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terça-feira, 30 de novembro de 2010

A espera da vez e a vez (Cunha de Leiradella)

(Do livro Fractal em duas línguas)
Ontem, como sempre, fui ao Derby. Não gosto do Derby, mas vou lá todas as noites. As pessoas que conheço estão sempre viajando ou, se estão em casa, estão dormindo ou têm visitas. Por isso, vou ao Derby. No Derby ninguém viaja, ninguém dorme, e nunca apareceu uma visita.

Ninguém entra no Derby. Além dos garçons sonolentos, encostados nas paredes ou nas mesas, só nós ficamos lá. De vez em quando, alguém pede um conhaque ou um café, ou então, de repente, se escuta um pigarro ou um suspiro. Mas é só. Quando o relógio bate as horas, só os garçons sabem que horas são. Para nós, as horas não são horas. São apenas ruídos de relógio.

Vou ao Derby há anos, todas as noites. Mas não conheço ninguém, nem ninguém me conhece. Às vezes, quando entro, parece que alguém me acena com a mão. Mas não acena. O aceno foi para chamar o garçom. Nunca ninguém me vê entrar. Nem os garçons. Não os conheço e tenho certeza que, se tentasse falar com algum, ele me perguntaria se não tenho casa ou mulher, ou outro lugar para onde ir. Por isso, não os conheço.

Sou sempre o último a chegar. Quando entro, todos os outros já estão lá. Nunca consegui entrar no Derby antes dos outros. Não falo com ninguém, mas eles me olham e eu sei que todos gostariam de chegar depois de mim. Como eu chego depois deles.

Se tivesse outro lugar para onde ir, jamais iria ao Derby. Mas todas as pessoas que conheço ou estão viajando ou estão dormindo, ou, então, têm visitas, e eu não tenho outro lugar para onde ir. Tenho a minha casa. Mas a minha casa é só a minha casa.

Se ninguém me olhasse, talvez o Derby fosse até um bom lugar. Mas todos me olham e eu não gosto que me olhem. Sempre que alguém me olha espera que eu faça alguma coisa. E eu não posso fazer nada. Se pudesse, não estaria no Derby. Mas eles não sabem e não param de me olhar. Por isso, sei que estão esperando. Talvez não saibam nem o que esperam, mas eu sei que eles esperam. Se não esperassem, também não iriam ao Derby todas as noites, nem olhariam para mim. Por isso, não gosto do Derby. Eu não posso fazer nada.

Eles não sabem, eu sei que eles não sabem, mas eu sou igual a eles. Também espero. Por isso, vou ao Derby todas as noites. Como eles.

Nenhum deles fala comigo. Mas eu sei que pensam que sou diferente, apesar de sentar como eles, de beber como eles e de esperar como eles. Mas eu não sou diferente. Sei que não sou. A única diferença, se é que se pode chamar diferença, é que eu sempre chego depois deles. E, talvez por isso, eles me achem diferente e me olhem, e esperem que eu faça alguma coisa.

O quê, eu não sei. Mas sei que eles esperam. Às vezes, de tanto pensar, chego até a pensar que eles esperam que eu faça um milagre. Ou, então, que não volte mais ao Derby, se não puder fazer outra coisa.

Ontem, como sempre, nenhum deles falou nada. Mas os olhares diziam tudo. Há anos que eles me olham e eu conheço o olhar deles. Mas não podia fazer nada. Mesmo que me levantasse e fosse embora, nada iria acontecer. Eles continuariam esperando e o meu lugar, mesmo vazio, continuaria sendo o meu lugar. Por isso, desviei os olhos e olhei a parede à minha frente. Pelo menos, a parede nada me pediria. E não pediu.

Mas eles também deixaram de pedir. De repente, deixaram de me olhar e até os garçons se desencostaram das paredes e das mesas. Assustado, olhei-os um por um e vi que, realmente, ninguém mais olhava para mim. Mas, mesmo assustado, pela primeira vez sorri no Derby. Alguma coisa, finalmente, estava acontecendo.

Talvez por causa do meu sorriso eles pensassem que fui eu. Mas não fui. Tenho certeza que não fui. Eu só escutei, como todos eles escutaram.

Tudo tem seu tempo determinado,

e há tempo para todo o propósito

debaixo do céu. Há tempo de nas-

cer e tempo de morrer...

A voz calou-se e um deles levantou-se e começou a bater palmas, e todos eles se levantaram e começaram a bater palmas. E, quando as palmas acabaram, todos se voltaram para mim e sorriram, agradecendo. Quis dizer-lhes que não tinha sido eu. Mas eles não queriam escutar-me. Durante anos acreditaram que eu podia fazer alguma coisa e, agora, que alguma coisa, realmente, aconteceu, não precisavam de mais nada. O milagre já tinha acontecido.

Levantei-me e saí, e um deles sentou no meu lugar. Agora, não posso mais voltar ao Derby. No Derby já ninguém espera nada.

