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terça-feira, 30 de outubro de 2007

Para que esses olhos arregalados? (Nilto Maciel)






















Arnóbio de Barros andava armado da cabeça aos pés: revólver amarrado à perna, outro na cintura, pistola junto ao peito. Maria de Fátima, sua mulher, devota de Nossa Senhora, rezava toda noite. Nenhum mal acontecesse ao delegado. No entanto, aconteceu. Ou quase se deu a desgraça. Homem assaltou loja. O comerciante tremeu e entregou dinheiro, relógio e outros bens. Os dois empregados não tugiram nem mugiram. O bandido fugiu. Para uns, usava máscara.
Quando se sentava atrás da mesa, Arnóbio pedia café, enquanto punha na gaveta as armas. Lambia as bordas da xícara e tirava os sapatos. Ligava para Fátima. Tudo em paz? E folheava autos. O crime da Rua Morgue. Não gostava de literatura, mas conhecia de nome alguns escritores. Predispunha-se a ler um ou outro, estimulado por colegas. Lesse O Processo, de Kafka. Não conseguia ir além da primeira página. Preferia alisar as armas, contar os projéteis, falar de crimes e castigos. Quando chegasse o retrato falado do bandido da luz vermelha queria ser o primeiro a vê-lo. Sim, senhor. Precisava ficar só e brunir as armas assinaladas com as letras AB. O ajudante, no entanto, deu meia-volta: o retrato do assaltante da loja... Arnóbio se irritava com frases compridas: trouxesse o retrato. Abrigou o revólver na gaveta e esperou a novidade. Passados dez segundos, o auxiliar abriu a porta e olhou para o governador aposto na parede, dois palmos acima da cabeça do delegado. Na xícara mosca lambia os lábios de Arnóbio. O governante parecia sorrir de tudo e de todos, das identificações, das informações, dos traços fisionômicos, dos bandidos, dos insetos, da polícia.
O delegado mandou o rapaz se retirar e abriu o envelope. Aquele rosto não lhe pareceu estranho. Voltou-se para o retrato do governador. Calçou os sapatos e se dirigiu à porta. Não o importunassem durante os próximos vinte minutos. Deu duas voltas na chave e retornou à cadeira. Pôs sobre a mesa o retrato falado: testa ampla, olhos arregalados, bigodinho preto, queixo redondo. Dirigiu-se ao banheiro e se postou diante do espelho. Se estivesse com uma das armas, daria um tiro naquela testa ampla.
Durante dias e meses Arnóbio dormiu mal, olhos fixos no retrato do assaltante da loja. E se arquivasse o inquérito? Fátima se retorcia na cama. Para que aqueles olhos arregalados? Para te ver melhor. Ela suspirava, como se rezasse a Nossa Senhora. Ele alisava o bigodinho, como se afagasse a pistola. Melhor incinerar os autos.
O tempo escorria pelos pés do delegado, abria e fechava a porta, trazia e retirava o ajudante. O tempo espantava as moscas da xícara, folheava autos, afagava armas. O tempo mantinha o sorriso do governador, apresentava retratos falados, comentava crimes desvendados e misteriosos. Até chegar o dia em que Arnóbio de Barros levou para casa os autos e o retrato falado do assaltante da loja e os queimou. Cortava o mal pela raiz. À noite, arregalou os olhos e viu a piedosa Maria de Fátima coberta de lençóis. Apalpou o queixo redondo, mirou as armas e abraçou com força a mulher.
28/2/2005
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sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Caça e Caçador (Nilto Maciel)








Dias e dias seguidos Saul perseguiu com os olhos a pequena Raquel. Seguiu-lhe os passos pelas ruas. Quando se aproximava dela, havia sempre alguém por perto. Dava meia-volta e se metia na próxima rua transversal. No entanto, sabia onde ela morava. E quase todo dia se postava na esquina, olho na casa dela. Aparecia alguém à janela. Ele se zangava e se punha em retirada. Urgia apressar o bote. Talvez já o conhecessem naquela rua. Já reconhecia até o sorveteiro que empurrava um carrinho. Tanta sede, pensou em comprar um picolé. Não, o homem puxaria conversa, olharia para seu rosto.
Como um dia é da caça, outro do caçador, Saul finalmente conseguiu saciar o desejo. Horas depois a polícia saiu no encalço do assassino, a multidão aos gritos, armada de paus e pedras. Saul, contudo, andava longe do local do crime. E assim andou por longos anos.
Como um dia é da caça, outro do caçador, Saul terminou seus dias como animal pequeno nas garras de uma fera. Numa noite de bebedeira discutiu com outro homem, de nome ignorado. Saul não conseguiu se livrar do ataque e o outro desferiu nele diversas facadas. Antes de morrer, se disse arrependido do crime cometido contra a menina e sua alma voou até a presença de Deus. No mesmo instante a alminha de Raquel se aproximou do Supremo. Por que Saul se achava, se a estuprou e matou? Ora, pequena, ele se arrependeu de tudo. Além do mais, eu quis assim. Saul sorriu e caminhou para a menina, que tremeu e quis chorar. O Todo-Poderoso a tranquilizou. Não tivesse medo. Saul não lhe faria mal. “Aqui não há pecado; não há caça nem caçador”.
(14/2/2005)

terça-feira, 23 de outubro de 2007

A música (Nilto Maciel)








Após banhar-se e jantar, ligou a vitrola, pôs sobre o prato em rotação o primeiro disco do dia e levou a agulha à borda. Correu para a poltrona e se deitou. Quando cruzava os braços sob o pescoço, sentiu na cabeça uma dor. Não exatamente uma dor, mas uma sensação estranha. Ora, não se lembrava daquela música. Não a conhecia
Há anos, quase todo dia, praticava os mesmos gestos e sentia as mesmas sensações. Irritava-se quando a chuva deixava lento o trânsito de veículos e o impedia de chegar à casa na hora de costume. Mas diante da eletrola esquecia o incidente e desligava o telefone. Não queria ser importunado por ninguém. Se algum vizinho batesse à sua porta, pulava da cadeira feito uma fera, pronto a esmurrá-lo. Quando o sono chegava, desfazia todo o processo, lentamente, como num ritual. Punha os discos no final da fila, para voltar a tocar neles dias e dias depois. Apagava as luzes e se deitava, deliciado.
Naquela noite, porém, todo o seu modus vivendi começou a se esfacelar inexplicavelmente. Ora, como podia ouvir uma composição que não conhecia ou não constava em sua pequena discoteca? Alguém teria ido à sua casa e deixado aquele objeto. Quem? Um dos filhos, um primo, um amigo? Rememorou todas as visitas recebidas nos últimos dias. Olhou para a capa da gravação: nenhuma palavra, apenas um desenho. Não, aquilo não lhe pertencia. De quem seria, então? Passeou pela sala, dirigiu-se à cozinha, bebeu água, se irritou com a barata que se escondeu atrás do fogão. Ora, por que não escutar as outras músicas do disco? Pôs a vitrola para funcionar de novo desde o começo e se deitou na poltrona. Decididamente não conhecia aquela peça. Uma polca de Strauss? Talvez não. A segunda faixa lhe pareceu mais estranha ainda. E assim se deu por quase uma hora.
Na noite seguinte se postou diante da discoteca, certo de que era a noite de uns noturnos. No entanto, não os localizou. Teriam roubado aquela preciosidade? Quem seria o gatuno? Insultou filhos, primos, amigos. Bando de ladrões! No frenesi da raiva, não viu os noturnos ao lado do objeto desconhecido e se lembrou da noite anterior. Ora, por que não ouvir novamente aquelas músicas incógnitas? Um dia descobriria toda a verdade. Repetiu o ritual e aguardou o início da execução da primeira polca. No entanto, para espanto seu, não ouviu uma polca, mas uma valsa. Ora, ora, ora. Que significava aquilo? Sentiu medo, angústia, raiva. Ergueu-se e se postou diante da eletrola, olhos no disco a girar. Desvairava-se o homem, tremia da cabeça aos pés, febril, alucinado. Estaria louco? A música seria capaz de enlouquecer, mesmo os mais sensíveis, os mais tranqüilos, os mais sensatos seres? De onde surgira aquela valsa? Quem a gravara de um dia para o outro? Ou se tratava de outra gravação? Mas onde se achava a primeira? Correu à estante e, descontroladamente, se pôs a mirar e remirar um a um os discos. Não, não havia nenhum novo, apenas os antigos, os conhecidos, os Tchaikovsky, os Grieg, os Bach, os Haendel, os Listz, os principais clássicos, todos ouvidos repetidas vezes, cem vezes, mil vezes. Súbito inicia-se a “Dança Eslava nº 2”, de Dvorak. Espantou-se mais uma vez o homem. Restaurava-se a normalidade em sua casa, em sua sala, em seus ouvidos, em seu ser. O seu Dvorak reaparecia belo, pujante, perfeito. Aquela dança constava de um de seus Dvorak antigos. Seguiram-se obras ignotas, mas belas. Apesar disso, o cidadão não se tranqüilizava. De quem seriam elas? E por que a mesma gravação, o mesmo objeto, de um dia para o outro se havia transformado?
Nos dias seguintes o fenômeno se repetiu: as músicas eram sempre diferentes das composições ouvidas nas noites passadas, umas conhecidas, outras não. E o homem se foi acostumando àquilo. Passados alguns meses, tinha conhecido centenas de novas melodias. E isso o conformava. Pelo menos não precisava comprar mais discos nem escutar as mesmas obras, embora aqui e ali também ouvisse as mais conhecidas peças dos mais famosos compositores, tudo na mesma gravação. Pensou em procurar os jornais, as rádios, as televisões. Seria a mais fantástica reportagem. E se o chamassem de louco? Convocou os filhos para a confidência. Os rapazes saíram acabrunhados da casa do pai. Desistiu de dar publicidade ao fenômeno. Melhor permanecer em casa, calado, entregue à música, como sempre quis. Ouviria toda a obra musical composta até então. Coisa de que nenhum vivente seria capaz. Poderia escutar a peça nunca composta. E disso ninguém saberia. Somente ele, privilegiado ouvinte.
Porém um dia o disco desapareceu, sumiu, evaporou-se, com capa e tudo. E o pobre homem não soube mais o que fazer em casa, na sala, na cozinha, no quarto, na rua. Não soube mais o que fazer da vitrola, da poltrona, da geladeira, dos ouvidos. E desapareceu, sumiu, evaporou-se, sem deixar rastros nem notícia. E nunca mais se ouviu falar dele. Como se nunca tivesse existido.
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segunda-feira, 22 de outubro de 2007

