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quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Com unhas e dentes (Nilto Maciel)


Há uma semana Dalila virava a cara para Aleodoro. Se ele fazia pergunta, ela não dava resposta. Ou respondia “com quatro pedras nas mãos”. Por qualquer motivo mandava os cinco dedos na cara dos filhos. E deixava o arroz queimar, esquecia de descongelar a carne, quebrava pratos na pia.

Aleodoro não pedia explicações. Sabia muito bem a causa de tanta birra. Andava cansado, aborrecido, sem vontades. Tantos anos de trabalho, e nem uma casa onde morar. Tanta dedicação à família, e aqueles filhos vagabundos, idiotizados. Tantos sonhos, e só desilusões.

Vasto abismo (Fernando Py)


São um conjunto de sete novelas, quase todas escritas de maneira estruturalmente diversa. Desde “A Busca da Paixão” (p. 10) até “Quar­teto" (p. 111), o autor se exercita em modos diferentes de narrar: em “A Busca da Paixão”, trata-se de fato da procura da infância perdida, da revitalização de afetos mortos, e a história se desenvolve em dois planos nem sempre bem distintos, que até confundem o próprio personagem-narrador: "Como distinguir um tempo de ou­tro, se no interior da caverna de minha consciência fujo pelos labirintos de mim mesmo?" (p. 17), ou: “Quem poderá se livrar do passado? (p. 13). Em "Vasto Abismo", história que dá título ao livro, também em dois planos, vemos a frustra­ção de Isaque pela vida inútil que leva – inclusive percebendo a inutilidade dos livros que publicou – e apaixonando-se por uma mulher casada; no outro plano, a vida conjugal desta, com seus altos e baixos. Ambos os planos convergem para o final, que vem sendo cuidadosamente construído desde o princípio. Todas as ou­tras novelas seguem mais ou menos esse padrão estrutural, devendo destacar-se “O Bom Selvagem”, história de um bororo aculturado pelo homem branco e que afinal não é uma coisa nem outra: perdida a identidade de índio, sem adquirir de todo a identidade de branco. E assim, em todas estas novelas temos um desencontro, um desconcerto, um descaminho a pontuar a vida dos protagonistas, culminando no desacerto dos dois casais de “Quarteto”. Nilto Maciel escreveu novelas que também poderíamos chamar de “exempla­res”, como as do velho Cervantes: muito bem escritas, mostram que o autor está no auge de sua capacidade criativa.

(Tribuna de Petrópolis, Petrópolis, RJ, 30/1/2000)
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sábado, 27 de janeiro de 2007

O arcanjo e a princesa (Nilto Maciel)


Estando a porta entreaberta, o arcanjo vagou a vista pelo corredor e, sorrateiro, passou ao quarto. Da janela escancarada vinha uma brisa suavíssima. A luz da Lua rebrilhava no leito. A princesa, deitada, dormia. E só então o arcanjo percebeu não ser de lençóis a alvura que o ofuscava. Era do corpo nu da virgem. Sentiu arrepios e voou até a janela. A Lua pareceu-lhe maior e mais radiosa. Junto aos muros do castelo, ladravam cães. Talvez assustassem ladrões. E nada mais parecia vivo àquela hora.

Vasto abismo (Francisco Carvalho)




A excelente apresentação de João Carlos Taveira sobre Vasto Abismo, conjunto de novelas de Nilto Maciel, não deixa margem para resenhas ou considerações de natureza periférica acerca dos valores essenciais das narrativas de que se compõe o mencionado livro. JCT analisa, com profundidade, o que acontece no plano submerso das narrativas de Nilto Maciel, de seus labirintos verbais, essa mistura engenhosa do erudito e do popular, os seus constantes apelos às vertentes da mitologia, da metafísica e do picaresco, além de outros fatores não menos significativos que interferem na construção da linguagem do autor.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Never more (Nilto Maciel)


Ivo subiu à calçada. De longe avistou umas pernas desnudas. Quem seria aquela criatura? À esquerda um carro parado. O motorista de bigodes ria. De quê? E se também estivesse a olhar pelo espelho as pernas da garota? Cabelos louros a esvoaçar, distraída. Porém não podia ficar ali parado, feito um vagabundo. Havia mais gente na praça. O coração bateu mais intensamente. De relance viu a calcinha branca. À direita um homem e uma mulher conversavam, em pé. Riam também. Alguma piada. A mulher sacudia-se toda.

