Ao terminar a leitura do primeiro capítulo de A Guerra da Donzela, de Nilto Maciel, confesso que não resisti à tentação de voltar às páginas de Crônica de Uma Morte Anunciada, de Gabriel Garcia Márquez. É que a semelhança dos relatos ficcionais desses dois escritores em torno da apreensão da gente de uma pequena cidade nos parecia tão propositalmente tecida, que em determinado momento da leitura nos assaltou a sensação de que em verdade estávamos diante de uma narrativa do grande romancista colombiano, Nobel de Literatura de 1982.
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terça-feira, 31 de outubro de 2006
Avisserger megatnoc (Nilto Maciel)
9 - Fantasia
Colocou na face no rosto na cara mesmo a máscara para iludir a vida e fantasiar a noite. Escondeu como era possível esconder os traços de frente e de perfil. De todos os ângulos cabíveis. Não a boca tão necessária ao despejo uísque-uísque e enfio ou meto hiltons charutos os mais grossos e mais nauseantes. Não as narinas as ventas as crateras subterrâneas para farejar perfumes e suores. Não os olhos brilhosos ? opacos ? tristes ? alegres ? para ver olhar enxergar e espiar colombinas meninas tão lindas. Depois se vestiu do blusão multicolorido the falcon e da calçona listrada e calçou agachado as sapatilhas olympikus. Saltou diante do espelho nítido horrível palhaço ou feitiço danado que o fez recuar dançar saltitar passos atônitos e dizer de si para si ou para paredes estufados móveis coloniais que o baile seria inesquecível mas talvez o último o baile de máscaras a noite dos foliões a grande alegria que a vida merece ser vivida pulada fantasiada mascarada bebida fumada comida deitada caída saída vamos já vamos logo josé.
domingo, 29 de outubro de 2006
Mitos nordestinos além-fronteiras (Nara Antunes)
Cearense residindo em Brasília, depois de ter publicado em edições mais restritas Itinerário (contos) e Tempos de Mula Preta (contos), além de ter participado de várias obras coletivas. Nilto Maciel lança agora uma nova obra – A Guerra da Donzela (Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 70 págs.). Nesta diversidade de espaços extratextuais, talvez se espelhe um pouco a maior dimensão textual que esta pequena (apenas em tamanho) novela já alcança.
Da noite para o dia (Nilto Maciel)
Como a vida da gente muda da noite para o dia! Ainda ontem tudo ao meu redor parecia sem vida, tudo monotonamente normal, quando me assaltou novamente a idéia de remexer papéis velhos, um dos meus passatempos prediletos. Assim consigo também trazer de volta o passado. Às vezes é uma foto, outras uma carta, outras ainda uma poesia que rabisquei na adolescência. Mas desta vez não foi nada disso. Encontrei uma novela. Datilografada, ilustrada, com capa e tudo. Como um livro impresso. No fundo de uma gaveta, enrolada noutras folhas de papel. Retirei o invólucro e fui me lembrando da história daquela história. Era uma novela amorosa escrita por César e ilustrada por mim. Datilografamos, fizemos uma bonita capa, grampeamos as folhas. Nesse tempo vivíamos de sonhar. Éramos estudantes do mesmo colégio, colegas de grêmio literário, de leituras, discussões acaloradas. Líamos Dumas, Camilo, Herculano, Alencar.
sexta-feira, 27 de outubro de 2006
Prefácio (José Lemos Monteiro)
Foi com Tempos de Mula Preta que Nilto Maciel revelou suas tendências literárias, firmando-se como um escritor consciente dos recursos que a palavra oferece e dela auferindo toda a força e magia em contos que se nivelam no gênero ao que de melhor se tem publicado atualmente no Brasil. Seria, pois, previsível que logo o autor surgisse com novas experiências, no sentido de ampliar os traços de seu discurso, definindo melhor suas orientações ou princípios estéticos.