O último do Gabo (Benilson Toniolo)




1.
Final de ano. Amigo-secreto em família.
- Alaor, o seu amigo-secreto quer saber o que é que você quer ganhar.
Acostumado com a pergunta que se repete todos anos –em casa, no trabalho, até entre os amigos semanais do boliche- ele não titubeia:
- Diz que eu quero o último livro do Gabriel García Márquez.
A esposa repete silenciosamente o nome, somente os lábios se movem, tentando não esquecer o nome do autor e pensando: Esse Alaor. Ele precisando de um cinto, uma cueca nova, sei lá, pede um livro.

2.
Na cama, antes de apagar a luz, três dias depois. Ela, em tom ameaçador:
- Alaor, você tem alguma coisa pra me dizer?
- Não, não tenho não. Por quê?
- Nada.
- Não, fala. Por quê? Que que eu fiz?
- Esse livro aí, que você falou. Qual é o nome?
- Qual?
- Esse que você quer ganhar do seu amigo-secreto.
- Ah, o do Gabriel García Márquez? “Memória de Minhas Putas Tristes”.
Silêncio.
- Então o nome é esse mesmo, não foi erro meu nem engano do vendedor?
- Não, o nome tá certo.
Silêncio.
- Tá. Deve ser muito interessante.
- Ah, sem dúvida. Não é qualquer Nobel de Literatura que anda lançando livro por aí. Além do quê, é um dos meus preferidos. Colombianozinho danado...
- Deve ser mesmo, pra escrever um livro com um nome desses.

3.
A mãe, em tom ameaçador:
- Deu pra pornografia agora, Alaor?
Ele, sem desgrudar os olhos do jornal e desinteressado:
- Por quê?
- Isto é livro que se peça, meu filho? Coitada da tua mulher, anda aí com minhoca na cabeça.
- Qual o problema, meu Deus? Só por causa do nome do livro? Besteira...
- Mas o livro é sobre o quê, afinal?
- Ah, mãe, é um livro de um escritor de quem eu já li quase tudo.
- E elas contam tudo mesmo?
- Elas quem?
- Ora, você sabe. Elas.
- As put...
- Não fala, Alaor! Não foi essa a educação que eu te dei!
- Não, não é nada disso. É sobre um homem que resolve comemorar a festa de seus 90 anos num bordel, junto a uma menina de 15 anos, e...
- Você depois de velho deu pra me dar trabalho.
Alaor volta ao jornal.

4.
- Quer dizer então que você é que é a minha amiga-secreta?
- Quem te disse?
- Sei lá, andou por aí em livrarias, atrás do livro.
- Nem me fale.
- Então, é você ou não é?
- Olha, Alaor, eu até nem queria mais fazer amigo-secreto. Mas não sou eu, não. É a tua mãe.

5.
- Olha, fala pra minha mãe que eu escolhi outro livro. Pronto, assim ninguém precisa passar vergonha na livraria.
- Excelente, meu amor. Tenho certeza que agora resolvemos tudo. Qual?
- Chama-se “Livro Sobre Nada”.
- Ou você está louco ou resolveu gozar o Natal da família.
- Mas qual o problema, pombas?
- Livro sobre nada, Alaor? Que que é, as páginas estão todas em branco? Olha aqui, depois que você começou com esse negócio de literatura ficou insuportável, sabia? Que saco!
- Que nada, é o último livro do Manoel de Barros. Poesia, sacou?
- Tá, saquei, mas quem não vai sacar nada é tua mãe, entendeu? Que coisa!

6.
Sábado á noite, depois do amor semanal. Ele ainda com o rosto enterrado entre os cabelos dela (ah, os cabelos dela...)
- Vem cá, será que não dá pra trocar de amigo-secreto?
Ela sorria, preguiçosa.

7.
- E aí, filho, gostou da bermuda que te dei?
Alaor sorria e balançava a cabeça, claro, daquela cor ainda não tinha nenhuma, mãe, a senhora é fogo mesmo, rárárá.
Alaor bebericava um Chianti escondido dos parentes que bebiam do garrafão que ele comprou no Supermercado. Afinal, podiam perceber que a cor dos dois é diferente e aí complicaria tudo. E pensava no embrulho estrategicamente escondido debaixo da árvore enfeitada, e que ele abriria avidamente depois que todos tivessem ido embora. Somente os dois sozinhos na penumbra da sala, sabe-se lá a que horas: Alaor e o último do Gabo.
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domingo, 21 de outubro de 2007

Livre-arbítrio (Nilto Maciel)










Um homem prenderam ontem. Acusam-no de violentar, matar e esquartejar meninos. Para o delegado, um caso sem precedentes, de horror. Familiares das vítimas choram e pedem pena de morte. Um dos pais anunciou vingança. Por outro lado, a mãe do monstro disse não ter mais como perdoar o filho. Da primeira vez a mãe o perdoou. José Pereira dos Santos, o assassino, havia sido condenado e preso por crime semelhante há alguns anos, tendo obtido liberdade recentemente. Ele pôs a culpa na fraqueza, na cachaça, na loucura, se disse arrependido e pediu perdão a ela. Agora, diante de tantas barbaridades, ela chora e afirma não poder mais dar perdão ao filho.
Quase sempre da mesma maneira agia o homem para atrair as crianças. A primeira vítima o criminoso encontrou próximo a uma padaria. Conduzia um pacote de pães. Saiu de casa, a mando da mãe, dez minutos antes. O homem o viu e o chamou. Convenceu a criança a segui-lo. Meia hora depois, a mãe se dirigiu à padaria e não obteve nenhuma informação do menino. O pacote de pães terminou em outras bocas, certamente. O corpo nunca localizaram. Por que José pratica tais crimes? O delegado faz discurso. Alguém fala de livre-arbítrio. Abre a Bíblia, lê salmos, provérbios, crônicas. “Não olharás com piedade, antes exterminarás de Israel a culpa do sangue inocente, para que te vá bem.” Agiu assim porque quis, por vontade própria. O delegado já decidiu: entregará o criminoso às feras, isto é, aos outros presos, para que também pratiquem o livre-arbítrio. Louvaram os pais das crianças assassinadas a decisão policial. Assim, o homem será violentado, morto e esquartejado na prisão, para que o livre-arbítrio se volte contra ele e tudo se explique e se justifique.
8/2/2005

sábado, 20 de outubro de 2007

Carnavalha: Novo Romance de Nilto Maciel (Francisco Carvalho)