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O autor
Cunha de Leiradella
Casa das Leiras
São Paio de Brunhais
4830-046 - Póvoa de Lanhoso
Portugal
Telefone Fixo: 253.943.773
Telefone Celular: 963.304.501
E-mail: leiradella@sapo.pt
Com o Longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1987), deu início à saga de Eduardo (espécie de seu alter-ego), personagem que atravessa todos os seus livros subseqüentes, entre os quais Guerrilha urbana (1989), Cinco dias de sagração (1993) e A solidão da verdade (1996), que sem nenhum favor podemos destacar entre o que se produziu de melhor no romance brasileiro das últimas décadas. (André Seffrin, Revista EntreLivros, São Paulo, fevereiro de 2006)
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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

José Alcides Pinto (Re)descoberto (Inocêncio de Melo Filho)

(José Alcides Pinto)

José Alcides Pinto é uma das vozes mais intensas da poesia cearense. Se fosse o caso de determinarmos uma tríade literária, ele não seria excluído. É neste contexto de significação e representação da arte alcidiana que as edições G.R.D, fizeram chegar às livrarias Poemas Escolhidos II (2006), possibilitando, assim, um segundo encontro dos leitores com o autor e sua obra. Quem ainda não o leu poderá ter o prazer de descobri-lo e fazer deste vate um dos seus diletos.

É vasta a poética de José Alcides Pinto. Estas duas antologias volumosas comprovam isto. Poética vasta e forte, consegue representar o homem e suas circunstâncias, fazendo-se discurso universal, consciente do humanismo e da fúria que lhe é peculiar.

Uma poesia desta natureza poderia ser vertida com sucesso para o inglês, francês, espanhol... Seria lida e apreciada, faria parte dos destinos de outros mortais, guiaria os seus sentimentos. Falta-lhe editores e tradutores que façam a poesia de José Alcides Pinto alcançar todas as esferas do planeta. Mesmo assim, sua poesia concretiza o cosmopolitismo a partir da linguagem.

A poesia alcidiana caminha com os próprios pés, ou seja, contém linguagem própria. É livre como as águas e o vento, não tem amarras. Libertou o poeta e liberta quem dela se aproxima e se deixa possuir. Estamos diante de uma poesia surpreendente e insubmissa.

O efêmero e o transitório indicando passagem do tempo pela existência transubstanciando os seres e as coisas na natureza é uma constante na poesia de José Alcides Pinto, para nos conscientizar de que fomos feitos para a morte e viver significa um aprendizado necessário que nos servirá até para acolhermos com tolerância “a indesejável das gentes”.

Esta edição, que traz o titulo de Poemas Escolhidos II, traduz a vitória e a resistência da poesia que sobrevive em reduzidos espaços. Ela nem sempre se destaca na livrarias e nas vidas dos leitores. O que pode transfigurar esta realidade? Os avanços educacionais e sociais que permitirão aos homens reais vivências poéticas.

Segundo Nelly Novaes Coelho “a obra alcidiana é um universo – em – processo, visceralmente arraigado na poesia (mesmo quando se manifesta em prosa)”. A avaliação da escritora é acertada, pois o conto, o romance, o teatro e a crítica literária são extensões da sua poética que exigiu outros gêneros literários para reiterar sua existência.

A morte, o erotismo, o misticismo e as marcas surrealistas caracterizam a poesia de José Alcides Pinto. Estas características não se isentam do corpo da sua poética e a morte por ser uma das mais intensas se desvela num plano sagrado quando diz ser o outro rumo da vida e profana por admitir ser a “serva de Satã”.

Além do lirismo amoroso se expressa fortemente o lirismo social na poesia de José Alcides Pinto, nos convencendo de que o poeta é sempre um crítico da sociedade, mesmo que sua escritura não ponha os homens frente a frente, fazendo-os refletir para que novos atos e sentimentos sejam edificados. A arte alcidiana “denuncia a exploração do homem pelo homem, a injustiça social...” É desta forma que a literatura anuncia sua utilidade, despertando os indivíduos, representando seus desejos, semeando nos seus corações a semente da indignação.

Ainda neste contexto de consciência social, não podemos omitir o poema “A pequena varredora”, no qual o eu lírico se faz vocativo e chama a “menina dos pés graciosos” que tudo varre. Sua vassoura é um instrumento de mudanças, o eu lírico sabe disso, por isso a chama insistentemente para que suas ações se repitam.

José Alcides Pinto seria um poeta panfletário? Que mal há nisso? Sua poesia não se prende a rótulos. Fazer poesia, apossar-se das palavras e subordiná-las às suas vontades é o que realmente lhe interessa.

Nos ensina Cândida Vilares Gancho que “uma das grandes preocupações dos poetas em todos os tempos tem sido a de tentar definir a poesia”. Esta preocupação se intensificou bem mais no modernismo, trazendo consigo a nominação de metalinguagem, propondo explicar a arte e o fazer poético a partir da própria arte. É o que faz José Alcides Pinto em vários dos seus poemas. Para exemplificar o que estamos afirmando, citaremos o poema que se intitula por “Poesia” do livro Águas Premonitórias (1986):

Fazer poesia não é arrumar uma seqüência

de palavras

como quem levanta uma casa – tijolos sobre tijolos.

Uma escada de degraus sucessivos com corrimão.

Não! – não é isso nem aquilo.

É muito mais que construir uma casa com tijolos.

Muito mais que construir uma escada com

degraus e corrimão.