A arquitetura verbal de Nilto Maciel (João Carlos Taveira)



Nilto Maciel não é só um escritor. Além de um bom escritor e de um imprescindível articulador literário, é o artista da palavra que sabe compreender e assimilar os avanços estilísticos de seu tempo. E, como tal, procura, sem nenhuma demonstração de cansaço, o aperfeiçoamento do próprio estilo, para melhor conduzir a narrativa na construção de seus personagens. Nesse sentido, sua escritura o aproxima não de um Graciliano Ramos, também nordestino, mas do Machado de Assis maduro e inconfundível de Quincas Borba e Memorial de Aires.

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

O sonho da princesa (Nilto Maciel)




Fugiu do castelo montada num cavalo branco. A noite parecia a mais escura de todas. E se bruxas saíssem em seu encalço? E se vampiros sedentos de sangue virgem a esperassem nos atalhos? E se o dragão, aquele imenso monstro, aparecesse? Pela estrada, porém, seu pai, o rei, todo dia cavalgava. E nunca o atacaram seres maus. Se o atacassem, seriam dizimados por sua furiosa espada. E pelas armas dos leais soldados.
Havia, porém, outro perigo. Se o cavalo deixasse a estrada e se metesse na floresta? Não, aquele cavalo, o predileto do rei, não se atreveria a cometer tamanha insensatez. Nem ele nem outro. Nem mesmo cavalos cegos.
Reclusa no castelo, a princesa imaginava reinos distantes e, sobretudo, seu príncipe encantado. Quando o conhecesse, imediatamente se casaria com ele. Teriam muitos filhos e viveriam felizes para sempre. No reino do faz-de-conta.
No meio da noite, a princesa sentiu sono e fadiga. Freou o animal e apeou. A estrada parecia sem fim. O reino de seu pai abarcava o mundo. E onde ficava o reino onde vivia o príncipe de seus sonhos? Olhou para o céu. As estrelas a protegeriam das trevas. As nuvens deslizaram mais e a vaga luz da Lua chegou até aquele perdido pedaço do reino. Que maravilha! A princesa ensaiou passos de dança. Rodou, rodopiou, sorrindo. Parou, cambaleou, olhando para o animal. E teve um grande susto. Havia um chifre no meio da testa dele.
Era um licorne.
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A rosa gótica (José Teles)



Alternativa não menos airosa é A Rosa Gótica, de Nilto Maciel. E permitam-mo, sem duelar encômios, fazer uma exegese sem compromisso para com a urdidura e tessitura da obra. O projeto gráfico se harmoniza com uma ortodoxia léxica e lógica, mimoseado por uma acústica violínica das orelhas de Fernando Py. O ritmo narrativo é de domínio pleno: imaginação, loucura e artefatos se misturam dando ao romance o tom caleidoscópico, numa imagética que navega até a foz do rio das infâncias. Nilto se precipita de alma a baixo, e sai atropelando seitas e conceitos, rezas e manias. A temática não se dispersa, varando todo o texto como ventania nos descampados. Depois, tudo é gozo e silêncio. Há, pois, uma intertextualidade, que se comprime e explode em síntese, para logo se transformar em catarse e mistério. O poeta se transforma em iconoclasta da ferrugem literária que oxida idéias e contextos. O fazer literário em A Rosa Gótica, aliás, assume foro universal, abre espaço novo na trama do imaginário e consolida o imagético como força comunicadora. E, através de espasmos dialéticos, deixa ao ledor a alternativa pitoresca de, também, romancear suas memórias, seus dramas, suas miragens: “Afinal, existe o romance? E quem seria o autor?” Nilto ainda abre e fecha o texto, caminhando, ora por frouxas veredas, ora por espaços liliputianos, consumindo todo o poder de síntese de sua criatividade. E viaja pelas sendas do inverossímil, procurando atalhos de cortesia. Tudo se complica, porém, quando o autor, em gargalhada mefistofélica, questiona: “E se tudo tiver sido impostura? E se os próprios críticos franceses forem invenção de Lamartine?”