De 1974 até agora, Nilto Maciel publicou dezenove livros de ficção e apenas um de poemas. O romance e o conto, conforme se pode observar, evidenciam as predileções do Autor, em seu longo itinerário de 33 anos nos domínios da literatura. Quem já leu seus livros de ficção terá notado, certamente, o cuidado do ficcionista na escolha dos nomes de seus personagens. Não seria nenhum despropósito pensar na elaboração de uma nomenclatura para todos esses figurantes que trafegam nas páginas de seus romances e histórias curtas. Zuza, Pedro Cabral, Eurico, Jesonias, Otávio, Noé, Alessandra, Cátia, Márcia, Aluísio, Orlando, Joice, Cida, Eleide, Cynthia, Ocelo e tantos e tantos outros que despertam a atenção do leitor para esse aspecto importante da carpintaria dos romances. Até os cachorros de Palma foram homenageados com apelidos que se destacam pelo seu ineditismo e originalidade: Alão, Brochote, Cafoto, Dentola etc.
O livro começa com a notícia da chegada de alguns rapazes e moças procedentes de Brasília. Eram funcionários públicos que vinham para as festas carnavalescas de Palma, cidade utópica criada pela imaginação de Nilto Maciel para o desenrolar dos acontecimentos do seu universo ficcional. Palma não deixa de evocar a legendária Macondo, palco das histórias fantásticas de Gabriel Garcia Márquez, em seu caudaloso romance Cem Anos de Solidão. Na página 15, o inusitado mostra o seu feitiço: “O galo cantou estridentemente. As galinhas correram, espantadas. Uma revoada de andorinhas encheu o céu dos quintais”. Só faltou acrescentar que ventos diluviais arrebataram crianças que sonhavam com os anjos enquanto dormiam.
A ficção de Nilto Maciel nos coloca no c entro de uma realidade fantástica, que nos leva às portas do surreal. Uma atmosfera de sonhos e pesadelos permeia as narrativas do romance. Seus capítulos, predominantemente curtos, exploram os conteúdos, sob perspectivas oníricas, das temáticas desenvolvidas no livro. Numerosos personagens contribuem com depoimentos pessoais para o desfecho das narrativas. Mas essa contribuição, eivada de contradições enigmáticas, paradoxalmente só fazem aprofundar ainda mais os mistérios em torno dos acontecimentos. A cidade e seus habitantes passam a impressão de atores de um filme de mistério conduzido por um diretor voluntarioso, que parece se divertir com seu elenco de fantoches.
Na página 96, uma sucessão de fatos provoca calafrios no leitor. Um dos gatos que farejam pássaros numa árvore começa, de repente, a crescer aos olhos de Jacinta. Enquanto outros felinos fugiam daquela visão aterradora, o gato assumia as proporções de um tigre, “abria a boca e avançava lentamente, ameaçador”. Juarez, marido de Jacinta, tentou dar cabo do animal, mas “a fera estraçalhava Juarez”. Como se observa, a leitura dessa narrativa exige do leitor um mínimo de conhecimento acerca do simbolismo de que se revestem certos aspectos do cotidiano. Pode-se afirmar, sem risco de equívoco, que o simbolismo está presente em grande parte da expressão literária do todos os tempos. E até mesmo nos atos mais rotineiros da vida das pessoas, sem que elas se dêem conta desse fato.
Em “Rodopio de moedas” (p. 97), Nilto Maciel volta a usar das mesmas estratégias insólitas para despertar a imaginação do leitor. A conhecida frase de Shakespeare (“Há muita coisa entre o céu e a terra a que não chega a nossa vã filosofia”) nunca foi tão justificada como nas páginas desse romance do escritor cearense. Suas narrativas são vertentes de onde jorram mistérios e enigmas da raiz das palavras. Bastou que uma ave fincasse “as unhas no telhado da casa de Quincas” para que fatos estranhos à lógica do senso comum começassem a acontecer entre Juarez e sua mulher. Moedas e cédulas, sacudidas por ventos misteriosos, vindos não se sabe de onde, caíam da mesa e espalhavam-se pelo chão. Tentavam alcançá-las, mas não o conseguiam. Como se mãos invisíveis os impedissem de tocá-las. Algo parecido com as artimanhas do diabo. Na tentativa de recuperar as moedas e cédulas, “Quincas estatelava-se feito um jarro de porcelana”.
A narrativa da página 27 evoca certas estratégias de Kafka. Da troca de palavras entre Gilberto, Jesonias, Aluísio e Orlando, fica-se com a impressão de que os personagens viajam no porão de um navio que fosse para a Atlântida ou, talvez, para a eternidade. A mesma densidade impenetrável envolve os diálogos obscuros. Lá pelas tantas, Gilberto produz esta frase de significado ambíguo: “Estou com viagem marcada para lá, numa expedição de alto risco”. Aluísio vomitava. “De sua boca saíam pequenos sapos, ratos, baratas. Gilberto se apavorava e também ia ao solo” (128).
Carnavalha não é, seguramente, livro de estrutura linear. Precisa ser lido com o faro de quem procura fragmentos de ouro numa peneira de cascalho. Todas as narrativas exigem leituras plurais, precisam atingir a profundidade das camadas estilísticas onde se encontram os veios simbólicos. A realidade desses escritos de Nilto Maciel é de outra índole. São realidades submersas que não se acham à flor da pele nem tampouco na superfície das palavras. Palma é uma cidade utópica onde criaturas utópicas fingem ter os mesmos defeitos e virtudes das pessoas de carne e osso. Ao leitor cabe decifrar os códigos desta linguagem que nos fala de um mundo possível para os que já nasceram condenados à morte. Ou por imprudência ou por todos os males a que estamos sujeitos. A única expectativa que nos acena é a certeza de que “Não se pode morrer na metade do quinto ato” de alguma peça de Ibsen.
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quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Caim e Abel (Nilto Maciel)
























(Abel e Caim, de Gustav Doré)



O pai de Caim e Abel não se cansava de elogiar o segundo. A mãe se irritava e saía em defesa do outro, como se elogios a um significassem censuras ao primeiro. Quando meninos viviam se atracando. Esmurravam-se por qualquer motivo. Chutavam-se feito cavalos. Sujavam-se nos lamaçais. O pai os punia severamente, mais a Caim. Dava-lhe surras demoradas. A mãe socorria o pobre filho. Nas brincadeiras e nos jogos, todos os gabos do pai iam para Abel. Cresceram como inimigos. Se Abel pretendia uma mocinha, Caim corria em busca dela, a falar mal do irmão. Se Caim se aproximava de uma jovem, Abel não sossegava enquanto não a fazia se afastar do outro. O pai sorria: o filho Abel se parecia muito com ele, até nas conquistas amorosas. A mãe ouvia aquilo irritada: Caim sabia cativar as mulheres.
De tanto se sentir ofendido, Abel passou a planejar vingança. Talvez afogamento no rio. O corpo de Caim apareceria inchado, roído pelos peixes. E se o atraísse para o alto do morro e o empurrasse? Noites e noites acordado, a sonhar o fim do irmão. Caim vivia então em constantes passeios noturnos. Possivelmente enrabichado por alguma dama. Saía de casa ao anoitecer e só regressava alta noite, às vezes de madrugada. Abel seguiu-lhe os passos, sorrateiro. Viu-o voltar sempre pelo mesmo caminho. Adquiriu uma arma de fogo. Daria o primeiro tiro nas costas. Caído o irmão, atiraria mais cinco vezes na cabeça, na nuca, nos pulmões, no meio da espinha. Fez tocaia durante várias noites. Caim parecia compreender o perigo, corria e chegava salvo à casa. Abel não conseguia disparar o primeiro tiro. Respiração quase a parar, as mãos tremiam, os olhos se enchiam de poeira. Mas finalmente viu o irmão se aproximar, todo contente, a assobiar modinhas. Detrás de uma árvore, Abel apertou o gatilho. A bala passou perto da cabeça. Caim correu e se meteu no mato. Abel se pôs a imaginar o que fazer. Iria atrás do irmão ou deixaria tudo para outra noite? Sentou-se. Talvez a bala tivesse atingido o desgraçado. Súbito um vulto apareceu, silencioso, lento. Nada Abel viu ou ouviu. Sentiu apenas uma pancada na cabeça. E tombou, o sangue a jorrar.
Fortaleza, 31/10/2004.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Sintaxe do Desejo: Síntese da Poesia Visceral de Dimas Macedo (Aíla Sampaio)

