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quarta-feira, 30 de novembro de 2005

Ana Carolina da Costa e Fonseca: solidão e sexo (Nilto Maciel)


As peças ficcionais de Ana Carolina da Costa e Fonseca em Sei Que Ele Me Ama, Pois Me Disse Uma Vez (Editora Bestiário, Porto Alegre, RS, 2004) podem ser vistas como contos de personagens. São eles o centro de tudo, independentemente do que fazem, de suas ações. Seres voltados para si mesmos, como se o mundo de fora não existisse. Assim, não se “vêem” ambientes, a arquitetura de casas, prédios, ruas. Os personagens como que levitam longe do espaço urbano ou rural. Talvez nas nuvens. Em “Abraços” a narradora se refere a um hospital, um quarto, onde está sua tia. Mas durante todo o tempo se volta para a dor que sente. Suas ações e sensações físicas parecem traços embaciados num quadro: “saio do quarto”, “está muito quente”, “o cheiro do hospital me deixa a cada passo mais triste”, “ando sozinha”. Ressalta na história o drama psicológico do protagonista. Nem mesmo a narradora de “Parafusos” consegue dizer duas ou três palavras sobre o seu trabalho na fábrica de parafusos, o que poderia dar à narrativa mais encanto, limitando-se a falar de si mesma, abandonada pelo marido, solitária. Assim, se trabalhasse numa padaria, numa lavanderia ou em outro tipo de indústria ou comércio, nada mudaria no conto. O significado do parafuso ou a sua metáfora poderia ser apresentada com mais pompa.  

Esfinge (Nilto Maciel)


(Duas meninas, de Bibiana Calderon)

Naquela tarde saímos a passeio, nós duas e papai. Divertimo-nos como nunca. Assim mesmo, não saciamos a fome de brincar.

Papai sempre nos deu muito carinho. Em certas ocasiões, no entanto, tratava-nos até com aspereza, como se fosse outro. Era quando conversava com seus amigos. A nós dedicava todos os seus momentos de folga, fins-de-semana, feriados, férias. Passeávamos, brincávamos, como se os três fôssemos crianças. Quando viajava, ficávamos tristes, porque mamãe não gostava de brincar conosco. Só me lembro dela a dormir, conversar com seus amigos e suas amigas, sair sozinha, a passeio.

sábado, 26 de novembro de 2005

Os labirintos de Nelson de Oliveira (Nilto Maciel)


Estreou Nelson de Oliveira no gênero conto em 1997, com Os saltitantes seres da lua. Seguiram-se Naquela época tínhamos um gato (1998), Treze (1999) e Às moscas, armas! (2001). Em 2004 a Editora Lamparina, Rio de Janeiro, editou Pequeno dicionário de percevejos – Os melhores contos de Nelson de Oliveira. E é sobre este que se escreverá a seguir.

Em “Éramos todos bandoleiros” um menino conta as mil peripécias da infância com os amigos Alex, Franco, Felipe, Denis e Giba. O leitor, contudo, só perceberá no decorrer da narrativa que tudo não passa de jogo da imaginação infantil. Desde a primeira frase, ou desde o título, imagina um bando em ação: “Denis, sobrenome Pênis, estava encurralado”.Somente quando um dos personagens se refere à mãe de outro, concluirá o leitor que os bandoleiros são de mentirinha: “Aquela não é a sua mãe, ela está nos observando, Alex disse”.Veja-se: o contista não usa o vocábulo “bandido”, tão banal hoje, mas “bandoleiro”, como a querer situar a história no terreno do imaginário infantil, do tempo dos gibis, em que bandoleiros enfrentavam o xerife. “Meia hora depois, cem anos haviam se passado. Não éramos mais bandoleiros, não estávamos no Texas”.Mais adiante se transformam em índios. Os meninos brincavam no “jardim da casa abandonada”, no mato, nos trilhos do trem. Conto de ternura, da ternura das crianças, do mundo do faz-de-conta.  

Nos becos da fantasia (Nilto Maciel)


(Lautrec, Baile no Moulin)

A rede rangia nos caibros. Ia e vinha, cadenciada. Ele olhava para o telhado, olhos perdidos.

De tempo em tempo, dava novo impulso à rede, um dos pés no chão. O rangido se fazia mais acelerado e áspero.

Grande tolice embalar-se numa rede, quando havia um mundo inteiro em correrias. Àquela hora, seria enorme o burburinho nas ruas. Podia estar em qualquer delas, indo e vindo, à toa.

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

O soneto-conto de Glauco Mattoso (Nilto Maciel)


O imortal Gregório de Matos (1636-1696) ainda tem admiradores e discípulos. Um deles é Glauco Mattoso (1951). Mesmo imortal, o poeta baiano é tido por José Veríssimo como “servil imitador” de Quevedo (1580-1645). Além de pretenso imitador do poeta espanhol, Gregório é parodista de Camões e outros gigantes e poeta maldito, “sempre ágil na provocação, mas nem por isso indiferente à paixão humana ou religiosa, à natureza, à reflexão e, dado importante, às virtualidades poéticas de uma língua européia recém-transplantada para os trópicos”, segundo Antônio Dimas (Gregório de Matos – Literatura Comentada, Editora Nova Cultural, São Paulo, 1988). Como o filho da Bahia, Glauco Mattoso também cultiva o soneto, de rimas ricas e versos decassílabos. E é maldito, marginal.

As contas de Setidon (Nilto Maciel)



Ao aparecer à porta, Setidon sorria cinicamente, como o fazia sempre. Um olhar de relance apenas, o suficiente para perceber sua presença. Sua inútil e insignificante presença. Logo perceberia nossa indiferença por sua pessoa e se retiraria. Com seu eterno sorriso imotivado. Tal não ocorreu, no entanto. E pior: lançou na direção de nossos pés uma porção de continhas. Jogou e riu ainda mais. O terço, ou rosário, (imaginamos que o estranho objeto fosse um desses instrumentos) deslizou mansamente pelo assoalho e quase parou ao pé da mesa. Tivemos a clara impressão de que iria enganchar-se ali. E a brincadeira de Setidon teria um fim sem graça.

terça-feira, 22 de novembro de 2005

Duas antologias (Nilto Maciel)


Cidade e Caminho reúne contos de cinco escritores de Ituiutaba: Alciene Ribeiro Leite, Jair Humberto Rosa, Luiz Vilela, Rauer Ribeiro e Roberto Maciel.

A melhor qualidade de Alciene está na linguagem, trabalhada, concisa, produto de uma insistente busca da palavra e da frase apropriadas ao corpo do texto, como se se dedicasse a criar um corpo idealizado a partir de infinitas micropeças postas à sua frente. Realiza o verdadeiro trabalho de criação, ou seja, de escolha. Porque a realidade é um todo, cabendo ao artista a tarefa de captar ou capturar este ou aquele detalhe, esta ou aquela parte do todo, e a partir daí montar a sua reprodução microscópica do mundo. Estes detalhes (ou partes) são para o escritor as palavras. Nada mais do que elas.

Tragédia no lupanar (Nilto Maciel)


Cena 1



Mada Madaleva senta-se à mesa, pede coca-cola e se põe a pensar. Aspira o próprio perfume, colorida como uma imensa borboleta. Circunvaga num mundo de esperas inúteis, recorda a infância, a família extinta, o antigo palco onde vivera heroínas de amores trágicos. E faz pose, a imitar moças de revistas. Assim, os homens gostarão tanto dela que serão capazes até de cometer desatinos e crimes terrivelmente passionais.