Tony River (Nilto Maciel)
Mocinho ainda, rósea tez de espinhos, frouxas calças e olhar enigmático, Antonio Siqueira partiu para a capital, não por querer ou tal fazer, porém pela simples necessidade do pai de pôr nos eixos as finanças arruinadas nos secos e molhados. Debalde o sonho, debalde o esforço. Não tanto por ser chegada a hora extrema do velho, dez anos depois, mas por aquilo que só os gênios tentam explicar semanalmente nos tablóides da oposição.
quarta-feira, 25 de outubro de 2006
Cabra marcado pra escrever (Di Carrara)
Na linha da melhor literatura publicada atualmente no Brasil está a produção de Nilto Maciel, escritor e poeta cearense, com vasta bibliografia e uma invejável coleção de prêmios literários. Editor da "Revista Literatura", de circulação nacional, onde comparecem os melhores nomes da cultura brasileira, Nilto Maciel nos coloca frente a frente com uma linguagem tecida nas malhas da alegoria e da metáfora da vida doméstica e urbana, bem tratada no contexto de sua prosa, propiciando uma leitura prazerosa.
Os três botões (Nilto Maciel)
Questão de coragem, participar da brincadeira, porque tanto vocês poderão encontrar o jardim dos prazeres como a cela das dores. Ou ambos, na mesma jornada. E não há como prever nada. O resultado não depende apenas das três teclas.
Ainda ontem uma senhora saiu daí contentíssima, como se tivesse conhecido o prazer pela primeira vez. E sabem quais os botões que ela acionou? Struthio camelus, I Ching e Lesbos. Tudo por acaso, porque mal sabia ler. Viu-se acariciada das mais variadas maneiras por encantadora criatura. Não sei se jovem ou idosa, se macho ou fêmea. Falou-me da maciez do corpo do desconhecido. Tudo fica registrado aqui em videocassete. O resto o cliente me conta, se quiser. Depois reduzo a experiência a escrito nessas fichas: nome, idade, naturalidade, dia e hora da experiência, teclas acionadas, perguntas e respostas da entrevista com o recepcionista, etc.
terça-feira, 24 de outubro de 2006
Nilto Maciel: O discurso de um louco (Sérgio Campos)
Há escritores para quem a técnica se converte numa espécie de obsessão, um refazer constante em busca de seu arquétipo, às vezes consistente na linguagem enquanto processo(forma), outras na solidez de uma tese (fundo) que se converte em finalidade do próprio ato de escrever. Esse uso exaustivo e abusivo da técnica, mormente enquanto processo da escrita, acaba se convertendo em estilo, o que, como bem adverte Octavio Paz, pode transformar a obra literária em mero artefato.
Prelúdio para a morte de César (Nilto Maciel)
Fazia muito calor, as muriçocas cantavam ao pé do meu ouvido, os cachorros latiam longe, em cadeia, insones e monótonos, e eu não conseguia dormir, por mais que remexesse os baús da infância. Banhos de rio, o tempo das chuvas, cantigas de roda. Onde está a Margarida, ô lê, ô lê, ô lá; onde está a Margarida, ô lê, seus cavaleiros.
Em dada hora, ouvi a voz de César. Falava com a mãe e perguntava pelas irmãs. Depois tudo se calou e só eu falava comigo mesma e cantava para me ninar.
segunda-feira, 23 de outubro de 2006
Nilto Maciel, o mago do conto (Silvério da Costa)
Há tempos vinha dizendo para mim mesmo que o Nilto Maciel era um dos maiores contistas brasileiros da atualidade. Minha dúvida consistia em saber se existia no Brasil alguém que o superasse na difícil arte de narrar histórias curtas. Depois de ler o seu excepcional Pescoço de Girafa na Poeira, 1º lugar na categoria conto, na Bolsa Brasília de Produção Literária, 1998, da Fundação Cultural do Distrito Federal, a dúvida foi debelada.