(Dimas Macedo)

Ânsia visceral de mim
que a face me estrangula...
(“Espumas” p.42)

São raros os críticos que se mantêm fecundos produtores de textos literários. Dimas Macedo é uma das felizes exceções. Assíduo leitor, sobretudo da literatura local, escreve semanalmente um artigo sobre obras representativas, valorizando a arte de sua terra e levando ao público nomes muitas vezes desconhecidos. Sua disposição para a pesquisa, tanto na área do Direito quanto na da Literatura, rendeu-lhe publicações significativas que tiveram repercussão nacional: Lavrenses ilustres (1981), Leitura e conjuntura (1984), Ensaios de teoria do direito (1985), Lavras da Mangabeira – Roteiros e evocações (1986), O discurso constituinte (1987), Notas para a história de Alto Santo (1988), A metáfora do sol (1989), Ossos do ofício (1997), Tempo e antítese (1997), Martins Filho e Joaryvar Macedo (1998), A obra literária de Alcides Pinto (2001), Marxismo e crítica literária (2001), Crítica imperfeita (2001), Pesquisas de direito público (2001), A face do enigma (2002), Crítica dispersa (2003), Entrevista (2003), Décimas a Alcides Pinto (2003), Política e constituição (2003), Filosofia e constituição (2004), Bibliografia – roteiro para pesquisadores (2004), Ensaios e perfis (2004), A letra e o discurso (2006).
Como poeta, pode-se dizer que é um dos mais produtivos da literatura cearense contemporânea. Estreou em 1978, com Primeiros poemas, dois anos depois publicou A distância de todas as coisas, obra que marcou seu nome na história das nossas letras. Deu uma pausa para dedicar-se à carreira acadêmica e jurídica, e, em 1990, voltou à cena com Lavoura úmida; em 1994, lançou Estrela de pedra e, em 1996, Liturgia do caos. Mais uma parada, então para repensar sua trajetória, reeditou o segundo livro em 2001, e retornou em 2003 com Vozes do silêncio. Em 2006, ano do seu cinqüentenário, editou Sintaxe do desejo, uma coletânea que reúne seus mais antológicos poemas. Além de uma síntese de sua produção poética, esse livro é também uma celebração, um coroamento de sua trajetória (como poeta), quem sabe o fechamento de um ciclo.
Os textos selecionados representam um balanço do seu exercício na arte do verso, no transcurso dos anos de 1978 a 2003, marcos da publicação de seu primeiro e último livro (até então). O que se constata é a manutenção do mesmo universo temático e a estabilidade de seus procedimentos estéticos, sua criação consciente do texto como um trabalho de linguagem. Profundamente ligado às raízes, telúrico e sentimental, o poeta conserva na coletânea os principais poemas que louvam a cidade-mãe. “Lavras” (p.26) é o primeiro deles:

Longe daqui do tumulto,
lá no meio das coisas,
prostrada para o universo,
posto que existe,
Lavras é a cidade mais bela do mundo,
pois em cada rua
nasce uma saudade
que termina em meu corpo.

A exaltação da terra natal traz a voz de Drummond, em sua constante evocação de Itabira, mais ainda a de Caeiro: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia” (“O Guardador de Rebanhos”). É recorrente a crítica associar a poesia do Dimas à de Drummond, bem como à de Fernando Pessoa e seus heterônimos. A assimilação das leituras e a identificação temática e estilística está clara em “Ortônimo”, metapoema que norteia o espírito da criação macediana.
A última parte, “Dispersão”, traz ainda “Musa” e “Esfinge”, dois cantos de amor à sua Lavras, que, mais que cidade, é a imagem de sua infância: “Quando me lembro que nasci em Lavras, / a solidão de minha infância é tudo / e a expressão da existência é nada (...) pois as ruas de Lavras são paredes/ que se atravessam em mim como uma ponte.” Essa força que o liga ao passado, como as inquietações diante da existência, leva-nos a Cacaso (em “Lar doce lar”) “Minha pátria é minha infância / por isso vivo no exílio”. Há no homem um menino que guarda inexoravelmente sua infância e vive exilado de si mesmo, procurando o eterno retorno a um tempo impossível. Daí as perscrutações existenciais, a inquietação metafísica tão constantemente revelada em sua poética, o saudoso recordar (“Elegia”, p.36):

Lembro o meu pai
apascentando estrelas
e solidões
em tardes douradas
e a minha mãe
na sombra do alpendre
e olhos no algeroz.

A saudade, os questionamentos sobre a vida, o amor, tudo se transfigura em poesia. Ele mesmo disse, em entrevista ao Diário do Nordeste, por ocasião do lançamento de Lavoura úmida, em 1990, que “a Literatura é um lenitivo para o intelectual exasperado, mas é um lenitivo para quem busca uma resposta para a vida”. Com efeito, sua poesia é visceral, sangüínea, sua mais segura forma de sobrevivência e busca, como se lê em “Palavras” (p.39):

Para me suportar
a mim mesmo me basto.
Para não me morrer de tédio
Mergulho-me palavras.

A salvação do homem está na palavra. Sondando o enigma da existência ou levantando questões sobre o estar-no-mundo, o poeta lança um “Dilúvio” (p.30) de interrogações (aqui resumidas):

O que será esse mundo,
esses cosmos sem fim,
essa utopia?
Correm para onde, então,
essas filosofias?
(...)
Dai-me, Senhor,
conter em minhas mãos
o nada e o não-ser
e o desfazer de mim
a dor dessa introspecção.

Na solidão dos conflitos, o grito de angústia é indagação do mistério. O poeta pede a ajuda divina para livrar-se da dor de existir. A fé nesse Deus que “muda de residência”, mas “carrega a nuvem de seus passos”, é que o ajuda a “viver sozinho no deserto / buscando o amor / sentindo a esperança” (“Escudo”, p.110).
Em “Enigma” (p.66), é o tempo sua clausura. O vento, elemento do efêmero, aparece, em sua poesia, personificado. Se ele é a calmaria do tempo-espaço fundidos, é também seu confidente e cúmplice: “no centro da alma / há um castelo / no qual escuto / as confissões do vento” (“Ânsia”, p.79). A angústia diante do fugaz, bem ceciliana, é uma herança simbolista, e remete à busca de integração no cosmo, desejo de transcendência. Esse sopro simbolista está, inclusive, nos efeitos sonoros dos primeiros versos de “Metáforas”(p.46). “Ó conchas, ó conchas, ó formas”, onde se ouve claramente um sopro de Cruz e Souza, motivo do poema “Poeta”, de Vozes do silêncio (p.14): “João da Cruz e Souza: / eis o meu nome./Tenho a alma clara/ e de cintilações / é feito meu destino”.
A ansiedade de saber-se ou encontrar os sentidos da vida leva-o ao conflito existencial:

Porém a ânsia que sinto
é um conflito
muito maior
que a nave da existência.