Cena 2



A mesma Madaleva junto à mesma mesa. Bebe a mesma coca-cola e, lânguida, posa para o doce Miguel Ângelo. Pincéis lambuzam a tela, tintas salpicam o chão infecto. A mão felina do pintor reproduz a saia curta godê, os seios ainda belos, os lábios carnudos, a fronte cismadora, a cachoeira negra dos cabelos ondulados. (Miguel buscara o prostíbulo não para pecar, mas para pintar.)



Cena 3



Passos no tablado do velho casarão. Súbito um pontapé escancara a porta. Madaleva desfaz o sorriso estudado e mostra cara de pavor. Uma nesga de sol tinge o chão. Entra Teófilo, assolado por incontrolável ciúme ou masculina inveja. E faz chover enxofre e fogo sobre o jovem pintor. Tomam conta do ambiente sulfuroso odor e compacta fumaça, como a fumarada de uma fornalha.



Cena 4



O modelo, num exemplo de débil sensibilidade, conversa animadamente com o terrível alquimista, esquecidos da tela, do pintor e do crime. Repetem-se os primeiros momentos da cena anterior. Passos no tablado do velho casarão. Súbito um pontapé escancara a porta. Mada desfaz o sorriso estudado. Nervoso, irado, revólver em punho, assoma ao prostíbulo corpanzil tatuado de sereias, marroquinas e peixes alados. Vasculha toda a casa, urrando.
Madaleva – (Sussurrando) Meu irmão!
Teófilo – (Perplexo) Que quer ele?
Madaleva – Procura o homem que me roubou a virgindade.



Cena 5



O tatuado se aproxima de sua irmã, cospe-lhe no rosto, dá-lhe murros e põe-se a gritar: “Fala a verdade, cadela.”
Enquanto isto, traiçoeiro punhal reluzente penetra-lhe as costas largas. Jorram vermelhos rios das escamas das sereias, dos seios das marroquinas e das barbatasas dos peixes.



Cena 6



Madaleva – Por que assassinaste meu irmão?
Narciso – Agi em legítima defesa.
E abraçam-se, abrasam-se, beijam-se avidamente.



Cena 7



A porta do lupanar abre-se languidamente e uma figura de alta linhagem – imagem fiel de Oscar Wilde – desfaz o idílio, com pausada voz:
– É no cérebro, somente no cérebro, que se cometem os grandes pecados do mundo.



Apagam-se as luzes.

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domingo, 20 de novembro de 2005

Wilson Pereira: Narrativas poéticas (Nilto Maciel)



Histórias para crianças e para adultos. Sim, há limites separando umas de outras. Todavia esses limites se tornam imperceptíveis para o leitor ou adulto e mais ou menos familiarizado com a boa literatura que lê uma dessas narrativas para crianças e não sente necessidade de a rotular de “história infantil”.

Os estudiosos costumam chamar de “literatura infantil” e “literatura infanto-juvenil” as obras menores. No entanto, as obras maiores eles não as chamam de “literatura adulta”. Talvez pudéssemos inventar outros rótulos, como “literatura madura” e “literatura idosa”. Uma seria destinada às pessoas entre 30 e 60 anos, mais ou menos. Outra, às pessoas da chamada “terceira idade”. Denominação também adequada a esta última categoria seria “literatura senil”.

Alguns escritores (sobretudo narradores) têm se dedicado a escrever para crianças. São escritores infantis e, ao mesmo tempo, senis. Porém, há alguns anos, pessoas como Jonathan Swift escreveram com enorme criatividade, e suas obras foram e serão lidas, sempre com muito prazer, por crianças, jovens e adultos.

Escritores infantis são aqueles que estão aprendendo a escrever. Os senis são os que nunca aprenderam a escrever.

O poeta Wilson Pereira é também autor do belo livro de narrativas Amor de Menino. Segundo os especialistas em Literatura, trata-se de obra da Literatura Infantil. São histórias de meninos e animais. Ou somente de animais, como a do jerico e da onça, que é uma anedota escrita em linguagem trabalhada e poética. Aliás, o livro todo traz essa linguagem dos bons escritores, dos escritores sem idade definida, mas que nunca chegam à senilidade mental.

Wilson Pereira tem o domínio das técnicas de narrar. Seus personagens são acabados, desenhados, embora os “meninos” sejam sempre meninos, sem grande distinção entre uns e outros, como se todos eles fossem uma criança chamada Wilson. “Ser menino era mesmo muito bom”.(p. 16).

Tudo nas curtas narrativas de Amor de Menino é passado, é infância, é poesia. Não há miséria social, embora hajam dor e morte. Há medo, há os sentimentos comuns a todos nós humanos e, sobretudo, a nós meninos. A poesia da infância. Não poesia infantil, que poesia pueril não chega a ser poesia.

Curiosamente, não há diálogos em nenhuma das histórias do livro. Assim, a linguagem se mantém limpa, trabalhada. Caso Wilson tivesse optado pela utilização do discurso direto, reproduzindo o linguajar rural e infantil, certamente a linguagem não teria a beleza que tem.
O ambiente rural brasileiro, especificamente mineiro, é pintado no livro com riqueza de detalhes: “Manhãzinha fria de inverno. O capim, molhado de orvalho, estava verde-grisalho”.(p.22). As situações são sempre reais e, ao mesmo tempo, de sonho, fantasia. O mundo da criança ou o mundo dos bichos segundo a criança. Daí alguns contos de flagrantes, às vezes episódios de memórias, quase crônicas, como “Arengas”.

As ilustrações de Denise Rochael se casam maravilhosamente aos textos de Wilson Pereira. O traço é primitivo, as cores apropriadas às narrativas e a perspectiva foge à técnica mais tradicional.

As histórias de Amor de Menino são de fácil leitura para crianças, embora não sejam nada infantis, pueris, inacabadas. Pelo contrário, são narrativas de um escritor amadurecido, bom, apto a outras realizações literárias.
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O homenzinho alado e suas lucubrações (Nilto Maciel)



Transformado em pássaro, o homenzinho não conseguia lembrar exatamente o momento em que lhe nasceram asas. E ora repousava nos galhos mais grossos das árvores, ora aproveitava o dia para voar ao lado da passarada miúda.

Decididamente, sua memória não andava em ordem. Talvez em conseqüência da grave transformação física sofrida. Não se lembrava até mesmo se percebera logo a novidade, se sentira medo, alegria ou desespero, se experimentara voar imediatamente após se sentir alado. Recordava apenas de se ter perguntado onde se achavam seus braços, até se convencer da simples conversão deles em asas.

Não conseguia esquecer, no entanto, o momento em que sobrevoava um extenso parque, em vôos rasantes e lentos, como um planador, deliciado com o panorama visto do alto. Avistava uma clareira e sentia vontade de repousar, voltar à terra, pousar no chão. Além do mais, duas figuras minúsculas, talvez presas fáceis para aves de rapina, se mantinham entretidas uma com a outra, sentadas à borda de uma grande pedra.

Feito um bem-te-vi, o homenzinho sustentou-se acima das cabeças das duas criaturas terrestres e, a muito custo, conseguiu reconhecê-las. Sim, podiam ser Eduardo e Batista, dois de seus melhores amigos, companheiros inseparáveis de idéias e ações.

Os dois rapazes conversavam e conversavam, e nem se davam conta da presença daquela figura maiúscula sobre suas cabeças, como uma ameaça. Nada percebiam e nada perceberam, nem mesmo quando o homenzinho alado pousou diante deles e recolheu as asas. Com certeza, não o viam, pois nem sequer se assustaram, nem sequer interromperam a conversa.

