas vistas tão miúdas o corpo mais magro alvacento de fome caído, molambo quem sabe já findo. Se sentiram penas da leveza do corpo franzino, o sentir não disseram.
O muro... o muro furar já não pode, espirrou vagarosa de dentro do Gigante uma voz de quem perde inseparável amigo do peito.
O Ruivo, a lembrar a negrura dos olhos do caçula então estirado qual lençol mal lavado, piscou: vai morrer, se não já morreu.
ENTREOLHARAM-SE FEITO URUBUS SONOLENTOS
capengaram ao redor do magrorrível cadáver. Seus olhos brilharam, luzes de azeite, e num leve roçar dos ventos da tarde balançaram pendentes, feito chamas na noite.
Estamos com fome, fome demais, curvou-se o costado já menos largo do antigo Sansão.
Um minuto dançou no espaço por entre a estática dos três masmorrentos que lentos se acocoravam num rito profano, círculo macabro ao redor do caído.
Mexeu-se o Ruivo pralápracá, lenguelengue, e de todo este esforço brotou mansa mensagem de vida longuinha: a carne dele... e um suspiro tremeu em seu todo até derramar suores da face incolor no chão ressequido ou nas pontas inchadas dos pés alargados. Pulo ágil qual fera faminta: então vamos, vamos logo! O novo Grandão sobre a massa deitada que pareceu (ou fantasma, meu deus?) defender-se do assalto do alto repentinamente inesperado e por fim mais dois se fizeram, embora mais lentos ou tardos, rasgando-lhe as carnes já mansas, cordeiros de deus, à custa de mordidelas sangrentas com suas sujas e horríveis bocarras, sarracob sarracob.
UM MONTINHO DE OSSOS BRANQUÍSSIMOS
ao pé do muro jazia de jazigos esquecido. E distantes solitários em si dormiam nojentos chacais, bestas suspirantes, porcos roncadores, demônios em sonhos. E de suas crateras imundas esgotos vermelhos evolava um odor de monturo e carniças, tingindo o ar dum cinza opaco nevoento, prenúncio de grandes tempestades, abismos insondáveis, noites trevosas.
MEIA-NOITE O DIA ABORTOU
nos olhas medonhos medolhos do Grandão que acordou assustado, suado, sujado e debateu-se no chão qual pássaro de asas quebradas, olhou pra noite grandona de seu espelho partido e escancarou a bocarra nauseabunda. Dobrou meio corpo alquebrado, sacolejou os ombros cansados e fez-se ereto, feito macaco primevo. Através da luz dos céus tão distantes descobriu as figuras adormecidas de seus comparsas, cismou, tremeu, recordou o recente passado, os ossos como a se triturarem nos cantos do muro, como se deles se alevantassem almas penadas e abraçá-lo viessem quais brancas jibóias. Gritou, esmurrou a parede, chutou o montículo de ossos que saltaram pelos quatro cantos daquele estreitíssimo mundo de mortos, acordando os dormidos de contentamento do banquete de ontem: malditos! Nas trevas o esbravejo destruía os sonhos.
MONÓTONO BATICUM
pumpumpum se paria do encontro daquelas sofridas, sangradas, disformes, calosas, pétreas, férreas mãos com os muros odiados, horizontes de pedra. E no doudo bater as mãos mã mã mãs sam sã sãs soam so-ã ãã ai aiai ais gemiam.
Durante horas e horas batucaram possessos nos juros-feitiço num ritmo desvairado de ritos desesperados, em suores e ódios, escavadores de minas profundas em busca de riquezas brilhosas, ávidos, imávidos, cansados, cambaleantes, sambaleantes de fome e dor.
UM PÁSSARO VOAVA NO CÉU
e se aproximava feito nuvem grávida. Sim, o grande pássaro ancestral piava nas entranhas agouros de desesperos e medo da morte e nos cérebros entorpecidos desejos indomáveis. E se retorciam, mágicos obscenos, crispavam as mãos desfeitas em cores e líqüidos indefiníveis em movimentos ritmados, como querendo saltar sobre as garupas mais próximas. E esmurravam odientos e horríveis as rochas firmes e impenetráveis, inconscientes da mentira de todas as sabedorias: as pedras duras não se abalavam sequer ao bater das águas moles.