O primeiro homem (Nilto Maciel)
Quando Leão morreu, até papai, que tinha um coração de pedra, chorou. Inconformada, amaldiçoei todos os carros do mundo. Logo, porém, me conformei, porque a morte do bichinho me foi favorável: voltei a ser a menininha da casa. Todo o recente passado ressurgiu mais caloroso ainda, na forma de mimos, chocolates, passeios ao zoológico.
domingo, 22 de outubro de 2006
O Saco dos mil e um contos de Nilto Maciel... (José Luiz Dutra de Toledo)
O SACO DOS MIL E UM CONTOS DE NILTO MACIEL: SUAS ALEGORIAS, FANTASMAGORIAS E CÍCLICAS PERPLEXIDADES LITERÁRIAS
Com as edições envelopadas de contos e poemas (O Saco – anos 70 do século XX – Fortaleza – Ceará) Nilto Maciel começou a se tornar notável e valorizado na cena literária nacional. Além de divulgar outras escritas expressivas e representativas da sua geração (marcada pelo intento de resistir à cultura sacralizada pelos governos autoritários que nos cercearam de 1964 até 1985), este escritor cearense refez seus percursos e resgatou suas fontes literárias (A. Kuprin, Émile Zola, Graham Greene, Júlio Verne, Menotti Del Picchia, Taunay, Camilo Castelo Branco, José de Alencar, Lima Barreto, Castro Alves, Honoré de Balzac, Gustave Flaubert, Marquês de Sade, Blaise Pascal, G. Hegel, K. Marx, Paul Verlaine, Musset, Machado de Assis, Alexandre Dumas e muitos mais) e recitou-as em seus casos para desfechos inquietantes ou desconcertantes (desconstrutivistas e minimalistas) às nossas fisionomias e olhares boquiabertos. Picasso explica. Com seu estilo compassado, criativo e conciso, Nilto Maciel construiu pontes/ alusões inusitadas entre o seu imaginário literário e as mais ricas obras da arte de narrar e especular ao longo dos séculos XX e XXI. Por exemplo:
Franz Kafka e Nilto Maciel.
Uns seios (Nilto Maciel)
“E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos.” Machado de Assis
Pedrinho olhava distraído para os seios de Izaura, que se debruçara sobre a mesa para melhor distribuir o almoço.
– Provou do cozido, Severino?
Em vez de responder à mulher, o advogado deu um berro e pôs-se a descompor o hóspede.
– Esse menino não tem jeito. Vive dormindo em pé. Acorda, palerma, presta atenção às coisas!
quarta-feira, 18 de outubro de 2006
O prazer de ler Nilto Maciel (Nicodemos Sena)
“Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites comprimidas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios”, assim o escritor alagoano Graciliano Ramos começa o magistral romance Angústia, que conta à história de uma personagem miserável, vivendo numa das cidades nordestinas e vítima de todas aquelas desgraças circunstanciais. Graciliano costuma ser lembrado como o autor de Vidas secas e São Bernardo, livros que retratam a amargurada vida rural do povo nordestino, mas é Angústia a sua melhor obra. Nesse livro, ainda é o meio agreste que serve de pano de fundo para a narrativa, mas o drama se desloca do espaço social para o psicológico, onde é exposto o conflito íntimo do personagem-narrador Luís da Silva, humilde funcionário de repartição, a quem as dívidas e um ciúme doentio empurram para o crime.
Babel (Nilto Maciel)
ela estará sentindo as piores dores
era um peru de grandes cristas vermelhas que eu criava desde pequeno
fingirei estar por demais nervoso e preocupado e fumarei alguns cigarros
e eu gostava tanto dele que lhe dei o nome de minha mãe
ela dirá que não agüenta mais, que é preciso ir
eu já vivia só
terça-feira, 17 de outubro de 2006
Os contistas estão ativos (Enéas Athanázio)
Em seu recente livro — “Pescoço de Girafa na Poeira”, (Bolsa Brasília de Produção Literária/Bárbara Bela Editora Gráfica — Brasília —1999), Nilto Maciel reuniu cerca de 60 contos, todos curtos, alguns curtíssimos, não superando nunca o limite de quatro páginas, e formando um conjunto de elevado nível. Embora econômicos no tamanho, no entanto, esses contos são completos, nada lhes faltando como criações literárias e ficcionais. O estilo enxuto e despojado do contista não precisa de maior número de palavras para dizer o que deseja, mesmo porque essas palavras são buscadas com cuidado para que sejam precisas no exprimir aquilo que a situação exige. Em outras palavras, o autor não precisa realizar círculos para atingir o ponto procurado. Tanto isso é verdade que seus contos criam sempre a atmosfera desejada, seja uma atmosfera de mistério, de medo, de expectativa, de tranquilidade etc.