Por um minuto, o homem de asas imaginou estarem cegos seus ex-amigos. Sim, talvez não enxergassem mais e só se comunicassem pela fala. E resolveu dirigir-lhes a palavra: "Vocês me viram voando?" Nenhuma resposta. “E como estão vocês aqui na terra?” Nada ouviam, além das próprias vozes. A conversa entre os dois não tinha fim. Falavam de transformações sociais.

O homenzinho não perdeu a paciência. Eduardo e Batista teriam ficado surdos. Não, não podia ser isto. Ora, se fossem surdos, não conversariam um com outro. Mais provavelmente não conseguiam ouvir a sua voz de pássaro humano, talvez baixa demais, talvez excessivamente alta. Sim, os ouvidos deles ouviriam outros sons. Como o bater de asas. Sobretudo asas grandes, como as suas. E pôs-se a bater as asas, como um galo a cantar. Nada cantou, porém. E nem os rapazes notaram o seu esforço.

Decepcionado, dirigiu-se de novo a seus antigos companheiros, agora aos gritos: "Vocês estão perdendo tempo." Encheu os pulmões e voltou a gritar: "Isto não leva a nada, meus amigos." E era como se ninguém estivesse diante deles, como se um micróbio declamasse versos latinos.

Com certeza, Eduardo e Batista não tomavam conhecimento da presença de seu ex-amigo. Ou os ausentes seriam eles? E se os dois não acreditassem na sua existência? Sim, corria um boato segundo o qual ele fora morto. Ou os inexistentes, os mortos seriam os outros dois?

O homenzinho se afastou, a passos lentos, dos rapazes. Continuassem a conversa. Transformassem o mundo, tudo. E não acreditassem nunca na possibilidade da existência de um homem alado. Esquecessem todas as lendas, todos os mitos estudados na escola.

E alçou voo, deixando para trás o bosque, os antigos amigos, a cidade, e foi pousar num matagal distante, depois de longas horas de vadiação pelo céu. Feito um animal lendário, mitológico.
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quinta-feira, 17 de novembro de 2005

O laboratorista Paulo Nunes Batista (Nilto Maciel)


Chamego, o Urubu, de Paulo Nunes Batista, é produto de laboratório, de fazer artesanal. Comecemos pelas histórias que têm por pano de fundo o mundo místico, fantasioso, misterioso do candomblé, do espiritismo. São obras de quem pesquisou, esteve de corpo presente em terreiros de umbanda e outros sítios congêneres. 

Nordestino, Paulo Nunes não deixa de inventar ou reinventar histórias em que o linguajar da região Nordeste é marcadamente parte do entrecho. O linguajar goiano também se faz presente na obra do autor, que há alguns anos vive em Goiás. Em suma, a cultura popular é essencial nesta obra. Daí ser Paulo Nunes um herdeiro dos antigos contadores de histórias, sem deixar de ser um estilista.

Este livro é literatura da melhor qualidade. No entanto, quero destacar dois momentos dele. O primeiro intitula-se “Sempre”. É alegoria, conto alegórico, o que seja, de ímpar invenção. O outro dá título ao todo. Talvez a mais bem realizada página do conjunto. Uma obra-prima.

Paulo Nunes Batista é naturalista, neonaturalista, descritor de seres singulares. Seus perfis psicológicos e físicos são irretocáveis, como nas pinturas impressionistas.

E a poesia? Sim, há momentos de intensa poesia na prosa desse paraibano-goiano. Mesmo nas histórias mais macabras. Veja-se o início de “Monstro”, o ritmo, a cadência das frases. O mesmo se pode dizer do poético-filosófico “Homem ou o quê?”

Este livro é composto de histórias dos mais variados gêneros. “Naninha” é crônica que só cronistas muito sensíveis poderiam compor. Assim também “O último Natal de Mané Saia”. Pungentes. Há também relatos e capítulos de memórias. “O cinto” é escrito de quem habita o território dos espíritos. Depoimento, se quiserem.

Nem tudo em Chamego, o Urubu é água límpida. Ora, ninguém atinge a perfeição em criação artística antes de alcançar a eternidade. Não é demérito isso. Se este poeta nordestino tivesse escrito o mais belo livro em prosa da Literatura Brasileira, certamente não continuaria escrevendo. Pois há neste livro pelo menos duas narrativas muito espichadas, derramadas, excessivas: “Toinhão” e “Interrogatório & Cia Ltda”. Se sofressem alguns cortes, enxugamentos, o sabor de outras histórias estaria neles presente. E o laboratorista Paulo Nunes Batista daria por encerrada a sua missão no laboratório da palavra escrita.
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O bestial Carlos Bayma (Nilto Maciel)


"Por que muitos que som leterados nom sabem trelladar bem de latim em linguagem, pensei escrever estes avisamentos pera ello necessarios. Primeiro, conhecer bem a sentença do que há de tornar e poê-la enteiramente, nom mudando, acrecentando, nem minguando algua cousa do que está scripto."
Dom Duarte, Leal Conselheiro

"Se também um homem se ajuntar com animal, será morto; e matarás o animal."
Moisés, Levítico 20.15

Para Umberto, o motor da tragédia de Carlos Bayma foi o livro A Vida Sexual dos Cães, escrito por Alphonse Bragadin, demonólogo francês, tão famoso quanto Jean Bodin, Papus e Joahannes Heidelberg. Sustentava, porém, que a obra, no original, se intitulava La Vie Sexuel des Diables e fora pessimamente traduzida pelo prestigiado tradutor brasileiro Afonso Braga. Mas apesar dos grosseiros erros de tradução, dizia, era fácil concluir que o cão do livro era o demônio, a começar pela frase: "A genitália do cão mede, quando erecta, 66 centímetros, em média". Ora, deduzia, é sabido que o pênis de um cachorro, por mais gigantesco que seja este, com exceção dos mitológicos, não chega a tanto. Por outro lado, ensinava, existe aí uma estranha coincidência numérica, pois 66 é o número total de letras do triângulo cabalístico.

Quando Dionisio relacionou os 18 títulos encontrados na estante da casa de Carlos, Umberto gargalhou e afirmou que o citado número representa, no jogo do bicho, o porco, sendo sabido que a feiticeira Circe transformou em porcos os companheiros de Ulisses, o que demonstra a preocupação do possuidor dos livros com a feitiçaria.

Um destes 18 livros intitulava-se Enciclopédia do Cão, de autoria do demonólogo Zedéquias, homônimo do célebre cabalista que aterrorizou o reino de Pepino, o Breve, ao fazer aparecerem em público alguns regimentos de Silfos.

Não era por acaso que Carlos também tivesse em casa o Iracema – a protagonista da lenda de Alencar era uma feiticeira tupi, uma espécie de Medéia brasílica.

Outro livro que explicava o demonismo de Carlos era o grosso volume Os Dálmatas e a Música, valioso estudo sobre a utilização da música pelos povos primitivos da Dalmácia. Não seria um simples criador de vira-latas, chasqueava, que iria ler um livro desses. A música tem um caráter encantatório e hipnotizador, daí porque o Diabo tem-lhe verdadeiro horror.