O RUIVO TREMEU E CHOROU
e de seus antigos lábios escapuliu a anunciação temível: ela voltou. Logo, muito logo, um quem cretino se evaporou das restantes bocas, a ensurdecer o muro e escancarar os olhos e encher o poço de espantos medrosos.
Acocoraram-se lentos e abraçaram-se febris. O Ruivo principiou a nomeação da teimosa assassina: fo...
O GRANDALHÃO OS DENTES RANGEU
e babou e a pesada ainda mão direita desviou da inquebrantável parede para a nuca suada do Cabeça Chata ao seu lado. Como um boneco de palha, o raquítico espantalho abraçou-se ao muro e lenta, lenta men te es cor re gou pro chão num gemido plangente.
O Baixote afastou-se num passo em falso, fugindo à fúria, e benzeu-se medroso e heróico:
Que foi?
Os dois companheiros dobraram os joelhos fervorosos sobre o coitado caído e rezaram-lhe as carnes, repletos de esperança.
AGIGANTOU-SE A BRANCURA
num dos cantos do muro. Nos demais os faustosos gargântuas cochilam, acordam, gemem e se assustam e se olham e descobrem fantasmas por todos os lados. E se grudam às paredes perdidos no fundo do poço com medo dos olhos, dos ossos, dos pés que caminham, das mãos que agarram, das mentes que pensam. E se abraçam ao silêncio e recordam os bumbuns e não podem jamais esmurrar as paredes, de costas para elas. E a luz não veio e a treva se fez. E a morte era louca a voar e gritar debaixo das terras, detrás das paredes, nos ares distantes.
IMENSO TOURO MANSO
ergueu-se e vislumbrou num canto o Sarará que esticou as pernas mole, olhos fixos na frente e noutro o Baixote que chutou o cochilo com violência antes de Golias o engolir.
Do fundo do poço almas penadas lembraram os ossos insepultos, antes repasto que imagem. E o convite “vamos” veio a seguir da alva podridão do Gigante. As outras bocas ressequidas se abriram numa reprise estropiada. Imóveis, apenas piscaram os olhos semicerrados na direção dos restos acumulados.
A temeridade do hércules-quasímodo comandou a investida do minúsculo batalhão: Vamos! E caminhou passos trôpegos de brucutu rumo ao alvo cúmulo de ossos reluzentes das luzes dos corpos celestes distantes. Dobrado qual fiel, o Ruivo implorou: Jogue um, em incrível semientrega do ângulo frígido às suas costas, enquanto noutro extremo o Baixo ar ar arfava e migalhava um naco naquinho de tíbia ou costela.
O Grandalhão já mordia, lambia, chupava os ossos ressequidos mas orvalhados pela frieza da noite que descambava pé ante pé pros abismos da infinita nostalgia. E, no meio de toda esta negrura espantosa, brancura dos ossos e dentes do guloso nocauteador engelharam as faces, suores correram e rangeres rasgaram os tímpanos sujos dos dois: Palermões! E, em gozo ou gemido, o fantástico comilão imaginou gordurosas e tenras coxonas de porco como não conhecera jamais. Assuntou e assustou-se com os próprios ruídos que faziam seus dentes na dureza dos ossos e num choque imprevisto arremessou os dois fêmures contra os sonolentos espiadores. Que se defenderam e agradeceram a dádiva voante qual pássaro crescente em alvura e rapidez. E partiram o crânio rolante, bola de neve a agigantar-se, e raquíticas costelas pra saciedade das fomes enormes dos jecatatus acocorados. E a madrugada escorregou pelos muros feito gatunos fantasiados de amarelo clarinho.
GIGANTESCA ESTRELA
acordou o delírio nos três mosqueados que espiavam os suores e esgares espraiados por toda a extensão de suas pálidas máscaras.