A saída é a fé, como vimos no clamor ao Pai, ou a arte:

O mito de toda a existência é sempre a arte (“Lavragem”, p.37)
A arte: minha suprema realização (“Diário”, p.44)

A Literatura, sua arte por excelência, sem dúvida, é seu alento maior, como ele mesmo declarou em entrevista ao jornal O Povo, em outubro de 2006, na véspera do lançamento de Sintaxe do desejo:
“A literatura existe para substituir a vida, porque a vida por si mesmo não se justifica. A arte justifica a vida, porque a vida precisa ser reinventada e ela é reinventada fundamentalmente pela palavra. A palavra cria, a palavra transforma, a palavra liberta”.
Exercitando redondilhas, sonetos ou versos livres, Dimas mostra sua preocupação com a morte, mas não a coloca como centro de sua poética, talvez porque entenda que “O aprendizado da morte é a existência (...) (e) o sentido da vida é a suspeita/ de que a morte é a simetria de (sua) liberdade” (“Poética” p.68). É ainda o amor o seu estro, uma vez mais e sempre, celebrado de forma silenciosa, platônica:

As horas,
um amontoado de saudades,
minha idéia a encontrar-te
é como uma voz interior a ter-te.

Mas é irreal,
e o meu sonho, um sonho,
fundido com a minha angústia
como uma tarde sem horizontes.

Esse amor-falta, em outros versos, adquire carnação e torna-se erótico, até dionisíaco. Em “Banquete” (p.45), poema demais sensorial, há um rito na consumação do amor:

Entre ostras e pêssegos eu bailo
e bêbado
beijo o frutal de tuas algas.
Entre aspargos e vinhos
advinho o apelo de teus lábios.
(...)
E te possuo entre ostras e aspargos.
Entre vinhos e pêssegos eu te consumo
e te presumo mar absoluto e furioso.

Igualmente ocorre em “Frutos” (p. 81), poema sensual e bastante sugestivo:

A carne é fraca
e os frutos
maduros
são ditosos.
Apetitosos
os seios de Aline
na varanda
e as rosas brancas
no corpo de Marcela.

O amor-erótico se espraia em forma de desejo, no poema “Concha” (p.28): “Quero a louca / lâmina / da minha fantasia/ pastando no teu sexo” e se plenifica em “Casulo” (p.52), a mais bela peça romântica do livro:

Te amo sobretudo os lábios
e a resina viscosa dos teus seios,
pois a vulva dos teus olhos enlaça
a sedução invisível dos meus pelos,
onde começo a viver e me embaraço,
porque me mato de amor quando te vejo.

Já em “Ausência” (p. 69), o poeta recusa o amor-sofrimento e celebra o amor-vida, confirmando a doação plena e o desejo de felicidade:

Não. Eu não me quero o suicida
que despenca do alto da torre.
Eu me quero vida para te ofertar rosas
e te colher a plenitude de espigas maduras.

Dimas tem a poesia como o sentido de sua vida, a poesia visceral e sangüínea, costurada com a alma. Evocando a infância ou suas raízes, procurando a lógica da vida ou indagando sobre os enigmas que a cerceiam, refletindo sobre o processo criador ou reinventando-se na ‘tessitura do caos’, lembrando a morte ou celebrando o amor, ele sintetiza seu percurso poético no trajeto de seus 25 anos de poesia, reafirmando seu talento para as letras e fazendo o coroamento de sua maturidade estética e ontológica. Resta-nos a pergunta: se Sintaxe do desejo fecha um ciclo existencial, o que virá agora? Conhecendo o poeta, arrisco uma resposta: a reinvenção (inclusive do novo), porque ele sabe, como Cecília Meireles, que “a vida, a vida, a vida... só é possível reinventada ”. Também a poesia!
Fortaleza, Junho de 2007
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segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Porta fechada (Nilto Maciel)


























Carlos acordou sobressaltado. Os pais falavam alto, discutiam. Do lado de fora, uma pessoa esmurrava a porta. Por que discutiam àquela hora? O medo tomou conta do menino. Ou sonhava? Sonho feito de palavras sem sentido, sons confusos, tumulto indistinto, quase remoto.
Na verdade, Josias batia na tábua porque queria entrar em casa e o pai teimava em não abrir a porta. Dormisse na rua, com os cachorros. Mais gritos e fragor de pancadas. Carlos acordou de vez, o coração a bater em descontrole. A mãe exigia a abertura da porta. Josias não poderia dormir na rua. O homem bradava negativas, vociferava. Aquilo não eram horas de chegar. Fechada a porta, por ela ninguém mais entrava. Somente no outro dia. Dormisse na rua o vagabundo. A mulher chorava, implorava. Deixasse o filho entrar para dormir. O pai teimava. Havia determinado o horário de os filhos estarem em casa: dez horas da noite. Inconformado, o rapaz gritava, chutava e esmurrava a madeira. E ameaçava: se não abrissem a porta, ele a abriria à força.
Em dado momento, a porta pareceu ter sido derrubada. Talvez a tranca tivesse ruído ou os ferrolhos se deslocaram, à custa dos sopapos. Ou terá sido aberta pelas mãos do pai, para evitar o arrombamento? Iniciou-se uma correria dentro de casa. Cinto à mão, o homem se pôs a perseguir o filho sem-vergonha. Corriam, resfolegantes, a gritar. A mãe chorava, pedia calma. Assustados, os meninos se encolhiam nas redes. Pai, mãe e filho corriam pela casa, em fila, cansados, passavam de um cômodo a outro. Apavorado, Carlos se encolhia na rede. Josias passava e o jogava ao léu da noite. O pai o empurrava para mais longe. A mãe o socorria, mas também passava, aos prantos.
Aos poucos foram sossegando. Carlos não soube quando aquilo acabou e de novo dormiu. Talvez quando o pai e filho não mais tiveram forças para correr e falar.
Dias depois, Josias saiu de casa e Carlos nunca mais o viu.
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domingo, 14 de outubro de 2007

Dulcinéia em Hollywood (Cunha de Leiradella)




Não existem boas nem más estórias. Existem apenas estórias. Que podem ser bem ou mal contadas. Há mil e uma formas de contar uma estória. Mas só uma (e apenas uma) é a forma certa de a contar. E é, justamente, essa forma que faz a diferença. Que mostra o abismo entre um bom e um mau escritor. Entre o escritor que sabe trilhar o seu caminho e o escritor que, sem procurar sequer encontrar o seu caminho, apenas segue o rastro dos outros, e o que é pior ainda, sem saber como nem para quê.
Cherlanyo Barros não é desses. É daqueles. Daqueles que sabem trilhar o seu caminho. Os contos de Dulcinéia em Hollywood poderiam ter sido escritos de mil e uma formas. Mas Cherlanyo Barros soube escolher a forma certa. Mostrou-nos a essência dos seus personagens como ela deve ser mostrada. Todos os seres humanos se parecem nas suas contradições.
E o autor, ser humano que é, não escapa das suas próprias contradições. Não existem contos perfeitos no livro de Cherlanyo Barros. Existem apenas estórias bem contadas. E é esta aparente contradição que deixa no leitor a satisfação de ter feito uma boa leitura. Ser ou não ser é apenas uma questão. E o importante não é a questão, é a postura, poder ser. E a forma como Cherlanyo Barros conta as estórias de Dulcinéia em Hollywood dá ao leitor a condição dessa possibilidade. Poder ser.
Está nascendo no Ceará um excelente contista. Escutem-no. Ele tem algo a dizer.