Às vezes parecia que Umberto estava esquecendo o livro sobre a vida sexual dos cães. No entanto, nada disso ocorria. Assim, quando a discussão recaiu sobre os sete cachorros de Carlos, perguntou se os mesmos eram chamados Baleia, Tubarão, Piaba e outros nomes comuns entre a população nordestina. Não, chamavam-se Astarote, Samael, Leonarda, Asmodeu, Belial, Lusbela e Berita, todos nomes de demônios, embora três deles feminizados. Tais nomes foram dados após a aquisição do livro, e não é provável, dizia, que um manual de sexologia canina divulgue nomes de demônios. Além do mais, para que maior clareza do que a do trecho: "O diabo Albert Artisson, que aparecia transfigurado ora em homem, ora em gato, ora em cão, mantinha relações sexuais com Alice Kyteler"? E grifava as palavras diabo e cão, dizendo que o tradutor só não confundia demônio com cachorro, a ambos chamando de cão, quando os dois apareciam na mesma frase, como no exemplo dado.

Dionisio, para contestar o rival, servia-se também do livro, citando trechos e mais trechos, como este: "Aubry Nicole, uma menina de 16 anos, quando visitava a tumba de seu pai, foi estuprada por um cão." E perguntava, indignado, como o demônio, que é espírito, segundo dizem, pode estuprar uma mulher, se o estupro é um ato puramente carnal. Umberto ria e chamava Dionisio de maquiavélico. Explicava que os demônios são realmente espíritos, mas que, para travar relações com os animais, têm que se apresentar sob formas animais. Que meditasse sobre esta frase: "O cão que representa a desordem, a pederastia e o vício chama-se Belial e apresenta-se sob forma de um formosíssimo mancebo." Não apenas adquiriam formas semelhantes às dos seres de carne e osso mas até superiores: formosíssimos mancebos e não feíssimos velhotes.

Além do mais, antes de terem tais nomes, os vira-latas eram chamados Faraó, Jubileu, Gaza, Onã, Zorosbabel, Salma e Zera, todos nomes bíblicos, o que evidenciava ter sido Carlos Bayma um homem versado em altos estudos.

Dionisio, por sua vez, dizia que o livro, no original, intitulava-se La Vie Sexuel des Chiens, tendo sido o autor até mesmo Presidente do Kennel Club de Paris. Tratasse a obra de diabos, para que a frase: “Os malefícios são vários, destacando-se o da prática do coito com cães, segundo Jean Bodin”?

Que malefícios eram estes, perguntava Umberto. Logicamente que os malefícios causados ao homem pelo sexo, respondia Dionisio. O outro, porém, explicava que malefício é um ato produzido por voz mágica, não cogitando o autor de simples doença, uma vez que fora um estudioso da magia, além de jurisconsulto. E provava, mostrando seu livro Demonomania dos Feiticeiros. Não pensasse, no entanto, que quisesse dizer que o vocábulo cães da frase tivesse sido maltraduzido. Pelo contrário: fora uma das raras vezes em que Afonso Braga acertara.

Dionisio contava a seu favor o fato de Carlos, homem do sertão cearense, pela origem, embora tendo vivido no Rio de Janeiro, onde a cultura se transforma constantemente, mal conhecedor de assuntos metafísicos, católico romano apenas por tradição, ter fundado sua cultura literária basicamente em manuais caninos (sic), citando-se entre eles a Enciclopédia do Cão, de autoria de um zoólogo de nome nada semelhante a Zedéquias – José da Guia –, e O Cão Em Nossa Casa. Dizia mais que, dos 18 livros encontrados na casa do velho, apenas não se referiam a cães uma Bíblia, o livro mais lido no mundo, até pelos não-cristãos, um Iracema, leitura obrigatória de todo cearense e, por que não dizer, de todo brasileiro, um Mon Livre de Français, que pertencera a seu filho Luís, o qual estudara até a 3a. série ginasial, livro que o motivara a adquirir a Histoire des Chiens, de Rivoil, que pretendia traduzir, valendo-se do pequeno vocabulário francês-português constante de suas páginas finais. O último livro não identificado com o assunto canino era o curioso Os Dálmatas e a Música, para cuja aquisição havia uma explicação: Carlos Bayma sabia da existência da raça de cachorros dálmatas e imaginara tratar o livro, provavelmente, da utilização da música na educação dos dálmatas cães, uma vez que, como o próprio Umberto dizia, até os animais brutos são sensíveis à música. De certo, Carlos tencionava um dia criar cães dálmatas.

Valia-se ainda Dionisio, para provar que Carlos nada tinha com a feitiçaria ou a demonologia, não passando de um lascivo criador de cachorros, do fato de ele domesticar sete exemplares de tal espécie. Ninguém duvide, dizia, de que tanto há mulheres que criam cães para com eles praticar atos libidinosos, como há cães que perseguem mulheres. O próprio livro trata deste tema: “Acusada de manter relações sexuais com um dos vários cães que costumam abusar das mulheres durante o sono, Françoise Bos foi queimada viva no dia 30 de julho de 1607”. Porém, mais uma vez voltava Umberto a vituperar a tradução, dizendo que Dionisio se deixara enganar por ela, pois é fato notório que só um demônio pode manter relação sexual com uma mulher sem que ela acorde, e tais fatos eram corriqueiros na Idade Média.

Havia ainda um grupo formado por Tarcísio, Quincas, Cincinato e Seixas que tinha o livro como mero adereço de toda a história, embora não lhe negassem a existência. Para eles, o tal objeto era peça secundária e até desnecessária para a explicação do fenômeno Carlos Bayma. Devia-se, isto sim, buscar nos cachorros, ou como quisessem chamar aos animais de estimação do velho, a causa motriz do triste acontecimento. Sem eles, explicavam os quatro, o personagem ainda seria um insignificante velho aposentado à espera da morte sem estardalhaço. Diziam ser fútil e vã a polêmica que travavam Umberto e Dionisio. Nada significava ser o livro cabalístico ou canino. Fosse o que fosse, não passava de um inútil alfarrábio carcomido pela traça que servia de deleite a um anônimo criador de cães. Até aí estavam os quatro de pleno acordo. Quando passaram à explicação da tese que defendiam, pareceram inimigos entre si. É que Tarcísio via nos cachorros indefesas vítimas da bestialidade de Carlos. Para ele, o velho fazia de seus sete cães, quer machos, quer fêmeas, objetos de sua tara. Qualificava o personagem de estuprador de cães. Com esta última afirmativa não concordava seu parceiro Quincas, que via no velho apenas um sedutor de cães. Na verdade, explicava este, Carlos enganava os animais com falsas promessas de boa comida e ainda se aproveitava de sua condição de ser superior. E mais: abusava da confiança que os sete quadrúpedes nele depositavam para ludibriá-los.

De quase tudo isso discordavam Cincinato e Seixas. O velho era um tarado, um bestial, um homossexual, um monstro. Mas não era um estuprador. Dizia Cincinato que Carlos Bayma era, pelo contrário, uma espécie de vítima da fúria sexual do cães, que dele se aproveitavam, transformando-o em cachorra. Mísera cadela de rua, diziam. Neste caso as fêmeas agiam como simples espectadoras. Criminosas eram também porque nada faziam para impedir o crime. Bem que poderiam seduzir os de sua espécie, evitando, assim, o aviltamento da humana e da canina.

Seixas arrepiava-se em face de tão horríveis especulações. Não acreditava em bestialidade desse quilate. Acreditava, sim, no amor, que pode ser uma espécie do gênero bestialidade. Carlos Bayma amava desesperadamente os sete cães, assim como estes o amavam acima de tudo. Mas tal amor não ia além da alma. Era platonismo puro. O homem e os cachorros jamais se aviltaram pela carne. Contentavam-se com olhares lânguidos, com suspiros românticos, com frases francesas.