O derrotado hércules sussurrou um grito no vastíssimo cubículo, ei solidário que aos outros um susto medonho causou e se verbalizou num huumm bivocal qual trovão. E uma tempestade de babas e fantásticos motores voou sobre as pistas de pouso molhadas: cuidado, pilotos, voar é preciso, buscar as alturas. E as mãos se estraçalharam de encontro às testas frias, suadas. Desastre!
MEUS DESGRAÇADOS IRMÃOS
bradou maquiavélico o líder por obra e força: é preciso a morte de mais um pra saciar nossa fome demais. Quem quer a mim se aliar pra se empanturrar de couros e ossos?
Como trôpegos insetos em busca do abrigo do abraço definitivo, a vomitar eus que se misturaram e rangeram por pouquíssimos segundos, os dois inimigos correram malditos em busca dos braços mordaços do valente chefão. O Baixote se esfregou nos metros de muro e desequilibrado esparramou-se aos pés mui crescidos do provocador. Ligeiro, o Ruivo frenou a um passo do corpo recém-derramado.
ABRAÇADOS FEITO FERAS
pareciam um só disforme corpo a contorcer-se em agonia dolorosa e entrelaçados como titãs apaixonados, fungavam, mordiam, urravam, choravam, morriam pela vitória sem sentido. Súbito estupenda marrretada prostrou-os para a carnificina final.
TODA A CARA FEROZ DO TITÃ
penetrou crac no pescoço quebrado do Ruivo que emitiu um ai doloroso e profundo. Jorrou por toda a redondeza um líqüido quase vermelho annnn e o espanto do rosto místico do incrível vampiro cresceu. Outro crac noutro pescoço, outro ai pungentíssimo e a mesma danação de tinta rubra salpicou e cegou o monstro que alevantou a cabeçorra lambuzada pra sorvê-la como a límpida água da fonte da vida que bom, qui bum quibum, chuuuu, lept lept, não mais ais, só lepts-chus-cracs, violentas mordidelas, vampirescas, medonhas, vorazes, ferozes, vermelhos olhos enterrados nas carnes ossudas: olhos, nariz, boca, a cara toda enfiada nas magrezas, a roer já rija ossatura aiaiai.
TANTA FOI A FARTANÇA
e quanta a festança que o solitário golias, já divinizado, gemeu e gemeu por dias e dias, gritos de dores, contorções de berros, enormes diarréias derramadas, sujeiras demais recriadas, envolto em sonhos pesadelos à beira da morte e da loucura, ai que desta vez eu morro sozinho no meio do horror, entre quatro paredes perdido num mundo de podridões e ossadas.
BATALHAS? QUE BATALHAS?
Rapinas aqui não houve jamais, este mundo sempre foi pequeno assim, cercado por quatro muralhas de bronze e minhas asas eu as quebrei em luta titânica contra pássaros de fogo, porque se asas ainda tivesse, juro: voaria para a estrela menor deste céu e estes muros, estes estreitos e baixos murinhos deixaria pra trás, para sempre fugiria pumpumpum, e os ecos tão frágeis dos bumbuns quase mudos soavam nos muros pumpumpum. Bateu e bateu té as mãos se racharem e os dedos doerem até perto dos ombros mui largos, das costas e dos pés inchados e grandes. E pontapés desferiu a torto e a direito, insultos bradou à secular muralha de pedra erguida gigante qual forte antigo, para cair em sangues, como se chibata de ferro açoitasse constante, e dormir de sofrer de viver entre quatro paredes de ferro, de pedra, de bronze, de diabo, satanás, maldição.
A FOME ACORDOU-O FERIDO
vermelho, distante da podridão das carnes não devoradas, dos restos dos outros derretidos no chão calcinado de sóis amarelos tão próximos e gastos de tanto arder na fogueira dos tempos incontados, perdidos entre espaços no espaço tão curto de quatro paredes, muralhas de ferro, de bronze, de pedra. Ergueu-se bambo molambo e tombou e dançou de sono ou fraqueza, a vomitar arco-íris, sangues e fezes. Prostrou-se por sobre as recordações dos montes de ossos: franzino rapaz fugiste primeiro, cabeça chata que apenas gemeu ao murro feroz e dois imbecis a brigar por mim neste chão asqueroso de pedras e horrores, que coisa, meu deus, livrai-me da fome, da dor, da prisão, desta vida maldita, levai-me, meu deus, devorai-me, matai-me, senhor.