Casa das Leiras
Portugal

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Bééé (Nilto Maciel)
























A charretezinha subia e descia a rua, o carneirinho a berrar. Animal altivo, sadio, de pêlo branco. Veículo pintado, envernizado, recoberto de frisos coloridos, bancos bem forrados. Verdadeiro carro de príncipes e princesas. O carneirinho berrava bééé. Jairo, na boléia, olhava loiro e feliz para os curiosos. À frente, puxando o cabresto, um homem, provavelmente o pai. Outros garotos, nas janelas e portas das casas, contemplavam o principezinho e sua carruagem real. O animal berrava, talvez para anunciar a passagem do menino rico.
Pela cidade não se viam carros, a não ser, de vez em quando, o jipe do prefeito, um caminhão que chegava num dia e saía no outro, o ônibus que vinha da capital duas ou três vezes por semana.
A quem pertencia a pequena charrete? Ao pai de Jairo? Teria adquirido o veículo apenas para divertir os filhos? Ou cobrava alguns réis pelos passeios? Talvez tenha ele mesmo construído o carro e adestrado os animais. Essas e outras questões faziam parte da conversa dos meninos.
Com o passar dos dias, meses e anos, deixaram de ver a charretezinha e nem se lembravam mais dela, e muito menos do carneirinho a berrar. No ginásio Jairo só falava de meninas e diversões. Não gostava das aulas e muito menos dos padres-professores. Andava a rir à toa, despreocupado de livros e lições, a perambular pelas ruas, a fumar escondido do pai. Pedia auxílio aos colegas nas aulas de português, matemática, inglês, geografia, de tudo. Não sabia nada.
Mais tarde conheceu o álcool, deixou de estudar, não trabalhava, vivia de favores de parentes. Até ser colhido por um veículo numa rua da capital. Andava bêbado, como todo dia. Tentou atravessar a rua e, passos lentos ou trôpegos, não alcançou o outro lado. Morte instantânea, o corpo esfacelado, moído, a sangrar muito. Longe, muito longe dali, um carneirinho berrava bééé.
Fortaleza, 19/10/2004.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Literatura e desvario (Henrique Marques Samyn*)




Nilto Maciel é, mais do que escritor, um guerreiro das letras. Mantém heroicamente, desde 1991, a revista Literatura, uma das poucas publicações brasileiras dedicadas exclusivamente às letras; paralelamente, constrói uma premiada obra como romancista e contista, além de assinar artigos, ensaios e poesias.
Carnavalha (Bestiário, 2007), sua obra mais recente, é uma espécie de romance em retalhos, construído por meio de uma laboriosa montagem de narrativas. O tênue fio que as une, o próprio motivo carnavalesco, dá azo ao vertiginoso desfile de cenas que se desenrola em torno de Zuza, bêbado e gauche, centro deste universo em que tudo tende ao desvario. O texto de Nilto comumente habita a fronteira entre o real e o fantástico, limite que também Carnavalha, com freqüência, desconhece; assim é que a narrativa entrelaça passagens em torno das mais prosaicas situações com textos de evidente carga simbólica. Carnaval, mundo feito máscara: nada é o que parece ser.

Se rótulos fossem necessários, talvez fosse possível qualificar Carnavalha como um romance etnográfico; categorizações, todavia, pouco importam no tocante à literatura, e mais vale observar que Nilto Maciel mergulha no universo carnavalesco para extrair dele a matéria-prima de sua criação literária – um romance em que a essência do carnaval mescla-se com a própria marcha da existência. Nas narrativas de Carnavalha, o que há é um desfile de efêmeras criaturas cujas vidas, árduas e dolorosas, sôfregas e retortas, só encontram algum sentido nos delírios dos que as vivem. Ainda assim, somos capazes de sentir, por esses miseráveis seres, alguma empatia – talvez por nos semelharmos mais a eles do que gostaríamos de crer. A navalha de Nilto Maciel fere, afinal, nossa própria carne.

*Henrique Marques Samyn: escritor, tradutor e pesquisador acadêmico, vive no Rio de Janeiro. Autor de Poemário do desterro e de diversos artigos acadêmicos. Sua obra literária já foi publicada em diversos periódicos brasileiros, na Venezuela e na Espanha. Cursa atualmente doutorado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com tese sobre poesia medieval.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Obituário (Nilto Maciel)




Quando o primeiro caderno se completou, Cleto desistiu do segundo. Não ia mais anotar os nomes dos falecidos e as respectivas datas de morte. Tudo começou quando o pai morreu. Comprou um caderno grande e deu-lhe o título de “Falecidos”. Quase todo dia anotava um nome: parente, amigo, conhecido, político, ator, cantor, escritor, jogador de futebol. Se lia ou ouvia notícia de falecimento, corria ao caderno e anotava: fulano de tal e a data. De vez em quando passava algumas horas a rememorar os seus mortos. Mulher, quem era Anacoluto dos Anzóis Pereira? Ana se irritava com a mania de Cleto: Sei lá, homem. Deve ser algum gramático sem pé nem cabeça. Outras vezes se lembrava de algum parente esquecido ou pessoa famosa. Já teria morrido? Consultava o caderno e não encontrava o nome. Mulher, Maria ainda está viva? Ana só faltava chorar: De que Maria falava o marido? Mulher, por onde anda aquela cantora carioca que regravou uma música de Noel Rosa? Não lembrava o nome e por pouco não ficava doido de tanto escavar a memória dele e de Ana.
Decidiu: não ia mais anotar os nomes dos mortos. Comprou outro caderno e deu-lhe o título “A falecerem”. Passou um dia a copiar nomes de parentes, amigos e pessoas famosas. Mulher, como se chama aquela sua prima que se casou com o Jorge caminhoneiro? Ana, quem é o presidente dos Estados Unidos? Não esqueça de escrever o seu nome, Cleto. Não escreveu, irritado, jogou o caderno na gaveta e se pôs a ler o jornal: “Previsão do tempo: Amanhã chove em todo o litoral”. Não choveu, mas Ana concluiu o primeiro caderno com o nome do marido.
Fortaleza, 12/10/2004.

sábado, 6 de outubro de 2007

O ponto de vista das sombras (Stélio Marras*)



(A propósito do livro Nó de sombras**, de Chico Lopes)


“Localizar o ponto inicial, o fundamento das sombras. Preciso de tranqüilidade, depois virá a clareza. Preciso entender ”. (Do conto Um corpo no rio, de Chico Lopes, p.36)

Pergunto-me que outro título poderia expressar assim tão fielmente esse autor. Para quem o conhece um pouco, saberá intuir o rendimento metafórico que as sombras lhe alcançam. O Cinema e a Pintura, duas das artes com que Chico divide a sua vida, ambas dependem das sombras como condição de existência. Isto é, a luz só é possível contrastada à sua ausência. Sem o jogo do claro-escuro não há cinema, as cores do quadro não se distinguem, não há imagem qualquer que se defina. Pois a literatura de Chico acusa o mesmo. Retomamos o claro e o positivo pela ótica induzida da sombra e do negativo.

Era inevitável que logo às primeiras páginas um feixe de relações se armasse e alguns escritos de Pedro Sanches, Coelho Neto, João do Rio e sobretudo de Jurandir Ferreira viessem agora fazer face à leitura dos contos de Chico Lopes. E percebesse que desse embate saía claramente destacado seu ponto de vista destoante sobre ocorrências de uma cidade então pequena – mas daí além. De fato, se muito do referencial provém de tudo aquilo que sentiu e observou em Poços de Caldas, o caso é que o filtro de Chico, seu tratamento dado à matéria da realidade sensível do cotidiano e as conseqüências alcançadas, levam sua escritura para bem longe de Poços. É quando aquele compartilhar físico com tal ou qual pessoa na espera do ônibus no ponto, experiência banal ou corriqueira, reaparece mais tarde, cotovelos à escrivaninha, quando a rua invade o quarto do escritor, e as impressões do dia irão transcender-se em personagens e fina literatura. Então, Poços, o ponto de ônibus e a tal ou qual pessoa desprendem-se de si mesmos. Mas também, e vice-versa, a escritura instrumentaliza-se e retorna à cidade submetendo aquela mesma notação da realidade micropautada a um diferente – original, talvez aterrador – exame.

Em Chico o ponto de vista é o das sombras. É daí que o mundo dá-se a conhecer. Aquela mesma cidade, já nem tão pequena, espraia-se em periferias, estende margens antes insuspeitas. Chico nos arranca do velho e aparentemente pacato centrinho e nos atira para as bordas – segundo a propriedade de quem, qual etnógrafo ou verve jornalística, a experimenta no dia a dia. De súbito, caímos noutro lugar. De volta, o que havia da imagem antiga já não permanecerá incólume. O deslocamento é a sensação forte que atravessa o leitor na leitura diagonal dos contos. Muda o foco, agora as sombras é que clarificam. O periférico ilumina o centro e denuncia que um não pode ser compreendido senão remetendo ao outro, como o imoral ao moral, a sandice à sanidade, a solidão a dada economia das relações sociais. O positivo é considerado na revelação do negativo. Mas o negativo é a posição de partida.
O argumento das sombras torna-se paulatinamente robusto à medida que penetra com semelhante e simétrica persuasão a escala psicológica e sociológica. A mais funda introspecção da experiência pessoal da personagem reencontra inteiro seu pólo coletivo. O fragmento funda a perspectiva da escritura e torna-se a chave interpretativa que submete e deriva o mundo. Por isso, em pouco tempo, o leitor nota que a temática é mais vasta do que porventura imaginara. O referencial do espaço (periferia-centro) replica-se na oposição sociológica (ser periférico-ser central) e adquire estatuto simbólico (impuro-puro, imoral-moral, perversão-culpa etc.), assim descolando-se da imanência empírica, de onde partiu, mas que pode voltar a ela e explicá-la, porém em escala muito mais abrangente. É quando aquele referencial restrito a dada coordenada tempo/espaço (esta de uma certa pequena cidade) transborda destes seus signos primeiros e passa a dizer respeito seja à periferia de grandes cidades, seja à periferia interna do ser psicológico. Entre as diversas dimensões – eis o ponto – resultam razões de continuidade.