Aproveitando-se das idéias de Seixas, alguém de nome Setembrino ousava dizer que tal amor não era tão platônico assim. Acreditava que o velho bestial se despia e punha-se a desfilar diante dos olhares concupiscentes dos cães, que gemiam e se babavam. Já Oto recriava a cena de outra maneira: o velho não se despia nem desfilava. Pelo contrário, era muito respeitador. Até demais. Pois nem sequer mijava diante dos animais. Desde criança aprendera a virtude do pudor, que chegava a ser excessivo. Assim, fechava os olhos quando se despia para o banho ou quando abria a braguilha para urinar. Acreditava, porém, que nenhum pecado havia no despudor dos outros. Os cães que trepavam no meio das ruas, os casais que se beijavam em público, nada o envergonhava. Seu crime, no caso presente, era permanecer horas a fio olhando os sete cães praticando toda a sorte de sacanagens, numa perfeita sodomia canina. Bem que poderia evitar que os bichos se masturbassem, praticassem atos de pederastia, se ferissem nas práticas sádicas etc. Era, assim, mero espectador.

Nonato não se misturava aos demais nas discussões. Para ele bastava culpar a tudo e a todos da tragédia que feriu os brios de toda a nação. Assim, eram culpados os que aposentaram o velho funcionário, pois se ainda permanecesse na repartição, mesmo cochilando, jamais teria procurado refúgio em casa e, por conseguinte, nos cachorros e no famigerado livro. Culpado também era o próprio Carlos Bayma, que requereu a aposentadoria, aceitou criar a cadela Clara, que viria a ser mãe dos sete cães bestiais, e adquiriu o livro pernicioso. O sexo era outro culpado, o maior de todos, pois sem ele Carlos não teria conspurcado a natureza, ferindo a dignidade das espécies humana e canina, ao misturar seu sangue pensante ao sangue dos sem-razão. Bestial! clamava aos quatro ventos.
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quarta-feira, 16 de novembro de 2005

Outros contistas (Nilto Maciel)


Torpalium, de Júlio César Martins, é composto de pequenos flashes da cidade grande. Os personagens são estes com quem esbarramos a cada passo: meninos famintos, homens e mulheres carregados de medos, frustrações, misérias, loucos de todos os gêneros, prostitutas, ladrões, marginais enfim.

Às vezes o puramente real assemelha-se ao fantástico. Como em “Caso de Fome”. Contos como “Caso de Polícia”, “Na Esquina da Prefeitura” e "Feriado Nacional” são casos que acontecem continuamente. Não estão nos jornais, a não ser em outra situação. Porque, como diz a canção, “a dor da gente não sai no jornal”.

Raízes da Morte é obra de muito trabalho, muito talento. As preocupações de Murilo Carvalho são outras, menos imediatas que as de Júlio César. Tem outra visão. Uma visão mais angustiada da vida, mesmo sendo seus personagens gente das pequenas cidades e do campo. Um realismo intimista, que deixa no leitor uma sensação de aniquilamento. Contudo, as tramas não se afastam do cotidiano e os personagens não se debatem em angústias puramente metafísicas.

São apenas seis contos, todos de uma dramaticidade amarga, quase tocando a epiderme da loucura. Ou do absurdo, como no magnífico “Os Cupins, Como Uma Cachoeira”. Enfim, um livro encantatório ou patético, até quando coloca o homem não poluído diante da ameaça da poluição, como em “Raízes da Morte”. São todos contos de excelente feitura, ao contrário da maioria dos livros de contos. Para resumir – um dos melhores livros de contos brasileiros dos anos 1970.

O Banquete, de Silviano Santiago, talvez não seja um livro de contos. Por isso deve ser lido como um conjunto. Livro para ser compreendido como um livro. Não porque os primeiros quatro contos tenham a estrutura tradicional da narrativa curta e outros só cheguem a ser contos por terem personagens. Podemos chamá-lo, pois, de livro programado, intencional, em oposição a livro de inspiração. Este tipo de livro pode, sim, trazer uma só temática, uma mesma linguagem, um só ambiente. Como se fosse um romance.

Para o leitor menos lido só serão bons contos os quatro primeiros do livro. Os demais serão meros exercícios verbais. Um livro vanguardista. Um livro escrito por um homem de idéias e nunca por um ficcionista. Por um Sartre, nunca por um Jorge Amado.

Hermann José Reipert, também maduro nas letras e nas idéias, fez contos em Hora Inclinada. Contos com sabor também amargo, embora seja, sobretudo um romancista. Às vezes alcança o essencialmente social, como em “Passagem Para Dois”, tão lúgubre quanto alguns contos de Júlio César. É, porém, no drama interior dos personagens no qual mais Reipert penetra, chegando ao patético puramente real, com singularidade, como em “O Elefante”, “Ronda”, “Zoca”, “Um Homem e Uma Mulher” e outros. Sem dúvida, outro livro de contos de sabor magnífico.

Em Caminhos do Vento, de Dionisio Pereira Machado, a linguagem está mais apurada em relação aos seus livros anteriores. Essa apuração atinge os limites do artificialismo, parecendo uma procura desesperada de vocábulos para a construção das frases. Como aqui: “No beiço branco, broncos barcos brocados espiam as clinas cristalizadas do monstro”.

Em alguns textos, Dionisio conseguiu, no entanto, proezas dignas de nossa melhor literatura, como em “O Filatelista”, talvez o melhor conto do livro. Na grande maioria, entretanto, comete as mesmas barbaridades dos primeiros livros.

Verifica-se, ainda, uma heterogeneidade na temática enfocada. Assim, ao lado dos contos essencialmente regionalistas, à moda de Bernardo Élis e Guimarães Rosa, nos quais se realiza, criando tipos, ambientes, situações, há narrativas de temáticas diversas. Ora, o fantástico pode estar no regionalismo e este naquele. São minoria, porém, os contos regionalistas em Caminhos do Vento. Em Dionisio o fantástico ou, melhor dizendo, o metafórico se delineia na própria linguagem. Quase sempre o discurso se estende e se baralha. Outros contos percorrem a trilha da denúncia social. Neles o contista goiano consegue melhores momentos do que nos textos ditos metafóricos, apesar de não ir além da moda.

Estação das Manobras, de Magalhães da Costa, traz 15 histórias curtas, algumas até curtíssimas, em que o mundo do homem do sertão é recontado com a linguagem mais sertaneja possível, sobretudo nos diálogos. Aliás, o contista prima no uso do diálogo.

Assim como outro piauiense ilustre, Fontes Ibiapina, o autor desta obra não é apenas um contador de histórias. Sabe ele tratar a matéria-prima de sua fabulação com o humor característico do nordestino. São consequência disso algumas anedotas e histórias picarescas.

O escritor tem compromissos com os valores culturais de sua terra. Sobretudo quando se dá a desfiguração da língua, dos costumes, das peculiaridades. A preservação da língua portuguesa, enriquecida e abrasileirada com a contribuição indígena e africana, é também incumbência do escritor brasileiro. Para Fábio Freixeiro, não é bem-vindo o uso de “arcaísmos típicos do conservadorismo interiorano”. Ora, está em jogo nossa identidade cultural. O vocabulário e a sintaxe ingleses nos são impingidos pela mídia. E Magalhães da Costa é um desses escritores voltados para a defesa intransigente da língua portuguesa.

Reunidos num volume, os contos de Os Sinos e O Tombadilho, de Renard Perez, mostram um mundo antigo, de internatos, “naviozinhos ordinários”, circos. Um mundo reconstruído pela memória. Mas o mundo é amplo e não é feito apenas de paisagens mortas relembradas por fotografias. É também feito de realidades mais abrangentes. A literatura de Renard Perez é elástica – vai do espaço existencial da criança que descobre o substituto do pai até o campo de batalha onde se desenrola uma revolução fracassada. Não há reduzido ou ilimitado espaço. A dimensão de um momento ou de um personagem depende única e exclusivamente da ótica do escritor. E Renard Perez vê e mostra em sua ficção pedaços de um espaço sem limites – o homem.