O SOL VERMELHO-AMARELO
dançava entre cordeiros brancos no palco azul e lindo lindo. No horizonte a guilhotina se espremia feito caixa mágica e estranhas figuras de lobos se contorciam no poço e penetravam em sua boca e se metiam em seus olhos lúgubres, cisternas onde boiavam gêneses e apocalipses e passeavam pelos labirintos de seus ouvidos e faziam bacanais nas profundezas de seu cérebro com as formigas-mastodontes que corriam nos prados e se atolavam nos pântanos e se revolviam em convulsões e se expeliam em cachoeiras de detritos que queimavam a terra revolta, abalada, sofrida.
O LOBO DECRÉPITO
correu, saltitou, farejou, lambeu-se, sonhou, saltou os baixos muros do forte e caiu de bruços, de costas, estatelado, a beber sol, lua, estrelas, nuvens fugitivas no alto ou no baixo do terror instalado no universo em gritos, loas satânicas para expulsar os animais descomunais passantes preguiçosos dos labirintos das montanhas amarelas.
SILENCIOSO CRAC
ouviu-se, quando bruto safanão fez sangrar até às raízes a árvore murcha entre as duas colunas. Depois abocanhou guloso, como se mastigasse os frutos primitivos da árvore da vida, a morder voraz o cacho que balouçava ao sopro do vento. E, neste ritmo, correu atlético, fauno castrado, a esmurrar a parede, maldita bastilha, sou bravo, sou forte, sou filho das selvas, meu canto de morte, guerreiros, ouvi.
HORRÍVEL FIGURA
que espelho não via, sorria contente de ter esmurrado a pedra erguida dez metros de altura e chorou a seguir de mais fome sentida e sentado lambeu e mordeu e comeu os dedos inchados dos pés muito gordos de tanto correr. E comeu satisfeito e bebeu o licor que dos troncos corria.
NO SONHO CORRIA
e cantava estranhas canções de guerra e de paz, de amor e de ódio. E com Jesus conversava, com o Ruivo, com todos os fantasmas que dormiam nos vermes e contentes da vida e da morte passeavam no pátio. E jantou dedo mindinho, seu vizinho, maior de todos, fura-bolos, cata piolhos, chupeta na boca, a cantar cantiga de ninar, dorme menino, eu tenho o que fazer.
AS AGUDAS LÂMINAS DO FRIO
picotaram seu corpo e um pássaro agourento piou lá nas alturas e bateu as asas com estardalhaço. Assustado, correu e pulou para ver nas dobras das asas do pássaro gigante uma negra aranha grudada. A bandeira hasteada tremia, mostrava e escondia a cruz gamada da imensa masmorra.
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segunda-feira, 13 de novembro de 2006
A estética de um ritual (Batista de Lima)
Estaca Zero, de Nilto Maciel, é um ritual. Só isso. Nada mais seria necessário dizer, após a leitura das 66 páginas desse romance. Ou como ele próprio diz, pela boca do personagem Cesário Valverde: "um bom esboço de romance" (pág. 65), onde "tudo é obra de fantasmas" (idem), e também onde "se resiste à custa de palavras" (66).
Por falar em personagem, não se sabe em torno de quem gravita a narrativa. De Cesário, que encabeça os principais aconteceres em primeira pessoa e discurso indireto? Da favela "Estaca Zero”, que é a síntese dos problemas sociais e periféricos de qualquer metrópole brasileira? Ou do próprio fazer do romance, da metodologia do narrar? Tem-se, pois, três opções a seguir, como três saídas labirínticas que partem de um eixo central que é o enredo engendrado pelo autor.
O suplício de Geruza (Nilto Maciel)
(Toulouse Lautrec)
Cautelosamente mostramos os dentes emprestados para os sorrisos programados, enquanto caminhávamos em perfeita ordem, sob o olhar do público. Cabeças erguidas e olhos enxutos, deveríamos guardar todas as emoções para o final.