Também criam com perfeição o clima para o desfecho tantas vezes inesperado, definido em poucas e precisas palavras, de forma fulminante, apanhando o leitor de surpresa. Acentue-se, ainda, a criatividade do contista, nunca se esgotando ou repetindo. A leitura desse livro, enfim, é um excelente reencontro com a boa arte do conto, exercida por um contista que vem merecendo muitos prêmios, inclusive os mais importantes — aplausos dos leitores e dos críticos. Este livro recebeu o prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal, em categoria conto, em 1998, colocando-se no primeiro lugar.
(.......................................................................................................................................)
(Jornal Balneário Camboriú, Santa Catarina, 9/12/2000)
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domingo, 15 de outubro de 2006
A ponte sobre o rio dos amantes (Nilto Maciel)
Só podiam estar em lua-de-mel. Tantos beijos, afagos, enlevados um do outro. Ela, vista de onde eu me achava, parecia ter seus vinte anos e ser muito bonita. Ou talvez se tratasse de beleza artística, cosmética, aparente. Ele também se vestia da mais fina elegância e dava ares de galã de cinema.
Não, não devia ser verdade. Eu sonhava ou talvez filmavam por ali. De onde haviam surgido? Por que tão bem aparentados naquele ermo? Ora, só havia o rio, a ponte onde eles namoravam e a estrada de que a ponte fazia parte. E mais nada. Só eles e eu. Eles esquecidos do mundo, eu todo ouvidos e olhos. E, apesar disso, eles não notaram minha presença, enquanto eu não perdia um só gesto deles, um só movimento das mãos, dos olhos, dos lábios.
Na bolsa (Manoel Hygino dos Santos)
Se tenho recebido os livros enviados? Respondo afirmativamente, embora nem a todos pude comentar até o momento, até porque a safra é grande e interminável.
Oportuno constatar e registrar, por outro lado, que há bons produtos, dignos de apreciação, alguns de autores novos e desconhecidos no mercado livreiro.
Leio livros como me alimento, escolho pratos e títulos, não ajo com voracidade. Só uso aqueles que me fazem bem, os que me agradam, sendo oportuno ressaltar que algo que apraz a alguém a outrem não satisfaz. Não trabalho em termos meramente numéricos: tantos volumes por mês, não é por aí. Se aprecio, chego ao final; se não, abandono-o sumariamente. Sobre gosto e cores não há discussão.
sexta-feira, 13 de outubro de 2006
As pontas da estrela (Nilto Maciel)
Os bêbados de Palma ainda diziam besteiras em torno do parto feliz e inesperado da Beata, quando no bar de Pedro Mateiro entrou, correndo, a figura agitada e esvoaçante de Bemtevi, suado e assustado.
– Que aconteceu, homem de Deus? Alguma desgraça?
– Diga logo: caiu alguma igreja?
Pescoço de girafa na poeira (Foed Castro Chamma)
O que supõe a Moira ou Destino é o encontro do sujeito consigo mesmo nos confins do pensamento, onde a medida é o tempo que se estende recolhido pelo próprio indivíduo. Esta a causa sui do ser enquanto negação que o sujeito representa, recluso na subjetividade, lá onde arquiteta o vôo sem fim do pensamento na construção da realidade, a partir da imagem, a qual tem na imaginação o primeiro degrau de um campo recolhido ao delineamento concreto da razão. A extensão do tempo é a substância do pensamento; o corte em sua medida por outro lado é o desmonte estrutural da base que serve à imagem transmudada em realidade. De maneira que capturar o pensamento na fonte antecipando-se ao tempo constitui função operacional tanto do historiador quanto do ficcionista, este preso ao cânone (arcaico) da Arché, cujos arquétipos foram substituídos ainda na Ática pela figura do herói. No ser sobrepaira o sujeito articulador do mito e por fim da história a qual, em sua pluralidade, é transformada em unidade emblemática do Eu. O ficcionista e o historiador estão em princípio comprometidos com o descortino do subjetivo e do concreto, cuja dualidade corresponde vale dizer a tempo e espaço.