Esfinges, de Francisco Maciel Silveira, é literatura agradável, bonita e moderna, sem ser difícil. Pelas epígrafes se vê onde o contista fez o seu aprendizado, embora, muitas vezes, as obras repletas de epígrafes não passem de meros atestados de soberbia. Há unidade temática no livro, cujo título não nasceu por acaso, mas pelo “uso e fruto” de uma clara visão do mundo, conturbado mundo repleno de obscuridades – esfinges nunca decifradas.

Os contos de Francisco de Britto, reunidos em Massapê, são histórias do sertão goiano, simples casos, escritos numa linguagem fácil, do agrado do leitor mais exigente. O contista é regionalista e tradicionalista.

Terra II- Astronave do Sonho, de Eduardo Jordão, é ficção ou sonho. Ficção científica de quem sonha muito. Alguns textos não chegam a ser histórias. Poderíamos vislumbrar aqui e ali uns laivos de regionalismo. Tudo muito sutil. Ou de orientalismo em mundos fantásticos de viagens espaciotemporais. Loucura da civilização ocidental cristã. Tudo, porém, nascido do lúdico, desse lúdico em que os realistas-fantásticos vão sorver proezas mentais.
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A lenta metamorfose de Menito Bonino (Nilto Maciel)




Menita Bonina habita as ruas, não tem razão nem memória, come lixo, às vezes ri, às vezes chora. Serve de palhaço aos mais divertidos, tem por companheiros cães vadios e perdidos, é motivo de reportagens escandalosas.

— Quantos anos você tem, Menita?

— Não sei, não. Me deixe em paz. Vou dormir e tomar banho. Mamãe está me chamando.

— Você veio de onde? Nasceu aqui mesmo? 

— A cegonha me trouxe do céu.

— Você vive nessa vida desde quando?

— É a primeira vez que converso assim. Eu gostava muito de homens e bebida. Agora dei para conversar.

Menita carrega um mundo de doenças. Bebe álcool, fuma, cheira cola. Sobretudo, passa muita fome. E sonha com fantasmas. Pai, mãe, irmãos, lobisomens, cegonhas, satanases, deuses, sereias.

Bonina era ainda um botão quando caiu na vida. Entregava-se a todos os tipos de homens: jovens e velhos, magros e gordos, solteiros e casados, gentlemans e brutamontes, sádicos e masoquistas, ébrios e sóbrios, perfumados e fedorentos, ricos e pobres... Nos bordéis construiu sua existência, seus sonhos esfarrapados, suas quimeras impossíveis, seus dias amargos.

O pai de Menita filosofava. Admiravam-no vizinhos, parentes, amigos, companheiros de trabalho. E dizia para sua filha: “cuidado, muito cuidado, com os homens, minha filhinha. Não se aproxime deles. São uns falcões. Fique sempre em casa e estará livre deles”. Bonina nada dizia, nada perguntava, nada contestava. Tinha medo, muito medo. Aprendera a ouvir apenas, a não falar, a não perguntar nunca.

— Minha filha, não faça isso, vá se sentar, vá brincar. Não precisa trabalhar. Menina não precisa trabalhar. Trabalho é para homem.

O professor perguntou ao filósofo se a menina não iria estudar. “Não. Mulher não precisa estudar. Mulher é para viver em casa. Depois casa. E continua em casa”.

Menita nada fazia sozinha. Banhava-a o pai. Vestia-a a babá. Alimentava-a a mãe. Sempre ajudada ou assistida pelo pai, pela mãe, pela babá, pelas tias... “Mãe, ‘tá na hora de me banhar?” “Pai, vem me vestir”.

Assim até sair de casa.

— Fora, imediatamente, cadela, puta, sem-vergonha. Antes que eu te mate. Rua! Rua!

— Mas, pai, não fiz nada demais.

Apesar de tudo, inquietava-se:

— Mãe, como nasci?

— A cegonha trouxe você no bico.

Conselhos não lhe faltavam:

— Minha filha, ande sempre vestida. Nunca fique nua. O diabo pega menina que anda nua.

Menos no banheiro. Assim mesmo, longe dos olhos dos outros. Mas enquanto você for pequena, nós podemos ver você nua. Só nós.

Ainda brincava com bonecas, quando conheceu o príncipe encantado.

— Meu anjinho, minha rosa, minha menina bonita, eu te amo muito. Vem, sem medo. Vou ser teu primeiro e único homem.

O berço de Bonina era um luxo. Feito com exclusividade, custou uma fortuna ao filósofo.

— Qual o nome do nosso filho, querido?

— Menito Bonino.

— E se for mulher, que Deus nos livre?!!!

– Não há de ser. Se for, será um castigo. Prefiro que nasça morta.

— Não será pecado isso?

— Pecado será se não nascer menino. De mim só há de sair filho macho.
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segunda-feira, 14 de novembro de 2005

Valdomiro Santana: concisão e profusão no Dia do juízo (Nilto Maciel)



Estreou em livro Graciliano Ramos aos 41 anos de idade. Isto não quer dizer que tenha começado a escrever tarde. O exercício de escrever está para o escritor como o exercício de andar e falar está para os recém-nascidos. O aprendizado faz-se lentamente. Escrever, no entanto, não é um mecanismo inerente a todos. Como não o é compor música ou pintar quadros. Exercitar o ato de escrever pode resultar num São Bernardo, após anos e anos de exercício contínuo, diário, quase febril. Ou pode redundar em historietas de gosto discutível. Isso quando o candidato a escritor é muito pretensioso. Quando não o é, termina escrevendo artigos ou reportagens. Se chegar a tanto.

Valdomiro Santana estreou em livro aos 40 anos de idade. É cedo, porém, para dizermos se O Dia do Juízo tem o valor de um Insônia. Alguns dos contos nele contidos são excelentes, como “O Coração na Ponta dos Dedos”. De um realismo envolvente, como nos melhores escritores russos e franceses da fase áurea da escola de Flaubert. Nem todo leitor suportará sua leitura sem ter de segurar o coração com as mãos. Além de tudo, a sua engenharia é quase perfeita. Do mesmo nível dele são “Craque Café”, “A Hora de Cada Um”, “Afonso” e “Amizade”. Contudo, diferentemente daquele, são verdadeiras obras-primas de concisão.

“Craque Café” é o drama de um pequeno vendedor de café, a serviço de uma velha. E vem assim descrito logo no primeiro parágrafo: “Magro, nanico, banguela e baio, Nego Baio o apelido, porque tinha o couro liso e brilhoso de peia, caía no pau não vendesse as dez garrafas de café que a velha coava e adoçava numa lata de querosene”.

A maioria dos contos do livro situa-se na Grande São Paulo. Contam a vida marginal de operários e lumpemproletários, de sofridas mulheres trabalhadoras e de prostitutas. Com exceção de “Afonso”, no qual o personagem principal é se situa no lado oposto daqueles. É o típico burguês paulista, intelectualizado e oco: “poliglota, exímio jogador de xadrez, dono de uma fantástica coleção de discos de jazz, emérito conhecedor de vinhos, e mais duas ou três coisas que fazem o encanto dos basbaques”. O típico burguês de qualquer cidade do mundo.

