1.ª PARTE
JOSÉ (falando a outros romeiros):
Meus amigos, vejam só
que belo novilho vem
se aproximando de nós,
com jeito de boi mansinho.
Deve ser propriedade
do Coronel Costa Lobo,
se não vier do curral
do padre velho do Crato.
Reparem bem nos seus chifres,
como se fossem adornos
em sua cabeça postos
por mãos de mulher bonita.
Seu couro parece feito
de pano muito bordado,
com paciência de mãe,
esmero de bordadeira.
Meus amigos, vejam só
como ele é diferente
de quantos se vêem cá,
nas terras de minha gente.
É manso, de paz, ordeiro,
como boi de manjedoura,
e até parece um cordeiro
que comesse em nossas mãos.
(O boi aproxima-se mais dos romeiros.)
Que queres aqui, garrote,
a rondar os nossos ranchos?
Por que te chegas a nós,
comes de nossas migalhas?
Por acaso somos bois,
a ruminar como tu?
Por acaso és humano
e foges da solidão?
No lombo não trazes marca,
não sabemos de quem és.
Ninguém te reclama o couro,
nem o berro, bem a baba.
Terás nascido de um touro
e de uma vaca perdidos,
desses que andam ao léu,
cujo dono nunca os vê?
Ou teu dono é doutras terras,
de reinos desconhecidos
e não sabe que estás
no país do Juazeiro?
Este boi é diferente
de todos quantos já vimos,
não quer comida bovina,
de bicho de quatro pés.
Só come batata doce,
jerimum e macaxeira,
tudo cozido e salgado,
como se fosse cristão.
Terá sempre ele comido
alimento de cozinha?
Por acaso desconhece
o capim dos seus iguais?
Este boi é diferente
de todos quantos já vimos,
pois não tem medo dos homens,
antes nos tem amizade.
ROMEIROS (em coro):
Nosso Senhor Jesus Cristo,
afastai deste recinto
este boi aparecido
por acaso e maldição.
Cheia de graça Maria,
protegei o nosso povo
deste garrote sem dono
que come do nosso pão.
JOSÉ:
Não adianta rezar,
que castigo Deus dará;
vejam como se comporta
o danado do novilho.
Mal começamos a reza,
nem bem as mãos levantamos,
ele mesmo ajoelhou
aos pés de Nosso Senhor.
ROMEIROS:
Te esconjuro, boi perdido,
de Satanás enviado,
vai embora para longe,
para o inferno regressa.
Afasta-te deste chão
de sofrimento e milagre,
deixa as terras do Padrinho,
vai em busca do teu Cão.
JOSÉ:
Calem todos suas bocas,
acabem com os esconjuros,
este boi não tem maldade
nem nos chifres, nem nas patas.
Já seja ele acredito
do Divino um enviado,
pra dizer que até os bichos
no Padre Ciço têm fé.
PADRE CÍCERO (chegando):
Que se passa aqui, romeiros,
que tanta zoada fazem?
Mais parece feira livre,
onde todo mundo grita.
Quem mais vendeu e ganhou,
quem mais comprou e perdeu?
Quem vendeu este boizinho,
quem ganhou este garrote?
JOSÉ:
Meu Padrinho, meu Padrinho,
“eu não sei mais o que faça!
Quero a vossa proteção
com sua divina graça!”
Trago aqui este garrote,
sem marca, sem dono certo,
que talvez queira falar
em nome do Criador.
Peço perdão se blasfemo,
se digo alguma heresia:
ocorre que esta pessoa
parece vinda do céu.
Pois, sendo boi, se alimenta
da mesma comida nossa
e rezou ainda há pouco
junto com vossos devotos.
PADRE CÍCERO:
Meu bom beato Lourenço,
este aqui é um boi manso,
ainda sem nome dado,
pertencente ao meu rebanho.
Cuide dele como cuida
das almas dos sertanejos,
não o deixe escapulir
das terras de nosso reino.
(Retira-se)
BEATO LOURENÇO:
Este boi abençoado
por nosso Padrinho Ciço
eu não sei se faz milagre,
que é tarefa só de santo.
Meus irmãos, eu vos garanto
que este boi é diferente
de boi de pasto e repasto,
daquele de matadouro.
MANUEL:
Eu lhe faço, meu boizinho,
um pedido nunca feito:
interceda junto ao Padre
para graça eu alcançar.
Se você me atender,
eu prometo e até juro
dar-lhe um feixe de capim
do melhor que aqui houver.
BEATO LOURENÇO:
Preciso logo levar
o bichinho pro curral,
um lugar especial,
distante dos outros bois.
Vosmicês fiquem rezando
e fazendo penitências,
que o pecado anda solto
pelo mundo de meu Deus.
(Retira-se, conduzindo o boi. No meio do caminho, encontram Padre Cícero.)
BOI:
Meu protetor e meu santo,
venho aqui interceder
por um pobre penitente
precisado de favores.
O que deseja o coitado
é coisa de pouca monta
e nem milagre precisa
ser feito agora ou depois.
PADRE CÍCERO:
Eu já lhe disse, beato,
que este boi é um animal,
muito embora bem mais manso
do que muito ser humano.
Cuide dele como cuida
do rebanho falador.