Se o leitor seguir pari passu a analogia direta com a cidade (eixo possível, mas restrito, de leitura), terá logo de saída que lidar com a realidade de uma contradição e assentá-la no espírito. Todos aqueles traços de esgarçamento social, até então típicos de grande cidade – medo, desconfiança, solidão, terror – caem de chofre a arrasar qual imagem de um comunitarismo romântico da tida pequena cidade. Se tal imagem nem mesmo o gênio de Jurandir algum dia teve a inocência de esculpir, agora é que ela se tornaria sumamente anacrônica. Chico nos obriga a dar meia volta e olhar ao redor, reconhecer a existência dos mais de cem bairros de Poços de Caldas. De volta ao ângulo inicial, repito simbolicamente, o centro não será mais o mesmo.

Porque aqui já não é mais aquela vila de Jurandir Ferreira, com seus recatos de comunidade, a organização tradicional de pequenos agrupamentos, onde todos sabiam dos vícios e virtudes uns dos outros. Agora a vila cresceu, está repleta de anônimos. Mas cresceu muito mais, desproporcional, a dramática da coesão coletiva. Compare-se a experiência dos personagens por meio de ambos os autores:

“Desconhecidos? Haverá desconhecidos? (...) Ficamos os dois por ali a malhar o nosso arroz aéreo, longamente colhido. Voltamos ambos ao Palácio dos Dias Antigos e descobrimos novamente todos os seus prodígios e seus tesouros. Enquanto isso, em torno de nós desapareciam os arranha-céus, os grandes edifícios, o alastrado casario moderno. A cidade tumultuária como que, sob nossas evocações, se desfazia do peso de suas cargas de atualidade e reassumia os sorrisos e os perfumes da vila montanhesa, com ruas que eram ainda como estradas para carros de bois, enfeitadas pelos verdes do capim nativo e pelas borboletas que desciam do mato vizinho.” (Jurandir Ferreira, “O arroz longamente colhido”. In “A visita”, São Paulo, Ed. Do Escritor, 1977, pp.80-1)

Para este que nasceu em 1905 e agora via aquela cidadela expandir em prédios, ruas, “cargas de atualidade” com seus ruídos e seu “casario moderno”, lícito que seu personagem pergunte se “haverá desconhecidos”. Mas logo o arroz colhido dos Dias Antigos obra diminuir a distância entre os desconhecidos postos face a face, bem como o peso de atualidade do entorno, e enfim ambos se reconhecem mutuamente, pois provenientes de uma mesma semeadura. Não, malgrado os arranha-céus, não haverá desconhecidos. O outro ainda continua em mim.

Situação oposta é a dos personagens de Chico. Arrisco dizer que entre eles não há, como em Jurandir, algo como uma memória mediadora que unifique estranhos e assim rapidamente dilua o anonimato. Em Chico, o anonimato não é diluído, mas impelido a radicalizar-se. O tempo e o espaço são outros, e o Palácio dos Dias Antigos, quando insinua aparecer, apenas ressurge pálido e confuso, e nada funda ou semeia no presente das relações entre estranhos – nem mesmo dentro da família. Estamos na “faixa periférica” (“A fresta”, p. 108) da cidadela que não há muito tempo contava “15 mil habitantes” e que neste momento apenas “deixava entrever saudades do povoado,dos arrasta-pés”, do “fugaz sanfoneiro” (Idem, p.111). Um passado nebuloso rápido se esvai e somente resta amargar as sombras de existências resignadas, remediáveis, dramas introspectivos a pôr em curso perversões e egoísmos, revolver angústias e recalques, mas também – paradoxo aparente – criar perspectiva enormemente humana. Contudo, nada tece de coletivo, e o eu permanece “agulhinha”, solitariamente fiando retalhos com que visar o mundo.

“Aliás, eu também não gosto de ninguém, não me permito. Tudo bem. Imune, liso, funcional. Natural que a cidade se interesse tanto por mortos no jornal, os acidentes, os cadáveres em fotos minuciosas de primeira página: só vale a sensação forte, a discernível, a única perceptível numa ruína ontológica. Eu, agulhinha.” (Chico Lopes, “O quarto e a rua”, p.28).

O outro permanece estranho e inspira pavor, o “outro que se esgueirava entre gente na calçada” (“Do outro lado”, p. 58), os “tipos insondáveis que passavam sem boa-noite.” (“Do outro lado”, p.54), “os rostos que fluem, inúmeros, inúteis, ninguém que possa ser um amigo, nada que possa estar livre e da necessidade e do desencanto letais.” (“Uma das mil noites”, p.75). Neste mundo de mônadas incomunicáveis, o diálogo entre os personagens aparece sempre breve, ríspido, lacônico. A figura do mudo (“Nos fundos”) é por isso paradigmática da unidade do livro, é o emblema da ausência de comunicação e diálogo. Diferente de Jurandir, enfim, o anonimato de Chico apresenta-se irredutível. O outro me descontinua.

Figura recorrente entre os contos é a do pai distante, esquivo, rival; que por tal distância o ego-personagem surpreende-se simetricamente mais próximo da mãe, às vexes da irmã ou até mesmo do irmão, a sugerir a atmosfera do incesto, porque a aliança que se deveria encontrar fora de casa, o afim externo, tal não sucede, não sem traumas e bloqueios, cujas razões são exatamente provenientes da vida ensimesmada, socialmente mínima, econômica quanto possível, a vida seca (de um Graciliano que, não será por acaso, tanto impressiona Chico e lhe fornece metáfora). E porque a relação com o de fora (tanto da família quanto, no limite, do indivíduo) é tão dificultosa, o par alteridade/identidade acaba tendo que voltar-se para dentro (eis o mecanismo próprio da perversão), para as relações internas à família, e aí mesmo operar. É quando a consanguinização atinge níveis insuportáveis e explode.
É a “vida até aí talvez triste, mas cômoda” (“A fresta”, p. 114), dessa comodidade de contra-senso, porque apequenada, embrutecida, encerrada numa resignação claustrofóbica, que a pulsão sexual, esta porém incontrolável, sobretudo em meio estimulante como o nosso, por isso mesmo de súbito aflora violenta, homicida, suicida, mal sublimada, pervertida, mas também emancipadora. Coerente, pois seria de esperar que a afinidade com o de fora de casa sucedesse bem nesse mundo desconfiado e retraído, de migalhas materiais e afetivas tão disputadas? Ir buscar-se fora, nas ruas? Mas estão “as ruas povoadas de sombras que poderiam censurá-lo, interrogá-lo, barrá-lo “ (“O recado”, p. 129). Então eis que surge a prostituta (“A fresta”) a dar escape a sonhos surdamente tramados, seja pai seja do filho, a prostituta vizinha que quando passa faz a mal recatada filha-irmã “morder cobras” de repulsa e inveja. Pois então está a prostituta a ocupar o lugar possível e provisório de uma alteridade truncada nesse mundo em que o outro mais apavora que fascina. Por isso a prostituta, como sempre, está lá, à disposição, sem juízo de censura ou palavras de acusação, ela dispensa cerimônias e ritos relacionais, já que nesse mundo atomizado, solitário e nada solidário, imperam as relações secas e ariscas. Pois alguém haveria, de um modo ou de outro, que promover alguma troca de afetos, de fluidos, o irredutível impulso da troca para estas almas sedentas e estes corpos desesperados por contato. Então a prostituta, é ela o que de mais viçoso se destaca dentre aqueles da vizinhança – mas que por tal viço pagará seu preço (como aquela Geni de Chico Buarque).