As outras três histórias, duas delas longas, alcançam o nível dos pequenos contos citados. “O Mundo Dá Muitas Voltas” certamente deixará no leitor atencioso uma sensação de que a história está incompleta. “O Dia do Juízo” e “Nena, o Turco, o Homenzinho e a Patota” parecem romances inacabados ou trechos de romances.

Todo contista sonhará escrever um grande romance? Contos mais longos seriam ensaios para romances? Talvez sim, inconscientemente. Ensaio que não deveria ser levado ao palco, sob pena de vaias do público. Os bons narradores escrevem contos ou romances e novelas. Nunca confundem alhos com bugalhos.

Enfim, O Dia do Juízo, pesados os prós e os contras, deixa no leitor mais exigente a certeza de que nem tudo é mediocridade na prosa de ficção brasileira. Como em 1933, quando se publicou Caetés.

Por último, é de se ressaltar o posfácio conclusivo de Eglê Malheiros – diagnóstico detalhado da obra de Valdomiro Santana.
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Legenda (Nilto Maciel)



De pé, José Cristiano, silaque, calça frouxa. Cigarro pela metade no canto esquerdo da boca, sorriso morrendo nos lábios e nos olhos negros. Cabelo meio assanhado, diferentemente dos demais personagens. Bigode a Estaline e as primeiras rugas identificando muito cansaço para tão pouca vida. Contava então 28 anos de idade, por mais que se queira ou se presuma.

Sentada, pernas estiradas e juntas, Maria Virgínia. Vestido decotado e cheio de voltas, espalhado pelo capim, como uma enorme dália. Não completara ainda 23 anos de idade. Sorriso de meio palmo no rosto belo, como se fosse grande demais a felicidade. No entanto, no dia seguinte foi recolhida a um manicômio, em estado de completa loucura, após a morte do marido.

Aninhado nas coxas grossas de Maria, o pequeno César também sorri. Morreria aos 22 anos de idade, ao participar de uma rixa entre marginais num bar. Sua mãe, ao tomar conhecimento do crime, tornou-se santa. Falam da produção de uma bela imagem sua, a ser adorada pelos cristãos da cidade: os Moretis.

Na fotografia, o menino mostra um ar de estupenda admiração. Olha fixamente para a câmera. Veste calça curta azul-turquesa e blusinha justa de gola larga. Os cabelos longos espalhados pela testa e sobre as orelhas, que não se vêem. Calça botinhas pretas e novas, pelo estado.

Depois da morte do pai e da loucura da mãe, César passou aos cuidados de seus avós maternos, por decisão judicial. Apesar da luta dos avós paternos, que alegaram ter sido Maria a causadora direta da morte de Cristiano. Surgiu então a célebre guerra entre Nascimentos e Moretis, de que resultou até agora a morte de mais de vinte pessoas, inclusive mulheres e crianças. A última vítima, provavelmente assassinada por um Nascimento, foi Maria. Aconteceu em agosto do corrente ano, nas dependências do manicômio onde vivia.

César viveu desde criança de rusgas nas ruas. Vez por outra, sua mãe conseguia burlar a vigilância dos carcereiros e saía a procurá-lo pelas ruas e ruelas da cidade. Um dia se encontraram. Ela já velha, feia, desdentada, suja, magra. Ele violento, robusto, entre a adolescência e a velhice. Abraçaram-se e choraram.

— És tu, meu adorado César Augusto?

— Sim, mãe amada.

— E que fazes no mundo?

— Atiro pedras em monumentos, igrejas, cemitérios...

— Por que não atiras nos homens?

— É verdade! Por que não atirar pedras nos homens?

— São os melhores alvos.

— E tu onde estás?

— Estou presa por loucos.

— E por que não foges para mim?

— Não temos para onde ir. Nosso lugar era meu marido e teu pai.

— E para onde ele foi?

— Para o paraíso.

— É verdade?

— Sim, foi para o paraíso, onde habitam as serpentes.

— Irei procurá-lo.

E se despediram, alegres, como nos velhos tempos de mocidade, infância e felicidade.

Ao fundo, a antiga Igreja do Sagrado Coração de Jesus, com suas largas portas abertas. Alguns fiéis voltam para suas casas. Duas velhas de mãos dadas (talvez irmãs), um velho com uma bengala cabo de cabeça de cascavel e outros rostos ainda no interior do templo. No patamar, um carrinho de fazer e vender pipocas e o provável pipoqueiro a coçar o queixo.

Entre as torres, um céu azul como pano de fundo. Nuvens brancas dão idéia de um crocodilo em perseguição a um carneirinho, um elefante e outras diversas figuras decorativas.

Após desembolsar a bagatela de trinta mil réis, José satisfez as insistências de Maria e apareceram na coluna "Society Braziliense", assinada por Miharbi, do jornal “A República”.

Publicada na edição do dia seguinte, 23 de agosto de 1954, traz a seguinte legenda: “Na foto o Sr. José Cristiano do Nascimento, sua digníssima consorte, D. Maria Virgínia Moreti do Nascimento, que comemoraram ontem mais um aniversário de matrimônio, o terceiro do feliz enlace, e o lindíssimo garotinho César Augusto, filho do casal. O jovem par é muito benquisto em nosso grand monde, razão pela qual foi efusivamente cumprimentado durante todo o dia que passou, em sua mansion, localizada no elegante e fidalgo bairro das Flores”.

No dia 24, José, sem nada pagar, foi notícia em diversos jornais. Desta feita, na primeira página e em letras quase descomunais: SUICIDA-SE CRISTIANO DO NASCIMENTO.

(24/8/76)
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sábado, 12 de novembro de 2005

Avarmas de Miguel Jorge (Nilto Maciel)


Avarmas, livro de contos de Miguel Jorge, vem apresentado por um estudo de Gilberto Mendonça Teles, centralizado na noção de "descontinuidade da história". Tendo como ponto de referência a literatura brasileira do final do século XX, percebe-se no escritor goiano o domínio da palavra e da frase, mesmo que, às vezes, não se contenha no utilizar jogo de palavras, como no conto “Jogos de Argolas” (sem redundância), em que palavra e o objeto "argola" se identificam simbolicamente como meios utilizados para prender, laçar, ganhar. Outro exemplo está na aliteração: "a bateria batucava batuque de baque e babaque". Noutro conto aparece a mesma relação palavra-objeto, desta feita o objeto "chave", mas já no sentido oposto de abrir, libertar, como se vê em “Branco sobre Branco”: "Se ao menos pudesse transformá-las (as palavras) em uma chave"... Miguel Jorge se vale muito da imaginação. Certa crítica vê nisso (o irrealismo, o realismo mágico, o fantástico etc) um pecado grave. Ora, tudo o que vem do homem não pode exceder a própria limitação humana, se é que o homem, ou a realidade, tem limites. Assim, é de se acreditar primeiro numa "debilidade mental" generalizada, que seja incapaz de captar ou entender a mensagem transmitida pelo artista ou, mais concretamente, o vôo de imaginação dos artistas (o mais correto seria dizer memória em vez de imaginação). Assim como palavras e línguas são postas em desuso, também o são as idéias. Mas se um baú é um objeto, é também um símbolo. E se não se fala mais o etrusco ou o cariri, as culturas dos etruscos e dos cariris permanecem na memória do homem. Italianos e brasileiros foram reprimidos para esquecer aquelas línguas e culturas. Kafka descreveu o que retirou do esquecimento. É maravilhosa a descrição de um espetáculo mambembe em que homens lançam mulheres com argolas.