Dê-lhe pasto, sombra e água
para a ceia do Senhor.
(Lourenço conduz o boi ao curral.)
MANUEL:
Muito obrigado, garrote,
pela graça que obtive,
eis seu feixe de capim,
conforme lhe prometi.
Pode comer à vontade,
matar a fome que exista
em sua barriga santa,
sem qualquer constrangimento.
Não aceita o pagamento?
Vire esse olhar para longe,
pare de tanto mugir,
como se me acusasse.
JOSÉ:
Cabra de peia, safado,
se o boi não quer teu capim
é porque sabe decerto
do roubo que praticaste.
Agora pede perdão
do pecado cometido,
ajoelha-te aos pés
do garrote justiceiro.
MANUEL:
Eu me ajoelho a teus pés,
teus pés de santo bezerro,
para pedir teu perdão
por roubo que cometi.
BEATO LOURENÇO:
Agora pega o chicote
e açoita teu corpo sujo,
derrama teu sangue imundo,
paga com dor teu pecado.
JOSÉ:
Milagroso e santo boi,
mostre-me cá seu pescoço:
com uma guirlanda de flores
queremos ornamentá-lo.
E nos seus chifres pequenos,
flores dos nossos sertões,
fitas as mais coloridas,
mil beijos dos penitentes.
A mim me dai o amor
da cabocla Bastiana,
um jumento ensinado
e terra para plantar.
PRIMEIRO ROMEIRO:
Quero uma cama de pau,
forrada de algodão,
e as noites todas do mundo,
repletas de quatro pernas.
SEGUNDO ROMEIRO:
Como não tenho coragem
de pedir ao Padre Ciço
a cabra que nos dá leite,
socorro-me do senhor.
TERCEIRO ROMEIRO:
Dou minha filha Vicença
a vosmicê, se a quiser,
caso a graça alcance
de ter a mulher de Pedro.
2.ª PARTE
LOURENÇO (com outros beatos, à certa distância do boi.)
Meus irmãos, me escutem cá
o que tenho pra dizer:
uma semana não faz
que o Boi Santo apareceu,
e centenas de milagres
por aqui se deram já.
E eu não sei o que fazer
diante das novidades.
Muita gente me pediu
um pouquinho da urina
do nosso garrote santo,
para evitar a cegueira.
Outra gente me rogou
uma raspinha do casco
do novilho milagroso,
pra se livrar de quebranto.
E eu não sei onde arranjar
tanto mijo e tanto chifre,
tanto casco e tanto boi,
pra tanta meizinha dar.
PRIMEIRO BEATO:
É preciso controlar
a ganância desta gente,
pois nem todos são doentes:
tem mais cego do que olho.
SEGUNDO BEATO:
É preciso vigiar
o sossego do garrote
e evitar que todo mundo
retire um pedaço dele.
TERCEIRO BEATO:
Pela minha sugestão,
nós devemos recolher
tudo o que dele vier,
seja mijo, seja bosta.
E depois distribuir,
conforme as necessidades
dos doentes, aleijados,
e também conforme a fé.
(Os quatro aproximam-se do boi e dos romeiros.)
PADRE CÍCERO (chegando, às escondidas, e falando para si mesmo):
Esse boi que acolhi
já não quer mais macaxeira,
agora só come papa,
bolo de milho e mingau.
Só quer comida salgada,
como se fosse cristão
e soubesse ser o sal
a marca de nossa crença.
E os romeiros nem sequer
vêm beijar a minha mão;
só me saúdam de longe,
sedentos de ver o boi.
Correm todos para o pasto,
do animal adoradores.
Comida farta lhe dão,
pagamento de promessas.
Da sapiranga se curam,
do tracoma e outros males
com o mijo do danado
– água benta e milagrosa.
Não se vê mais com quebranto,
bouba ou espinhela ninguém
– salva-os pedaços dos chifres
e dos cascos desse boi.
(Retira-se.)
PRIMEIRO ROMEIRO:
Não se aflija, meu garrote,
que seu mijo não tem fim,
nem seus chifres vão morrer,
nem seus cascos se acabar.
SEGUNDO ROMEIRO:
Por mais cegos que tenhamos,
por mais fracos que aqui venham,
nem um dia sem milagres
o senhor há de passar.
JOSÉ:
Este boi que aqui chegou
vem fugido do Sertão,
espantado pelo índio,
qual se fora assombração.
Desgarrado da boiada,
se perdeu na caatinga,
quebrou a peia que o tinha
amarrado ao capelão.
Veio ter aos pés do povo
que acredita em salvação,
mas, não sendo São Garrote,
faz de conta que é Boi Santo.
ROMEIROS (ajoelhados diante do boi, cantam, em coro):
Divino e sagrado boi,
nós te rogamos, contritos,
um milagre no Sertão:
água, comida e sossego.
Em troca te oferecemos
nossas rezas mais compridas,
nossa fé mais arraigada,
todas nossas penitências.
Santo, santo, santo boi,
irmão de Cristo Jesus,
do Divino Esprito Santo,
do Padre Ciço Romão.
Tu és a Quinta pessoa
da Santíssima Trindade,
filho bendito de Deus,
Boi da Terra, Boi do Céu.
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