segunda-feira, 9 de outubro de 2006
A beata de Palma (Nilto Maciel)
Quando o trem parou na estação, o sol acabava de se esconder. Uma dezena de meninos sujos me cercou. Disputavam entre si o direito de carregar minha maleta, o jornal e até o cigarro que eu fumava. Desfiz-me deste, distribuí para cada deles uma folha do jornal e entreguei a carga mais pesada a um rapaz musculoso.
Babel (Erorci Santana)
Unanimemente reconhecido como um dos mais expressivos criadores da moderna ficção brasileira, o cearense Nilto Maciel, radicado em Brasília, editor da revista Literatura, traz a público os contos reunidos em Babel, que em vários momentos constitui-se numa tentativa de restauração da ordem num mundo caótico e apocalíptico, onde os seres foram privados de seus balizamentos existenciais. Assinalam e antecipam o fracasso da civilização, o fim do ordenamento racional. Daí seu enredo insano e desfecho quase sempre trágico. Escritos nos anos de 1975/76, engavetados por imerecido pudor, reescritos, burilados e finalmente dados à fruição, curtos, cortantes e desestruturadores, esses contos de Nilto Maciel revelam excelências narrativas e causam não poucas estupefações.
(Jornal O Escritor, da União Brasileira de Escritores, São Paulo, SP, outubro de 1997)
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sábado, 7 de outubro de 2006
O fim do mundo de Sinhá (Nilto Maciel)
A peste havia levado para a terra dos pés juntos quase todo o povo do lugar. Menos os filhos ingratos, sem amor ao chão, e os mais duros, de corpo fechado. Muita carniça para os urubus. Uma praga de bicho morto. Plantação nenhuma resistiu. A terra se esturricou. Quem escapou e não esperou pela morte, fugiu para bem longe, tomou o oco do mundo. Menos Sinhá. Essa ficou para enfrentar o cão. Comia raiz, qualquer coisa da terra nascida. Gafanhoto, formiga, besouro. Depois apareceram, não soube ela como, pés de pau, porco, galinha, toda sorte de bicho. Porém de quase nada disso ela se servia. Continuava a enfiar as mãos trêmulas na terra, à cata de comida do chão. Se enxergava ainda? Divertia-se a espiar as galinhas comerem minhocas, os porcos fuçarem a lama e os frutos apodrecerem em cima da terra. Sozinha no sitiozinho, na choupana velha, dos bons tempos, conversava com os bichos, a chuva, os ventos, a noite, os meninos que malinavam no terreiro e metidos no mato. Não havera de abandonar a terrinha, porque, o que de que carecia, ela dava em abundância. Dava e levava. Nas suas falas, porém, Sinhá muito se queixava de abandono e rogava pragas aos que a deixaram só, como se estivesse leprosa. Maldizia-se dia e noite, a gritar e blasfemar em miúda voz. Talvez não a ouvissem. Certamente viviam por ali, enfiados nas cabanas escondidas ou nas roças distantes. Tangiam porcos e galinhas, que não cessavam de fuçar o chão, em tempo de derrubar as casas. Ouvia de madrugada o canto dos galos. Sim, eles viviam por ali. E nunca se mostravam. Tinham medo da lepra que ela não carregava. Orgulhosos! A terra havia de papar um a um amanhã, antes da safra, depois de São João.