Por um instante vi Emanuela nervosa e pálida na platéia. Talvez chorasse ou risse. Não sei se acenava ou dizia adeus. Nosso amor já fazia parte do passado, nossos dias, nossas noites. Desviei os olhos dela e olhei para a água. De que me servia sentir saudades, rememorar nossa vidinha cheia de mistérios e segredos, se com toda a certeza eu não voltaria vivo daquele salto? As águas seriam minhas novas companheiras dali até a morte. Eu terminaria inchado como uma fruta podre lançada ao poço, esquecido tão logo se consumasse meu fim e tão apavorada como nos meus mil sonhos intermináveis.
sexta-feira, 10 de novembro de 2006
Estaca zero: A literatura renova pergunta (Eduardo Luz)
Através do registro simbólico, o romance de 30 colocou a grave pergunta sobre a teimosa permanência da miséria nordestina. Os dramas regionais então representados pela Literatura lograram receber uma resposta a partir da utopia configurada pelo "nacional desenvolvimentismo" dos anos 50 e 60. Estaca Zero1, de Nilto Maciel, irá renovar a pergunta formulada por aqueles romancistas sociais, conectando Literatura e História por meio de uma intertextualidade deliberada, sardônica e emocional, capaz de sustentar o painel alegórico do cruel processo de nossa formação social.
Rotação (Nilto Maciel)
Eles liam pausadamente, compassadamente, demoradamente. Liam em voz alta, para que todos ouvissem suas palavras. Às vezes cantochão, deslizar suave de água mansa. Alguns chegavam a cochilar. Adiante, a voz se fazia áspera, gritante. Arregalavam os olhos, empertigavam-se. Nenhuma atenção fugia do leitor. Todos encantados. Para mim, no entanto, o salão se enchia de palavras ininteligíveis. Ou então nunca mais voltei a ouvi-las, apesar de ter sempre os ouvidos atentos. Eu todo me voltava, em todos os sentidos, para o que diziam e faziam. Os livros passavam de mão a mão, assim como meu corpo infante, num ritual monótono. As mãos, aquelas mãos tão diferentes entre si, às vezes brutais, voltadas unicamente para os livros e as palavras. Aquelas mãos que de mim faziam mero objeto, obrigado a estar e ouvir. E a girar.
quarta-feira, 8 de novembro de 2006
A guerra da donzela (Silvério da Costa)
Li-o na praia, durante as férias, e me encantei! Nilto, que é um contista nato, dos melhores que este país tem, provou, com este livro, que também domina a novelística de forma irretocável. Embora publicado em 1982, ele foi, para mim, um excelente presente de fim de ano, pela forma como a leitura mexeu comigo.
A obra relata a história do suposto seqüestro de uma donzela, que ninguém sabe quem é. Tudo se desenrola a partir de uma falsa notícia que se espalha e transforma, rapidamente, num alvoroço generalizado, com a adesão, incontrolável, dos perseguidores do raptor. O grupo agiganta-se, assustadoramente, perseguindo pessoas, invadindo casas e acabando no mato, à entrada de uma gruta, onde, supostamente, estaria escondido o raptor. Só que a gruta era habitada por monstros que só existem, é claro, no inconsciente coletivo daquela comunidade e cuja origem está ligada a determinados valores, como a moral e a ética.
A guerra que se trava, portanto, é basicamente cultural e comportamental, deixando ao léu cenas e atitudes tão patéticas que beiram as fronteiras do ridículo e da paranóia.
Claro que outras leituras podem e devem ser inferidas, não fora tão rico e abundante o poder imaginativo de Nilto Maciel, que se valeu da linguagem poética, em grande parte da obra, para emocionar ainda mais a ação.