Neste segundo volume de Poemas Escolhidos conclui-se o que se pode considerar o melhor da poética alcidiana. Além da poesia, é por demais significativa a fortuna crítica que se acumula nestes dois livros, especificando o valor e a grandeza da literatura de José Alcides Pinto, que não cessa de ser reiterada pelos leitores e críticos.
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domingo, 28 de novembro de 2010

O Manual de Bruxaria de Eduardo Luz (Nilto Maciel)



Sob o título Manual de Bruxaria: Introdução à obra crítica de Machado de Assis (Fortaleza: Imprece, 2008), Eduardo Luz publicou sua dissertação de Mestrado em Letras, defendida em 1993, na Universidade Federal do Ceará. Algumas alterações em relação à monografia apresentada à banca examinadora e que se intitulava Manual de Bruxaria: atualidade da crítica em Machado de Assis. O livro tem apresentação do professor, ensaísta e poeta Linhares Filho, orientador na referida banca: “Um estudo atual da crítica machadiana”. Seguem-se a “Introdução”, os capítulos “Contre (o biografismo de) Sainte-Beuve”, “Machado: Aristotélico?”, “Crítica e civilização: Câmbio de luzes”, “O ‘sentimento íntimo’” e “O interescritor (na criação e na crítica)”, e a “Conclusão”.

Eduardo Luz chama Machado de Assis de “racionalista infatigável”. No capítulo I, – colhido de Contre Sainte-Beuve, de Marcel Proust – refere-se ao conhecimento da obra do crítico francês pelo brasileiro. É de 1879 o ensaio machadiano “A nova geração”, no qual faz referências ao autor de Volupté. Eduardo observa: “Quanto a Machado, ele jamais confundiu o “eu social” e o “eu criador”; sabia que o essencial de uma obra não coincidia com o temperamento de seu autor, tal como ele se manifesta na vida social. Distinguia autor (função social e extralinguística) e narrador (função puramente linguística)”.

Uma das peças críticas mais conhecidas do criador de Capitu talvez seja a análise de O primo Basílio, de Eça de Queiroz. E é a partir dela que Eduardo Luz constrói o capítulo II: “O que importava saber ao crítico Machado de Assis era a ‘qualidade irredutível’ da obra. Jamais recusou contribuições esclarecedoras; interessavam-lhe os laços que uniam o autor a seu tempo, as ligações da obra com a vida política, social, as influências remotas ou próximas...” (...) “Criticar, tendo por meta a perfeição, implicava, porém, olhar essencialmente as obras literárias em função de sua beleza, de sua inteligência”. O professor se refere também ao ensaio do Mestre “O ideal do crítico” e transcreve isto: “Não compreendo o crítico sem consciência. A ciência e a consciência, eis as duas condições principais para exercer a crítica”. E o defende assim: “Machado jamais atacou os autores”.

Eduardo Luz examina cuidadosamente uma a uma as obras críticas do velho romancista. No capítulo III da dissertação se debruça sobre algumas delas e tira conclusões lapidares: “Reprovador de extremismos, Machado de Assis também prevenia os novos poetas de outro grave risco: ‘o de cair na poesia científica’”. Ou esta: “Tendo recusado o biografismo à maneira de Sainte-Beuve, negado com vigor o determinismo crítico de Taine, rejeitado o impressionismo (tal como o concebia Lemaitre), Machado de Assis deve ser visto como um precursor da crítica que pensa a obra como criação de linguagem”.

O capítulo IV faz uma conexão de Machado com o pensamento literário brasileiro do século XX de Afrânio Coutinho, Antonio Candido e Wilson Martins e outros. E mostra como o Bruxo andava muito à frente da maioria: “Em 1858, aos 19 anos, Machado já distinguia perfeitamente autonomia política de autonomia literária”. Em “Instinto de nacionalidade”, de 1873, apontava: “O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”.

Na última parte do volume, Eduardo Luz baralha o criador de romances e contos singulares ao crítico literário plural. E se mostra orgulhoso, como brasileiro, de termos um “escritor de uma literatura supostamente periférica” que se apropriava “de modelos tomados à cultura dominante, transgredindo-os”. E acrescenta ao seu pensamento: “Para o crítico Machado de Assis, o conceito de originalidade era relativizado na medida em que via a literatura como uma atividade tradutora permanente, como operação intertextual generalizada”. Remete-nos a Borges, ao seu genial “Pierre Menard, autor del Quijote”, para mostrar a sapiência do Bruxo: “Estamos, portanto, diante de uma concepção que prega a co-existência de obras, não a sucessão”. E no axioma: “a arte não progride; ela muda, transforma-se”. (Ambas as frases são de Eduardo, que assim encerra o capítulo da interescritura: “Hoje, escrever é cada vez mais reescrever, remastigar. Valéry já pregava que le lion est fait de mouton assimilé. Antes dele, todavia, o nosso antropofágico Machado já decretava em Esaú e Jacó: O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida”).

Manual de bruxaria: Introdução à obra crítica de Machado de Assis, do carioca-cearense Eduardo Luz, é fundamental para quem lê Machado, para quem lê e estuda literatura ou para o leitor que gosta de bons estudos e linguagem simples (não acadêmica).

Fortaleza, 26 de novembro de 2010.
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sábado, 27 de novembro de 2010

Mário da Silveira em edição fac-similar


Edição fac-similar de Coroa de Rosas e de Espinhos, de Mário da Silveira, poeta precursor do Modernismo no Ceará. Livro póstumo, composto também da homenagem de amigos como Mário Linhares, Sales Campos, Gastão Justa e Sidney Netto. Compõem o volume No Silêncio da Noite (fragmentos), publicado em 1916, e "A Eterna Emotividade Helênica", conferência proferida por ele na Casa de Juvenal Galeno, em 1919. Nesta 2ª edição, de 126 páginas, patrocinada pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult), coordenação editorial a cargo de Raymundo Netto, há um “Estudo Introdutório”, de Tito Barros Leal; o “Prefácio à primeira edição”, de Antônio Sales; e um “Apêndice”, ensaio de Edigar de Alencar.