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Incêndio (Nilto Maciel)


Carlinhos brincava no quintal. Olhou para o chão e viu uma sombra deslizar, correr. Cheiro de coisa queimada. Depois o mormaço. Ergueu a cabeça. Talvez a nuvem prenunciasse chuva. O sol quase o cegou. Levou as mãos à testa e correu para junto da mãe, que lavava roupa próxima ao tanque. Nem sequer deu atenção ao menino. Fosse brincar na sala e não lhe desse mais sustos.

A rosa gótica (Dias da Silva)

É um romance, em segunda edição, mimoseado com o prêmio Cruz e Sousa, 1996, da Fundação Catarinense de Cultura, categoria romance nacional. É uma narrativa em primeira pessoa – Victor Hugo é o narrador, que é o autor – o próprio Nilto Maciel –, que é primo de outro Victor Hugo que é irmão do protagonista e bibliófilo, Lamartine, da família Coqueiro. Narrativa simples. Sem afetação. Fluente e dinâmica, É a busca de raízes genealógicas. Sem nada de vaidades. Sem contar vantagens ou invencionices.

O narrador bota logo, de começo, realidade, e sonhos, e fantasias, e dúvidas, e indagações, alguma tensão dramática, tudo entremisturado nas 188 páginas de A Rosa Gótica. É verdade: de entrada, o autor Nilto Maciel já vai criando tensões e expectativas, na mesmice do cotidiano. Já se tem também a certeza do escritor maduro. De um criador de estilo.

Lê-se na orelha que Fernando Py tem esta impressão sobre o livro de Nilto Maciel: “é um romance sobre um romance”, apresentando semelhança com , por exemplo, O Nome da Rosa, de Umberto Eco. “Trata-se, na verdade, de história de um bibliófilo erudito, Lamartine, primo do narrador, dono de uma biblioteca vastíssima de obras raras e medievais”... No fim do comentário, tem-se que o “narrador se debate em sua individualidade, da qual principia seriamente a duvidar. E a duvidar da existência de seus leitores”.


segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Dois seres (Nilto Maciel)




Há poucos dias estamos aqui. Trouxeram-nos um homem, uma mulher e uma menina. Chegamos dentro de uma jaula. Vivíamos numa jaula maior, com outros inúmeros semelhantes nossos. Não sabemos como eles estão, nem se ainda vivem no mesmo lugar. Nossos dias e nossas noites são sempre iguais. Dormimos muito, porque não temos quase nada a fazer. Passamos quase todo o tempo comendo a ração que nos dão, dormindo ou brincando numa roda. Às vezes o homem aparece, fuma, bebe, olha para a rua, o céu, conversa sozinho. Olha para nós e some. A mulher surge sempre à mesma hora: põe a ração dentro do pequeno estojo, despeja água noutro estojo, molha as plantas, fala alto e nos xinga.

A rosa gótica (Donaldo Schüller)


Houve um momento em que o romance quis competir com a ciência. Passou a documentar. A linguagem fez-se austera. Os romancistas tiveram o cuidado de aproximar-se cautelosamente das coisas. A vertigem cientificista não durou muito. Os próprios cientistas começaram a duvidar da perenidade de seus achados. Os periódicos documentavam melhor que o romance. E o faziam vertiginosamente. O romance se deu conta de seu parentesco com a poesia. Vieram Proust, Joyce, Guimarães Rosa... onde está a diferença entre romance e poesia? A Rosa Gótica é um romance ou é um romance sobre o romance? É ambas as coisas. É uma aventura de linguagens sobrepostas que nos levam para a inquietante ebulição da Idade Média. A ação nos arrasta a uma sarabanda de textos e de idéias a que não podemos ficar indiferentes porque é a nossa própria história, individual e coletiva, que está em jogo.