“Deus, Deus, é sempre isso, sempre repetir? Todos fixos, todos erráticos, vão de sombras a sombras, adensando-se, e os saciados são igualmente tristes, vácuos que imploram. (“O quarto e a rua”, p. 30).

Vê-se que nem mesmo os “saciados” estão saciados. Ninguém escapa às sombras. Todo o tecido, por desigual que seja, apresenta-se igualmente corroído pelas traças que não conhecem limites de classe. Mas somente nos é dado reavaliar o positivo quando, pela mão de Chico, seguimos o encalço do negativo. É mesmo sua estratégia. A periferia ensina a ver o centro, porque só há um contra a existência do outro. Por isso seus heróis recorrentes situam-se entre os de baixo, seja na hierarquia etária e geracional (irmão menor/irmão maior; filho/pai), seja na de gênero (esposa/marido), seja na distribuição social de poder (desempregado/empregado; insuficiência de meios/suficiência de meios etc.) Segui-los é caminhar junto centímetro a centímetro o pavimento das sombras. Dialeticamente, contudo, é nessa mesma ótica sombria que reside a fonte imaginativa e luminosa de seus heróis (penso em Chico pensando nas tramas psicológicas dos filmes de Hitchcock, cineasta dos seus preferidos). Porque as sombras, a todo despeito, logram edificar mentes psicologicamente complexas, introspectivas, cerebrais, elaborativas. Dessas mentes é que se estendem as redes através das quais o mundo se arvora, ainda que frágil ou terrível. Delas é que floresce – como a rosa drummondiana no asfalto – um embaraçoso, mas coeso e pertinente, ponto de vista por meio do qual visamos o mundo, esta perspectiva dos que se sabem reprimidos, amuados, obrigados a sempre admirar. Instalados, pois, nesta posição observatória, os heróis se engrandecem soberbamente. Aparente paradoxo que se desfaz. Compreendo enfim que a miséria, talvez a pior delas, assombre muito mais os saciados, porque estes não sabem que intimamente já conhecem as sombras.

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*Stélio Marras é mestrando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e membro do corpo editorial da revista Sexta-Feira – Antropologia, Artes e Humanidades.
** São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2000.

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quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Mea culpa (Nilto Maciel)

















Algumas horas após o cometimento do crime, familiares, amigos e vizinhos da vítima se dirigiram à delegacia de polícia da pequena cidade. Revoltados, gritavam, exigiam a imediata prisão do criminoso, ameaçavam invadir o prédio. Se o celerado já estivesse preso, que o soltassem. Queriam linchá-lo. A multidão crescia e a rua parecia em pé de guerra. Nenhum soldado aparecia. Passados alguns minutos, o delegado se aproximou da porta, aparentemente muito calmo. O povo urrava sem parar. Cadê o criminoso? Queremos fazer justiça! O homem pediu serenidade de ânimo e silêncio. E iniciou breve discurso. Meia dúzia de frases sem sentido, obscuras, incompreensíveis, como se falasse latim. Para encerrar, convidou as pessoas a se dirigirem à sua sala. Uma a uma ou casal após casal. Primeiro os pais da vítima. Fizessem fila. Dois minutos depois, o casal saiu, silencioso e cabisbaixo. E caminhou na direção de casa. A terceira pessoa voltou mais silenciosa e mais cabisbaixa ainda. E assim aconteceu com todos e a rua da delegacia voltou à paz de antes.

Passaram-se dias, meses, anos, e nunca mais na pequena cidade se falou do crime ou do criminoso. Na rua os cidadãos apenas se cumprimentavam, ainda cabisbaixos: bom-dia, boa-tarde, boa-noite. E voltavam para suas casas, calados.

Fortaleza, 24/25 de setembro de 2004.
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quarta-feira, 3 de outubro de 2007

O dragão (Anderson Braga Horta)





Eu levo um dragão comigo.


Outros têm um gato, um cão,
um passarinho, um lagarto,
um sapo, uma tartaruga
por bicho de estimação.


Eu,
tenho um dragão.


Se o dragão é meu amigo
não sei: ele me devora
mente, sonhos, coração.
Ele rouba o que eu escrevo
mesmo antes que o tenha escrito,
me embaralha os pensamentos,
faz sentir o que não sinto,
namora a mulher que eu sonho
e inda me chama de irmão.


Carrego um dragão comigo
como quem leva o seu cão.


Uns alimentam no peito,
a vida toda, um poema
ou qualquer outra ilusão:
capa de herói, luz de sábio,
halo de santa paixão.


Eu alimento um dragão.


Ele me esfola, me estripa,
me cospe fogo, me engana,
ah! e diz que é meu irmão.
Ele me mata! e é, no entanto,
quem me permite viver.


Eu tenho um dragão comigo,
meu irmão, meu inimigo,
meu sósia e minha abusão;
e ele sou eu, que sou ele,
e é meu verdugo e meu cão.
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segunda-feira, 1 de outubro de 2007

O perdão (Nilto Maciel)

















(El Velorio, 1972, de Carmelo Sobrino)


“– Tu agüenta mesmo um homem?”
Os anões, Moreira Campos

O anão chorava abraçado ao corpo da anã. Descontrolado, fazia a rede balançar, como se embalasse a morta. Uma vizinha entrou no casebre. Por que chorava o anão? Nem sequer olhou para a mulher. Outros vizinhos se aproximaram da porta da casinha. Meninos tentavam sondar o interior da sala e saíam correndo para o mar. Amanheceu morta, o coração parado. Pobre Lourdinha! Coitada, deve ter morrido dormindo. Melhor assim; não sofreu para morrer. O anão chorava sem parar. Acendessem uma vela. Onde arranjar vela? Uma mulher se esgueirou. Lembrava-se de um toco de vela em cima da mesa. Ia num pé e voltava noutro. Começassem a reza. O bater das ondas na praia cadenciava a reza. Ave-maria, cheia de graça. Trouxeram uma garrafa de cachaça. O anão recusou a bebida. Precisava chorar. Sua pobre Lourdinha havia sofrido muito. Não por causa dele, mas dos outros. Nunca nela bateu e ela estava ali como testemunha. Outros, sim, quiseram usar o corpo dela, tão pequeno, como de menina. Como aquele negro safado, anos atrás. Consolavam o anão. Bebesse um tiquinho para se acalmar. Ele voltava à rede, ao corpo da mulher. Ave-maria, cheia de graça. Acenderam o toco de vela. Ia ter caixão? Procurassem o padre na igreja. E se Lourdinha estivesse ainda dormindo? Costumava beber muito de noite? Nunca, nunca bebia. E como tinha sido a história do negro? Muitos anos atrás, quando ainda moravam num armazém abandonado, perto do Mercado Central, um homem arrombou uma das portas. Acordaram assustados. Na mão do bandido o relógio de ouro de Lourdinha. E o pior: o deboche, a perguntar se ela agüentava mesmo um homem. Não conseguia esquecer aquilo. Anos e anos passados e ainda assim a figura do negro aparecia diante dele, a resmungar imundícies. Depois daquilo, Lourdinha nunca mais foi a mesma, sempre nervosa, com medo de tudo e de todos, chorosa, querendo ir embora para bem longe. Uma casinha na beira da praia. Não rezavam mais, a garrafa de cachaça vazia e o toco da vela apagado. E o padre? Tome um golinho, vizinho. Não lhe pronunciavam o nome nem o chamavam de anão. Quem ia arrumar a defunta para o enterro? Súbito assomou à porta a figura musculosa de um negro. O anão arregalou os olhos, fez um esgar, rangeu os dentes, retesou-se todo. E correu para junto da rede e do corpo da anã. Os outros se afastaram para os cantos das paredes. O mar rugia feito um monstro em fúria. O visitante juntou as mãos, como se fosse rezar, e disse: vim pedir perdão pelo que fiz e trazer um relógio de ouro para a sua mulher.
Fortaleza, 10/9/2004.
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