Mário da Silveira nasceu em Fortaleza, Ceará, em 17 de setembro de 1899. Filho de Raimundo da Silveira Gomes e Teodolinda Matos da Silveira, estudou nos colégios Nossa Senhora do Carmo e no Instituto de Humanidades. Grande leitor de clássicos, erudito e precoce, publicou, em 1916, No Silêncio da Noite: fragmentos (de um de seus poemas) pela Tipografia de Irmãos Jatahy. Em 1919 realizou a conferência "A Eterna Emotividade Helênica", na programação da Casa de Juvenal Galeno. Em breve passagem pelo Rio de Janeiro, trabalhou como secretário de João do Rio, em A Pátria, cultivando amizade com Raul de Leoni e Ronald de Carvalho. Em 1920/21, bem antes da Semana de Arte Moderna em São Paulo e da chegada, às livrarias, de Luz Mediterrânea, de Raul de Leoni, escreveu o inquietante poema “Laus Purissimae”, composto não somente de versos polimétricos, mas de versos livres, o que o credencia como legítimo precursor da corrente modernista no Ceará. Em 1921 retornou a Fortaleza e, neste ano, na noite de 22 de julho, com pouco mais de 21 anos, foi alvejado por cinco tiros, na Praça do Ferreira, o “coração da cidade”. Coroa de Rosas e de Espinhos foi publicado (1ª edição) por amigos e admiradores, após a sua morte, numa tiragem de apenas 500 exemplares.
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A cidade das casas abertas (Ádlei Carvalho)

http://adleicarvalho.blogspot.com/




Era uma rua torta

Que eu varava ligeiro

Atrás das andorinhas

E toda a gente assistia

Das poltronas e varandas

Porque naquela cidade

As portas e as janelas

Passavam os dias abertas

E só se fechavam à noite

Por causa dos pernilongos.



Nada naquele lugar

Oferecia perigo

A não ser o de criar

No espírito aprendiz

A ingênua fantasia

De um mundo sem paredes

E corações sem tramelas

Repletos de ruas tortas

E bandos de passarinhos.


(À cidade de Ferros - MG)
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sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A última revolta de Jesus Cristo (Rogers Silva)

(baseado numa história que tudo indica ser real)



Para Sinvaldo Jr,
que sempre achou que Jesus deveria ter morrido por algo melhor.

Doía, muito doía, e não havia nada que pudesse fazer para estancar o sangue, que escorria. A impotência doía. Doía e não enxergavam, não viam – ou não queriam ver? Doía e não era dor pouca, pois em todos os momentos se vira sozinho, todos desapareciam, sua única companhia era o desgosto, era. As aves no céu voavam indiferentes. E doía. Agora percebia enfim que doía, e não só percebia como sentia agora todas as dores passadas, agora. A solidão. A ausência machucava, doía. A ferida aberta, e os vermes vindouros. As mãos doíam, e muito. As pernas doíam, e muito. O tronco doía, muito. A flechada, os cuspes, a coroa, os espinhos – tudo doía. Os sarcasmos feriam, e doía. Os risos. Os socos tão-somente nesse instante sentia, e doíam, como socos dados em vão, porque em vão foram. Apenas serviram para aumentar a dor. A hostilidade. Valeria o sacrifício, valeria? O sol quente. O céu claro. A vontade de urinar doía. Os rins doíam, sobretudo. O suor que sujo escorria. O sal. O fel. O mau hálito.

Tristeza de escritor (Francisco Miguel de Moura*)

(Poema colhido em Revista Cirandinha: ver link ao lado)

(O poeta e a solidão)


quis recolher as emoções mais raras

de ternura, de amor, nos livros meus.

escrevi-as nos dias - noites claras -

nas caladas da vida, o' santo deus!


chorei dores daquelas sem aparas,

como sofrem, sem culpa, tantos réus

vivi vidas sem nome, de tão caras

como suster a fé entre os incréus.


tanto trabalho e tanta luta em vão!

frutos virgens apanho em meu declive

e ofereço aos que passam. nem se dão...


por tudo, uma palavra nunca tive,

nem de consolo nem de compaixão.

tristezas de escritor só ele vive.

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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Portal 2001: Ficção, sim (Nilto Maciel)


Portal 2001 é um livro de contos. Pode ser lido como uma antologia de narrativas curtas. Na capa, apenas o nome (título). A segunda folha traz uma apresentação (prefácio) por Nelson de Oliveira, que anuncia: “Este é o quinto de seis portais: Solaris, Neuromancer, Stalker, Fundação, 2001 e Fahrenheit”. Logo, não se trata de livro. Em um texto de divulgação do empreendimento vem a explicação: “Projeto Portal é uma revista de contos de ficção científica com periodicidade semestral, editada no sistema de cooperativa. A pequena tiragem — duzentos exemplares de cada número — será distribuída entre acadêmicos, jornalistas e formadores de opinião. Serão no total seis números (de papel e tinta, não online). Cada número da revista homenageia, no título, uma obra célebre do gênero: Portal Solaris, Portal Neuromancer, Portal Stalker, Portal Fundação, Portal 2001 e Portal Fahrenheit”. Por isso, não há ficha catalográfica, indicação de editora, etc. Apenas os créditos: data (inverno 2010) e nomes dos responsáveis pela publicação, como o de Nelson: Coordenação editorial. Em outra comunicação há esta descrição sucinta: “São 31 narrativas sobre novas tecnologias, viagens no tempo, ciberespaço, telepatia, contatos imediatos do terceiro grau, pós-apocalipse, utopias e distopias, de 16 autores contemporâneos”. Ou seja, composições de ficção científica.