Babel (Fernando Py)
Diversamente de outros volumes de contos do autor, este nos traz narrativas em geral bastante curtas, às vezes apenas meros flashs, momentos críticos bem apanhados por Maciel. São narrativas que exploram sobretudo um episódio, mínimo que seja, e tratam de aprofundá-lo (quando o conto ultrapassa duas páginas) ou expõem-no em toda a sua crueza momentânea. Muitos talvez possam ser considerados crônicas, mas, essencialmente, se compõem de partes isoladas encaixadas umas às outras, cada qual com uma certa autonomia. Além disso, Maciel também explora a estrutura e a linguagem, experimentando novos modos de narrar: na peça que dá título ao livro, frases soltas de três narrativas se encaixam umas nas outras e o contexto se torna "ilegível" se percorrido linearmente, de tal forma que mais parece uma algaravia sem sentido, uma "babel"; talvez seja o mais criativo sob este aspecto. E o todo é excelente.
(Diário de Petrópolis, Petrópolis, RJ, 3/5/1998)
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quarta-feira, 4 de outubro de 2006
Inventário de Quinca Manco (Nilto Maciel)
Como se não lhe fosse possível entender que um dia o silêncio se apossa para sempre de mudos e tudos, Chico Maneta deu bom-dia, arrastou um tamborete para mais perto de Quinca Manco, sentou-se e pôs-se a recontar casos tão antigos e esquecidos que quem os ouvisse certamente pensaria tratarem-se de sonhos ou lendas.
Coberto de moscas, o corpo magro e quase nu do velho amigo parecia dormir, estirado na rede suja, sem varandas, tranças ou trancelins, e de punhos e mamucabas rotas.
segunda-feira, 2 de outubro de 2006
O livro de Pedro Amaro (Nilto Maciel)
Sentia-se tonto, o mundo todo de pernas para o ar, feito barata emborcada, a remexer-se em agonia de moribundo sem vela. As palavras perdiam a conotação lógica dos textos regulares de uma lei, tratado sobre a natureza humana, curso dos rios. Via-se lendo a macabra língua dos mitos. O chão virava teto, a cadeira pregava-se como aranha às vigas de uma teia de circo, as linhas proféticas das mãos metamorfoseavam-se em desenhos misteriosos de capas clássicas.
domingo, 1 de outubro de 2006
De conto e contistas (Nelson Hoffmann)
(...) Nilto Maciel dispensa comentários. Autor por demais conhecido, sua obra é extensa e a crítica é unânime em reconhecê-lo como um dos principais nomes das modernas letras brasileiras. Natural de Baturité, Ceará, Maciel está radicado, há anos, em Brasília. Seu primeiro livro que aportou por aqui, pelo Sul, foi “A Guerra da Donzela” e chamou a atenção. Todos os anos é re-indicado para leitura em sala de aula.
“Babel” é o quinto livro de contos do autor e, conforme o próprio, um filho enjeitado. Não é. Em muitas de suas páginas ressuma o que de melhor Nilto Maciel escreveu. Perpassando as três dezenas de histórias que compõem o livro, fica-se com uma estranha impressão de maravilha, “déjà vu” e presença real. Há meandros que insinuam mundos kafkianos; há luminosidades que doem como a solama nordestina. Há poesia, há cordel, há povo. Folclore, padrão, elite. Virtude, mornidão, pecado. Crenças, crendices, fé. Homens, mulheres. Mundos.
Ler “Babel” faz a gente lembrar de Jorge Luís Borges. E uma leitura que lembra Borges, só pode ser de livro excepcional. Como este de Nilto Maciel.
(Jornal Igaçaba, Roque Gonzales, RS, novembro de 1999)
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Calvário (Nilto Maciel)
Faca no cós, blusa aberta, calça arregaçada, João chegou à estrada, olhou para cima e para baixo e tomou o rumo da direita. Muito adiante, antigamente, havia uma cruz fincada no chão, junto à cerca, a indicar o lugar onde seu pai sofreu morte sangrenta. Não sabia quem, mas um espírito de porco, um cabra sem-vergonha, um filho de uma égua teve a petulância de arrancá-la e quebrá-la em dez pedaços.
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