A arte, ao contrário da ciência ou da sabedoria, é um mistério até para seu criador. Porque o artista é também um homem comum, embora momentaneamente arrebatado pelo mistério da arte. O artista não “entende” a arte que ele mesmo reflete, exceto no instante da “criação", ou, melhor dizendo, da captação. Se o chamado artista entende sua chamada arte nem ele nem ela são artista e arte. São copiadores, no pior dos casos, ou técnicos em escrever, no caso do simplesmente escritor. Ou apenas homens inteligentes. O artista não é necessariamente um homem inteligente.

Temístocles Linhares, em 22 Diálogos Sobre o Conto Brasileiro Atual, analisando os contos de Miguel Jorge, diz: "É a maneira de apresentar ocultando, que se nota em Kafka, em Faulkner, dentro do princípio de que em toda arte se praticam processos de mutilação, tanto quanto de previsão e sugestão". Ora, pois, a arte não é espelho liso e inteiriço – é, no máximo, água em correnteza, em tempestade, é apocalipse. Contos como “Véspera de Pânico”, até pelo título, é uma revelação, a lembrar os textos bíblicos. Com Avarmas, Miguel Jorge veio demonstrar que arte literária não é mero exercício de escrever.
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O filho da solitária (Nilto Maciel)


Quando ele voltou, isto é, quando o trouxeram de volta, não o reconheci. Talvez eu já estivesse ficando cega, caduca, velha demais, como diziam. Não, meu filho parecia mesmo outro. Certamente haviam passado muitos anos desde sua partida, pois ele também não me reconheceu. E nem ainda me reconhece.

Com as quatro patas assentadas no chão frio, vive mudo pelos cantos. Eu o aconselho a cantar, de vez que não quer falar. E a correr, já que não deseja andar. Porém ele apenas coaxa e pula, de quando em quando. Como se tivesse medo de estar livre. Resolvo então espantá-lo com a vassoura. Se assim não fizer, a casa pode virar um monturo, cheia de sapos, ratos, bichos de toda espécie. Paro e vejo: ele me olha com resignada profundidade. Depois dá um pulo, outro, mais outro e foge para o quintal. Se me descuido ou quando é noite, está ele novamente no mesmo cantinho, encolhido, os olhos esbugalhados.

No quintal, mete-se na água suja que escorre da lavanderia, na lama formada ao pé do mamoeiro ou no lixo onde se amontoam os restos de comida reservados ao bacorim desaparecido.

Dia desses, a vizinha da direita, ao ouvir aquele remexido na água, pôs a cabeça sobre o muro e perguntou se me haviam devolvido o porco. Enquanto imaginava a resposta, perguntei-lhe se do lado de lá o muro era baixo. Fui buscar um tamborete, porque julguei ter ouvido roncos de porco, explicou-me. A seguir, arregalou os olhos e perguntou: de quem é este sapão? Você está criando ele para engolir cobras? João olhou para a cabeça que falava e deu uns três pulinhos dentro da água. Tive vontade de dizer um desaforo qualquer. Terminei fazendo graça. Eu o queria para apagar brasas. A safada sorriu e disse: deixe de mentira! Ninguém usa mais fogão a lenha nem fogareiro a carvão. E desapareceu. Fiquei apalermada, a olhar para cima do muro. E ainda ouvi a voz risonha e sumida da vizinha gritar: jogue água salgada nas costas dele.

Dias depois, minha vizinha da esquerda veio me perguntar se, na verdade, eu havia resolvido criar batráquios. Ora, que diabo são batráquios? Quando tiver alguma jia grande me avise. Adoro jias.

Hoje me contaram tudo: meu filho esteve numa solitária, acocorado durante não sei quanto tempo.



(26/5/77)
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quarta-feira, 9 de novembro de 2005

Silveira de Souza: Nós e o fogo (Nilto Maciel)

Os contos (ou relatos, como quer Silveira de Souza) de O Cavalo em Chamas se filiam a duas vertentes distintas da prosa de ficção. Aquela que se projetou em Murilo Rubião e José J. Veiga, e a que se esmerou em Machado de Assis.

A história curta, tradicionalmente conhecida como conto, não só tem servido de objeto de discussões de ficcionistas e teóricos da literatura em busca de definições, como tem dado ensejo a constantes rebatismos, mercê das transformações que tem sofrido. Muitos encontraram belas e grandiosas definições. Arranjar, porém, novos nomes para o gênero parece tarefa sem proveito. Porque a cada definição e a cada transformação seria preciso um novo batismo. Assim, o termo relato, se serve a Borges, não se amolda a Rubião. Até um mesmo escritor cultua o gênero sob diversas formas. Pode-se chamar de relato “As pulsações”, mas seria desproposital fazê-lo com “Exercícios Burgueses”.

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A maioria dos contos de O Cavalo em Chamas se aproxima da técnica borgeana, quer pelo fantástico das situações, quer pelo enredo. Todavia, dificilmente o leitor médio dissociará o desfecho da narrativa – sempre surreal – do fato narrado. Pelo contrário, por mais fantástico que seja aquele, é quase imperceptível o limite entre o real e o irreal no corpo da narrativa. Exemplos disso são “Questão de Tempo” e “O Braço Direito de Noêmia”. No próprio título do primeiro, esse princípio. Quer dizer, é só uma questão de tempo a transformação do real em irreal. Mera conseqüência.

A metamorfose ou a deformação, nos desfechos, embora irreal, se apresenta como resultado lógico de acontecimentos reais e cotidianos. O leitor pode até imaginá-la, com antecedência. Esses desfechos não poderiam deixar de ser fantásticos. Do contrário, dificilmente o leitor os entenderia como metáforas. O braço de Noêmia, por exemplo, cresce para proteger o personagem-narrador. Se não crescesse desmesuradamente, até transformar-se em jibóia, como o leitor iria associar a idéia de proteção, apadrinhamento, a monstruosidade, coisa suja? Além do mais, esse braço é o direito, ou o da direita.

Noutros contos, entretanto, o elemento fantástico não espera por desfechos. É o que se vê em “Psicocinésia”, em que a filha excita o pai, resultando daí uma fenomenal aceleração de movimentos dos objetos da casa: levitação de cadeiras e pratos, chuva de pedras. O mito do incesto, tão maravilhosamente recriado por Sófocles. Com as mesmas características desta narrativa são “As Pulsações” e “Bugres”, ambas com sabor de mistério.

Embora o irreal esteja presente em quase todo o livro, não é menos verdade que Silveira de Souza seja um machadiano, mesmo nos contos mais fantásticos. Existe, porém, uma profunda diferença de tratamento entre estes e os contos psicológicos. Nuns os personagens são meras representações de entidades abstratas, como o remorso, a vingança, a culpa. A presença deles é imprescindível unicamente por ser impossível escrever prosa de ficção sem personagem. Noutros, importa a relação entre eles.

Em “IRPVII” o tema é a burocracia, já satirizada por inúmeros contistas. Em outros quatro contos a análise psicológica dos personagens assume o primeiro plano. É o que se vê em “Os Pequenos Desencontros” e, sobretudo, em “Exercícios Burgueses”. Bem construídos, num as dificuldades de um casal de reencontrarem o caminho do hotel são a gota d’água para o rompimento da união deles, pretexto para o fim do relacionamento amoroso já minado por “mil pequenos desencontros e frustrações”. O narrador não dá ao leitor, ainda assim, um só indício dessa situação anterior, a não ser nas últimas linhas da narrativa. Noutro, mais machadiano ainda, o clássico triângulo amoroso, duas figuras díspares em diálogo angustiante.

Talvez a visão poética de Jorge de Lima seja isso mesmo que Silveira de Souza conseguiu situar nos seus relatos, porque não estamos imunes às chamas do que chamamos irreal – tão dentro de nós.
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