Mas o que é ficção científica? Para Wilson Martins, “A chamada ficção científica, que não é ficção nem científica, tampouco alcança os planos da literatura porque nela a função catalítica do estilo é, por definição, posta à margem como desprezível”. Pois Tibor Moricz (que não tem o prestígio do intelectual considerado por muitos como o último crítico brasileiro por excelência), em “Gênero X Mainstream” (http://esooutroblogue.wordpress.com), faz a seguinte observação: “A novela A invenção de Morel, do Bioy Casares, foi desde o início tida como uma obra artística perfeitamente canônica, de um dos maiores autores argentinos. Mas de uns tempos pra cá, e cada vez mais, tem gente dizendo que ela é, também, uma obra de ficção científica. O Poe, por exemplo, no início, quando ainda era vivo, andando bêbado pelas ruas da Filadélfia em busca de um trago, era mais um escritor de gênero (não havia ainda essa concepção naquela época, mas era isso o que ele era) e depois da sua morte, e a partir da importância que Baudelaire deu a ele na França, traduzindo seus textos e escrevendo ensaios sobre ele, promovendo seu nome, passou cada vez mais a ser um mestre da Literatura com “L” maiúsculo, respeitado e incontestado, até ser completamente deglutido pelo Cânone”.

Essa mudança de status se dá ao longo do tempo. Assim como A invenção de Morel (Bioy Casares) “desceu um degrau”, Poe subiu. Edifício literário como o de Uilcon Pereira, por exemplo, alcançará algum dia o Cânone? Ou ficará no limbo: nem popular, nem canônico?

Os males ou os defeitos da ficção científica, o que a afasta do Cânone assim como do mainstream, sua pobreza (como um todo, ressalvadas as peças mais louvadas pela crítica), assim como (em menor grau) da literatura fantástica, sua penúria talvez esteja no distanciamento que o narrador guarda (nelas) de seus semelhantes, dando mais ênfase a objetos (máquinas, naves, etc.), ao espaço sideral e viagens pelo Cosmos, em detrimento dos problemas pessoais (humanos) dos personagens. O leitor se vê diante de seres sem estofo, ocos, quase máquinas, “sem alma”, sem sentimentos, inumanos. Em consequência, a trama foge dos seres e suas ações e sentimentos para se voltar para o espaço, as coisas (espaçonaves), medidas, velocidade, etc. A ação é desvinculada do humano, dos dramas psicológicos. Só mesmo escritores mais criativos conseguem fazer com que a “coisa” sobrenatural e o espaço de atuação do alienígena ou do ser irreal não substituam a pessoa, como na literatura fantástica (o Horla, de Maupassant) ou em José J. Veiga (a estranha máquina extraviada).

Porém, à medida que os cultores desse gênero se aproximam dos modelos da literatura canônica (Casares, Poe) – pela técnica e pelo tratamento literário dos temas, das tramas, etc.), sua “ficção científica” se revela como ficção, como literatura e perde o rótulo renegado pelos acadêmicos e críticos.

Braulio Tavares, no conciso “A república do recurso infinito”, lembra Kafka ou o mundo ficcional de 1984 (Orwell) e alguns clássicos da ficção científica. Em “Universos tangenciais (improviso)”, lê-se um sonho dentro de outro, e este de outro. “Aquele de nós (improviso)” é uma maravilha. Veja-se o epílogo a um tempo metaficcional e filosófico: “Ele sabe que todos os seus semelhantes são ficções, e que ele próprio não passa de um Terminal através do qual se manifesta a Nossa existência.”

Brontops Baruq, com “Planetas invisíveis: Diana”, segue a mesma linha de Braulio. Algumas vírgulas de menos não o impedem de ser muito criativo, além de ferino crítico da sociedade moderna. “Rebobinados” é ótimo como FC: a humanidade é a mesma aqui e agora (presente), nos idos da Roma Antiga (passado) e nos tempos fora da Terra (futuro). Onde houver homem, haverá “humanidade”, isto é, ódios, amores, ciúmes, inveja, todos os chamados pecados. E assim Baruq se distancia do descritivismo científico.

De Claudio Parreira é o estranho “Além do espelho”. Trata da solidão, o que o humaniza e o torna próximo da grande literatura. O drama não se dá no interior de uma nave nem em outro planeta. Ocorre na Terra, na famosa Rua Augusta, São Paulo: “Estava na padaria havia pelo menos oito cervejas, ou quatro conhaques, vai saber”. (...) “A única coisa que sabia de fato, que sentia como um prego nas costas, era sobre a solidão. A sua solidão. Tão sólida quanto o balcão repleto de garrafas”.