(Orelha de A Rosa Gótica, Fundação Catarinense de Cultura, Florianópolis, SC, 1997)
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sábado, 13 de janeiro de 2007

Ode à tarde (Nilto Maciel)



Um passarinho cansou de voar e pousou num galho. Cantou uma ode à tarde e tencionou alimentar-se. Voou ao chão e defrontou uma serpente. O guizo dela agitou-se.

— Por que me olhas assim, cascavel?

O pássaro deu um saltinho para trás. Melhor não esperar resposta. Saltitou, deu pequenos voos ao redor do ofídio.

— Tu me odeias porque não sabes voar, não é? Ora, se voasses, o que seria dos pequenos seres como eu? Contenta-te com rastejar.

Cantou trecho da ode à tarde e riu.

— Também me odeias porque não sabes cantar? Eu canto porque não conheço o ódio.

Calada, a serpente mirava o passarinho. E o seduzia com os olhos. Falando e cantando, a avezinha também mirava a cobra.

E deu-se o bote.
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A rosa gótica (Fernando Py)




Romance sobre um romance, a obra de Maciel contém pontos de contato com a de Milton Coutinho, mas sobretudo parece ter mais semelhança com O nome da rosa, de Umberto Eco. Trata-se, na verdade, de história de um bibliófilo erudito, Lamartine, primo do narrador, dono de uma biblioteca vastíssima de obras raras e medievais, um indivíduo que teria traduzido um livro estranho, O Romance da rosa gótica, escrito provavelmente entre 1245 e 1249, em língua d’oc, composto de 4519 versos alexandrinos. A partir dessa informação, logo no começo do livro, Nilto Maciel (ou melhor, o narrador) nos envolve numa trama de desencontros e descaminhos, onde muitas vezes são as palavras, mal interpretadas ou significando coisa diversa do que parecem, que comandam a narrativa; o narrador sente-se confuso diante das informações bibliográficas de que dispõe, e, após a morte do primo, folheando minuciosamente os cadernos de memórias que o falecido deixara, vai descobrindo casos e fatos antigos, de que pouco ou nada se lembra, misturados às próprias reminiscências. Dessa leitura, vai emergindo aos poucos, um mundo de livros e experiências, modificando a idéia que o narrador se fazia do primo bibliófilo, e, pior, chega a duvidar da existência real de Lamartine e de si mesmo. A saída seria a publicação das memórias e das cartas deixadas pelo primo. Mas, ainda aí, não seria aquilo tudo resultado de um tremendo equívoco? Teriam existido mesmo O Romance da rosa gótica e os autores e personagens citados? O narrador se debate em sua individualidade, da qual principia seriamente a duvidar. E a duvidar da existência de seus leitores.

(Tribuna de Petrópolis, Petrópolis, RJ, 10/10/1999)
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quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

A grande ave de rapina (Nilto Maciel)



Quase morri de espanto e medo, quando vi pela primeira vez a grande ave. Instintivamente deitei-me. Talvez por isso ela não deva ter visto a minha pessoa. Pousou lentamente, recolhendo as asas. Vagou a vista pela plantação e, a passos largos, dirigiu-se ao espantalho. Horrorizei-me: com duas bicadas violentas estraçalhou o boneco.

Parece um gavião, não fosse este tão pequeno. As pernas são de dois metros a mais. O bico figura tesoura de cortar galhos. Quando estende as asas lembra um avião.

Rosa gótica (Silvério da Costa)


Trata-se do Romance ganhador do Prêmio “Cruz e Sousa”, de 1996, que narra a(s) aventura (s) e desventura (s) da família Coqueiro, principalmente Lamartine, suposto tradutor, para o Português, do livro "O Romance da Rosa Gótica”, escrito por um tal de Charles d'Avignon, na Idade Média, mais precisamente entre 1245 e 1249.

O narrador, Victor Hugo, primo de Lamartine, na ânsia de esclarecer tal fato, mergulha num turbilhão de hipóteses, criando um labirinto digno de fazer inveja a Dédalo. Sair dele é a questão, mas até que o consegue fazer de forma airosa.