(Diário do Iguaçu, Chapecó, SC, 24/3/1999)
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O julgamento (Nilto Maciel)
A desgraça, descarga megatômica, se abateu sobre nós, de forma impiedosa. Deus nos castiga com seu chicote de ferro, como se tivéssemos cometido infinitamente os pecados das Tábuas da Lei. E eu, que fiz eu, que não me lembro? Terá sido pecado tão terrível todo o sofrimento que sempre tive? Esta série incontável de malogros que não consigo esquecer? Ou, meu Deus, a rebelião que arquitetei e cometi contra o poder de meu pai? Mas nunca o ofendi publicamente, nunca o esbordoei, nunca sonhei a sua morte. Se o ofendi, o fiz em silêncio, nas longas noites de insônia, em sonhos e pesadelos, histórias horrorosas que jamais inventei, e apenas fluíam como águas da terra, incontrolavelmente. Ou terá sido aquela mancebia tão conscientemente esquecida, eu tão jovem e necessitado de amor, de três anos apenas, com a pobre Raquel, coitada, onde estará? Ou a prodigalidade vivida por tanto tempo, a esbanjar como não devia, a deixar de dar a eles, meus pais e irmãos, o tanto precisado? Ou esse casamento malfadado, com essa menina tornada adulta tão de repente? Ou essa fuga precipitada e alucinante, como um bandido caçado insistentemente, para este fim de mundo? Ou o abandono a que lancei meu querido Aécio, para morrer só como um leproso? Não sei, não sei. Ou terá sido tudo isso, todo esse rosário de erros? Estou desgraçado pelo resto da vida. Vou penar ainda mais como um vil pecador. Morrer e parar nas profundezas do Inferno. Não, vou cair eternamente nas labaredas infinitas, inteiro e consciente de minha perdição. Mas, meu Deus, tenha piedade de mim, ajude-me, socorra-me, livre-me dessa dor, desse tormento, desse momento e das dores maiores que me esperam. Dê-me um fim sem dor, perdoe-me todos os pecados e leve-me para sua morada. Seja piedoso! Sou um pobre ser humano ignorante do que faz e fez. Se errei, não foi por querer, mas por não saber. Eu queria ser bom, eu sempre quis ser bom. Eu juro, era assim.
segunda-feira, 6 de novembro de 2006
A guerra da donzela (Nelly Novaes Coelho)
Girando em torno de um pretenso rapto de moça, feito na calada da noite, a efabulação vai revelando (através do alvoroço e medo que sacodem uma pacata cidade no interior cearense, palco do acontecimento) os costumes e preconceitos que fundamentam a estrutura e profundidade em que atua o grande tabu da civilização cristã: o da violenta repressão ao sexo.
A propósito desse rapto, o narrador vai registrando, em flashs, as cômicas reações dos habitantes da cidade, desnorteados e apavorados com o gesto de liberdade que afrontava a solidez de seus costumes. Nunca se soube quem eram a “donzela raptada” e seu “raptor”. Bastou o boato para que, num crescendo cômico-trágico, se criasse uma situação de guerra, com a formação de um batalhão de voluntários, comandados pelo alucinado Francisco Sombra. É extraordinária a arte com que o narrador trabalha sobre o nada (em matéria de fatos reais), consegue criar situações que se sucedem, cada qual mais absurda ou inverossímil do que a outra, mas aceita por todos como verdadeiras, devido ao clima de alucinação em que todos mergulharam. Inclusive com o aparecimento de seres monstruosos e ameaçadores: o gigante Gorjala, o porcão preto, o ovão do tamanho de uma jaca, o cururuzão e outros monstros que, gerados no nível profundo do inconsciente coletivo, correspondem à grande ameaça representada pelo tabu do sexo que fora violado. Violação que a todos causa repulsa e medo, porque ao nível do inconsciente é o que todos ansiavam por cometer. É essa, sem dúvida, uma das mais contundentes denúncias, feitas pela literatura contemporânea brasileira, acerca da violência contra o ser humano que, há séculos, vem sendo cometida pela repressão sexual, que está na base da sociedade tradicional.
(Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira, p. 873, 4.ª edição, EDUSP, Editora da Universidade de São Paulo, 1995)
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A perseguição (Nilto Maciel)
Após perambular por ruas escuras e desertas, eu só queria dormir ou descobrir um modo de afugentar os urubus que me bicavam a solidão. Devia ser mais de meia-noite. Não se via uma só pessoa na rua e eu caminhava sem pressa. De repente pressenti que alguém me seguia. Ouvi-lhe a zoada das pisadas. Tranquilizei-me: certamente outro solitário vagabundo com quem poderia conversar por alguns minutos de caminhada. Pouco me importava fosse uma puta desleixada e doente, um bêbado sem rumo e delirante, um mendigo à cata de pouso e mudo. Olhei de esguelha e achei tratar-se de homem de passo firme e boa aparência. Andava na mesma vagareza com que eu passava pelas casas dormidas. Estranhei não se aproximasse um metro sequer de mim E se se tratasse de um assaltante? Deveria enfrentá-lo ou correr? Meti as mãos nos bolsos. Nada me faltava ainda: chaves, cigarros, lenço, documentos, dinheiro. Apressei o passo, por cautela. Logo, porém, mudei de idéia. Seria mesmo um mendigo e não me custava nada dar-lhe uma esmola e um boa-noite. Também logo desisti da piedade. Devia ser um estrangulador, um maníaco qualquer.
sábado, 4 de novembro de 2006
A guerra da donzela (Valdivino Braz)
Nos "Primórdios" da narrativa um fato já desponta de modo a fixar-se na mente do leitor e aí permanecer sedimentado durante toda a trama engendrada pelo escritor (ou, por outro lado, pela personagem Thaumaturgo), vindo à tona sempre e à medida que o nome de Antônio Jucá vai surgindo em meio à trama. Um fato comum, o querer o filho vingar a mãe com a morte do pai, mas tratado com técnica e arte, de modo a descortinar um outro painel, paralelo e rico de conteúdo. O desfecho do romance, quando tudo culmina como um clarão, ligando a parte final aos primórdios, constitui uma prova disso. Uma trama bem urdida, capaz de prender o leitor e conduzi-lo até o fim. Ao final, tem-se todo um quadro de situações para se refletir e dele depreender realidades, posto que armado a partir do verossímil.
quinta-feira, 2 de novembro de 2006
A guerra de Palma (Batista de Lima)
Palma é uma cidadezinha cearense, fictícia, encravada nas dobras da Serra do Baturité. Cenário criado por Nilto Maciel para livre trânsito de seus personagens. Esse lugarejo é o protótipo da maioria das cidades que salpicam nossos sertões. Com seus problemas, seu folclore, seus esquemas de dominação e principalmente com seu poder arregimentador brotado do senso de cooperação existente no inconsciente coletivo. Neste clima, Nilto Maciel apresenta o pretenso rapto de uma donzela. A partir desse momento começam a acontecer episódios que vão do real ao fantástico.
A noite das garrafadas (Nilto Maciel)
A hora talvez fosse tarde. A janta, nem lembrávamos mais dela. Baião-de-dois, ovos, com tempero de coentro e cebola. Ou cuscuz com leite. Depois rezamos o terço, ave-maria cheia de graça, padre-nosso que estais nos céus, kyrie, eleison, atos de fé, esperança, caridade e contrição. Ajoelhados, cansados, eu pensei o tempo todo nas meninas da nossa rua. Só queríamos que aquilo terminasse logo e pudéssemos jogar damas, dominó, baralho.
quarta-feira, 1 de novembro de 2006
A caça dos monstros pelos monstros (Salomão Sousa)
De início, tem-se a impressão de os burros irem dar n’água, de tratar-se de mais um caso de desonra, de defloramento. O leitor mais desavisado, em erro, será tentado a desistir da leitura.
Quando se defronta com um caso destes, pergunta-se porque o autor não começou a obra com outro motivo: a morte de um cachorro, a derrubada de uma casa? O papel do ficcionista é ficcionar, não ficar preso a fórmulas prontas.
A brincadeira (Nilto Maciel)
A última brincadeira de Alberto terminou mal. Funeral nem houve. Os parentes mais próximos choraram, mas sequer viram seu cadáver. Como estaria? Mutilado, disforme, horrível?
Alberto, um meninão. Ninguém o levava a sério. Para quê, se ele brincava até de chorar e rir?
O mundo é uma peteca, dizia. E largava a palma da mão no tempo.
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