Na mesma pegada vem Daniel Fresnot. Em “Exit”, o clima é de tragédia no espaço, em competição pela chefia da nave. E ainda o problema da solidão: “Agora estamos os dois flutuando fora d nave e o problema é que não há mais ninguém lá dentro para nos abrir a porta!” (...) “portanto, vamos morrer de sede.” Em sentido amplo, “A vida sexual dos dinossauros” é uma aula. Já em “Convenção” talvez se possa vislumbrar o próprio fazer Ficção Científica. Ricardo Delfin, em “Destino”, começa assim: “Prefiro estar morto...”. Em “Futuro do pretérito”, chama logo a atenção do leitor: “Eu me lembro de tudo como se fosse amanhã”. Em “Gazeta marciana”, o mundo de Marte se assemelha ao da Terra. O planeta vermelho num futuro (mas o que é futuro, presente, passado, tempo no espaço?) será como na Terra hoje. Outro Delfin (sinto falta de sobrenome), com “Sentinela”, mostra excelente composição na 1ª pessoa feminina, o que é raro. Basta ver que dos 16 contistas da publicação só há uma mulher: Maria Helena Bandeira, que, em “Neve e sanduíches”, lida com o fundamental humano, como na fala de Ingborg: “De que adianta continuar a viver se não temos lembrança de quem fomos?”. Outra constatação muito lida em FC: “Humanidade que há muito desapareceu, tragada pelo frio”. Outra peça muito estranha é “A gruta de Vênus”. “Eblon” é o paraíso. Em “Mãos de borracha” e “Quem sabe?” há diálogos e uma sentença paradigmática: “no mundo virtual de agora, ninguém tem controle sobre o que é real ou imaginário”. Colóquios também são bem utilizados por Marco Antônio de Araújo Bueno. Como em “Sem nome”, dividido em duas partes distintas: a primeira de conversações, a segunda uma narração ou um relato em primeira pessoa. “Arquivo truncado” vem na 1ª pessoa. Em “Seguimento dezenove” também há diálogos. Outro que se vale bem deles é Rodrigo Novaes de Almeida. Em “Contato Alpha 9” lê-se um delírio em frases curtas e diálogo direto. “Zaratustra” é curto e estranho, diferente dos demais da coleção.

Um dos epistílios da FC é a “brincadeira” (FC é, sobretudo, entretenimento) com o tempo. De Mayrant Gallo é “A paz forçada”: o drama se dá num futuro próximo e tem assim o início: “A nave surgiu no céu de um azul intenso” (...). Sid Castro, em “Prometeu acorrentado reboot”, se refere à nave Prometheus Vinctus, em travessia pelo hiperespaço. Vinha de um planeta solitário. Alusões a mitos gregos: Prometeu e Érebo. Belíssima alegoria. Luiz Bras, em “Primeiro de abril: Corpus Christi”, oferece como cenário uma cidade chamada Primeiro de Abril. O narrador brinca com personagens da ficção cinematográfica, como Capitão América, Capitão Gancho, Homem de Lata. Roberto de Sousa Causo, com “Arribação rubra”, nos leva ao planeta Reiboro e nos põe em contato com o humano professor Neftaim Zibeon.

Há muito de alegoria, principalmente na crítica aos humanos, na Ficção Científica, o que às vezes a afasta do puro entretenimento. Marcelo L. Bighetti, em “Novo início”, faz aparecer em cena um Adolfo Hitler imaginário a quem é apresentado “um pequeno e mirrado ser humanóide”. A seguir, relata-se uma viagem ao passado (em FC viagem é, quase sempre, na direção do futuro) e a chegada de colonizadores ao Brasil de 1500. Essa viagem ao futuro se vê em Rogers Silva. Lê-se em “Amor-perfeito”: “Quando o Apocalipse sobreveio” (...). Uma novidade (para mim) é o tratamento dado ao tema do homossexualismo: “não porque sou ingênuo ou exagerado, mas apenas porque te amo”, diz um personagem a outro (anjo Gabriel e Lúci). Além disso, Rogers utiliza uma das técnicas da nova (?) narração: um narrador cede a voz a outro, mudando o ponto de vista.

Um dos momentos áureos da coletânea está em Mustafa Ali Kanso, principalmente com “Herdeiro dos ventos”. O protagonista, que nasceu prematuramente, “em um caderno amarrotado começou a ensaiar seus primeiros contos envolvendo fantásticas máquinas voadoras e extraordinárias viagens para a lua” e “tinha o pérfido costume de ler”. Mais adiante, “como todo bom escritor, a despeito das evidências, desafiou o que era correto e continuou voando.” Até que decidiram “acorrentá-lo a uma bola de ferro.” É composição fantástica belíssima. Em “Uma carta para Guinevere” há algo de romantismo nos tempos das viagens cósmicas.

Para finalizar: Portal 2001 é bom entretenimento, sobretudo para o leitor de Ficção Científica, exibe “textos” muito próximos da literatura canônica e, portanto, é ficção.

Fortaleza, 21 de novembro de 2010.
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Ronda (Silmar Bohrer)



Andei rondando a noite

assim ao léu, sem intentos,

só ouvi a voz dos ventos

ventanejando com açoite.


Barra do Saí
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terça-feira, 23 de novembro de 2010

Os olhos da minha mãe (José Carlos Mendes Brandão*)

(Extraído de http://novapoesiabrasileira.blogspot.com/)


Nasce uma flor nos chifres da vaca,

Uma fonte de leite puro muge no pasto.

O orvalho da aurora me purifica.

Brotam da memória um bezerro e um touro

Voando sobre as árvores da infância.

Onde o cavalo do meu pai?

Onde o grito retumbando como o trovão?

Os centauros celestes fazem chover

Pétalas do delírio e borboletas azuis.

Um peixe curioso espia das locas na água verde

Do ribeirão correndo no fundo do pomar.

O eterno dorme ao meu lado como um cão.

Minha mãe chega à porta com pássaros nos ombros

E me mostra a face de Deus nos olhos.

*José Carlos Mendes Brandão nasceu em Dois Córregos, SP, em 28 de janeiro de 1947, e hoje vive em Bauru, SP. Publicou O Emparedado, Exílio, Presença da Morte, Memória da Terra, Poemas de Amor e O Silêncio de Deus. Ganhou os prêmios “Estadual de Literatura” (GB), “José Ermírio de Moraes”, do Pen Centre de São Paulo, para melhor livro de poesia do ano, V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, Brasília de Literatura, Nacional de Literatura “Cidade de Belo Horizonte” (2000, por um romance inédito, e 2002, por um livro de poesia também inédito). Tive a indizível alegria de ser seu aluno, no distante ano de 1984, no Escolástica Rosa, em Santos. Para conhecer mais da obra de Brandão, visite http://poesiacronica.blogspot.com/

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O grito de Pasolini (Manuel Soares Bulcão Neto)


Com o advento da pecuária, e no processo de triagem dos animais que hoje constituem os nossos gados (caprino, ovino, bovino…), os homens sacrificavam os ariscos e mantinham os mansos e gregários. Konrad Lorenz, fundador da etologia, ao estudar este procedimento, constatou que as reses desta forma selecionadas conservavam, na idade adulta, muitos caracteres infantis, tanto fisionômicos (olhos grandes, crânio bulboso, maxilar mais retraído…) como afetivos e comportamentais. Ora – pensou o cientista –, na natureza, os filhotes de mamíferos são, em geral, mais dóceis, sociais e obedientes a comandos externos que os espécimes maduros. Até as crias de animais de hábitos solitários, como o jaguar, são sociais, visto que dependem da genitora e dos seus irmãos de ninhada. Concluiu, então, que o infantilismo genético-constitucional – i.e., decorrente de mutações nos genes reguladores do desenvolvimento que começa na fecundação – foi o critério utilizado pelos pecuaristas neolíticos. Em miúdos: o processo de domesticação se deu por meio da infantilização. Este fenômeno biológico, Lorenz denominou "neotenia".

O etólogo, entretanto, foi mais longe: sustentou que a neotenia também se dá de modo espontâneo, por seleção natural, consistindo numa das vias filogenéticas de socialização dos vertebrados. A propósito, são espécies altamente infantilizadas e gregárias: o cão selvagem, o macaco de Gibraltar (em tudo parecido com um babuíno jovem) e o bonobo (chimpanzé-anão).

E quanto a nós, Homo sapiens, o mais social dos animais, bicho "domesticado" pela cultura? Decerto que nosso neocórtex é produto de um desenvolvimento acelerado, não de um retardo. Algumas de nossas características, todavia, são claramente neotênicas. Com efeito, um feto desenvolvido de chimpanzé - Pan troglodites - assemelha-se bastante a um homem adulto: corpo pouco peludo, o semblante reto e uma caixa craniana grande relativamente à face. Demais, retemos das crianças o gosto por jogos e brincadeiras, a curiosidade exacerbada (que tantas vezes nos põe em perigo ou em situação de angústia), a capacidade de aprender…

Outra estrutura fenotípica que se manteve subdesenvolvida em nossa espécie é o sistema límbico: sede neuronal das emoções. Sim, é provável que o principal traço infantil que herdamos de nossos ancestrais consista naquele afeto comum a todos os mamíferos jovens: a dependência psíquica na relação com seus genitores, principalmente com a mãe. De fato, somente entre nós e nos bonobos a relação genitora-progênie dura a vida toda. - Nos anais da primatologia, há registros de chimpanzés-anões "adultos" que, não suportando o falecimento da mãe, em pouco tempo adoecem e morrem. (Complexo de Édipo?)

Já os humanos, ao contrário dos bonobos e graças a nossa capacidade ímpar de abstração, podemos preencher o buraco deixado pela morte ou falhas dos pais – estes são tão infantis e desamparados quanto os filhos – por equivalentes simbólicos: Deus-Pai, Mãe de Deus, Pátria-Mãe, a Razão maiúscula, as leis do (mater) ialismo histórico… em suma, qualquer coisa grande que explique nossa origem, aponte nosso destino e nos ajude a discernir o certo do errado.

Por fim, como me disse a psicanalista Maria Helena Cardoso, "a mãe é o maior órgão do corpo humano". Ora, quando a dor física é excruciante, o espírito se identifica cabalmente com a matéria: o corpo e, por conseguinte, com seu órgão mais importante. Foi o que ocorreu, presumo, com o escritor e cineasta Pier Paolo Pasolini no momento do seu assassinato. De acordo com o depoimento de Valdetti, suposta testemunha, enquanto era brutalmente espancado – por um bando neofascista ou garotos de programa – Pasolini, como uma criança órfã ou perdida, apenas gritava: "Mamma! Mamma!…"
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Mais ficção científica com Portal 2001 (Taize Odelli*)

(Extraído de http://rizzenhas.com/)




Para celebrar a ficção científica e, ao mesmo tempo, divulgar novos escritores, foi criado o Projeto Portal. Trata-se de uma revista distribuída gratuitamente entre ávidos leitores amantes do gênero sci-fi dividida em seis volumes semestrais que homenageiam grandes escritores e obras. A última edição organizada por Nelson de Oliveira foi a Portal 2001, referindo-se, claro, a 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Entre passado e futuro, monstros e humanos, vemos diversas abordagens da ficção científica que juntas podem compor uma bela viagem pelo espaço.

Os contos que compõem essa edição do Projeto Portal são variados não apenas na abordagem, cenários e personagens, mas também na própria forma com que são escritos. Bom exemplo disso são os textos de Brontops Baruq, que diferem entre eles mesmos. Como uma das melhores partes da revista, Brontops monta dois contos inusitados e, justamente por isso, divertidos. Em Planetas Invisíveis: Diana, fala de um povo que se miniaturiza para resolver os problemas de falta de recursos do lugar onde vivem. Conforme novos conflitos surgem, eles diminuem ainda mais. O outro conto é Rebobinados, um divertido diário de um condenado escolhido para uma viagem intergaláctica, contando a aflição de estar ao lado de um criminoso sexual.

A diferença entre os textos está inclusive na forma com que são escritos. Em Planetas Invisíveis: Diana, Brontops divide pequenos capítulos dentro do conto baseado nas visitas que o personagem/narrador fez ao povo em miniatura. Já em Rebobinados, ele usa frases curtas e numeradas, repetindo-as de forma que montem o texto e nos passe a ironia do personagem preso em uma nave esperando virar a “namoradinha” de seu companheiro de viagem. Ambos os contos terminam com uma dose de sarcasmo que garante sucesso ao texto.

Outro destaque em Portal 2001 é o texto de Daniel Fresnet, Exit, onde explora o orgulho de suas personagens também em uma missão espacial, fechando o conto de forma trágica, porém cômica. Em contrapartida, Rodrigo Novaes de Almeida apresenta textos mais densos, sem parágrafos nem indicação de fala, trabalhando dentro desse espaço diversas personagens. Apesar de curtos, exigem muito do leitor, pois a compreensão do texto está totalmente ligada ao que ele deduziu durante a leitura.

Já Maria Helena Bandeira usa a fórmula curta e leve para falar de novos seres e planetas, com ou sem a participação de humanos. São textos leves e bem escritos, e por isso mesmo poderiam ser mais longos. Com certeza a autora teria ainda mais informações a incluir em suas criativas histórias.

Até aqui, todos os autores trataram do futuro, mas Marcelo L. Bighetti resolveu ambientar sua trama no passado. Voltando à Alemanha da Segunda Guerra Mundial, em Novo Início somos apresentados a Hitler lembrando de momentos de sua vida ligados a experimentos feitos por nazistas. Enquanto narra os flashbacks do líder, o conto nos mostra um grande grupo de casais sendo treinados para uma missão secreta que transporta todos ao passado. Esse é o conto mais estranho do livro, por não haver uma relação direta entre Hitler e a experiência dos nazistas, que levam os casais ao Brasil de 1500. Falta algum elemento para ligar um momento ao outro e dar sentido à história.

O humor pareceu dominar essa edição. Portal 2001 ainda conta com bons textos como Primeiro de Abril – Corpus Christe, de Luiz Brás, ambientado em uma cidade tomada pelas máquinas onde vemos super-herois revividos para combatê-las. Outro destaque é o texto de Fresnot, onde apresenta uma nova teoria que explica a extinção dos dinossauros, tomando como causa a falta de apetite sexual dos animais machos, contando tudo em forma de aula universitária. E também não posso deixar de falar dos textos de Ricardo Delfin, também curtos e que envolvem as mais diversas situações escritas de várias maneiras, como as manchetes de um jornal de Marte em Gazeta Marciana, que narram um dos conflitos do planeta.

Quem adora ficção científica deve conseguir pelo menos uma edição do Projeto Portal. É garantia de bons textos e de grande diversidade de histórias sci-fi. Em Portal 2001, os autores passam claramente a ideia de que a ficção científica pode ser trabalhada das mais diversas formas, e vemos que a maioria delas convencem como história.

• Pequena aprendiz de jornalista que se meteu a fazer resenhas porque estava com vontade de escrever alguma coisa. Além de ler, gosto muito de ficar procurando coisas interessantes na internet. Geralmente encontro no fórum Omega Geek e no Meia Palavra. Também faço resenhas para o Amálgama e o Blog do Meia Palavra, já colaborando com o site Artilharia Cultural e Ambrosia. Penso que, se tivesse talento, viraria cantora, já que amo música e não consigo ficar um dia sem ouvir pelo menos uma. Mas, no fim, literatura é o que mais me atrai.
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domingo, 21 de novembro de 2010

Prima Notturna (Valdemar Neto Terceiro)

http://infimoverde.blogspot.com/




(A morte de Sardanapalus, de Eugéne Delacroix)


Pois que o vinho seja amargo

E as ilusões, doces como o fel

Que me cai do teu vasto céu

Vindo de si o etéreo pecado;



Não mais! - deixa-me, fardo

Que me veio como doce mel

Do fundo e escuro olhar teu

Que tinha por mim, amado;



E guardo o sono derradeiro

Caído pelas vielas vis e nuas

Onde desgraço-me inteiro;



Pois que percam-me as ruas,

Lá, minh'alma clama ceifeiro

Por entre lembranças tuas.





Valdemar Neto Terceiro

Ipu, 15 de novembro de 2 mil e 10

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Um olhar (Ádlei Carvalho)

http://adleicarvalho.blogspot.com/


(Quadro de Chico Lopes)


Quero ainda algum tempo

Para cantar mais canções,

Contar mais estrelas,

Plantar mais flores

No coração,

Trilhar mais versos,

Romper barreiras,

Distribuir outros sorrisos,

Reler “O Pequeno Príncipe”,

Respirar mais verdes

E verdades,

Multiplicar afetos.



Tempo para aprender a olhar

Além dos outros olhos,

A estender incondicionalmente as mãos,

A ouvir mais que dizer,

A sofrer sem murmúrios

E seguir adiante.



Tempo para beijar a minha mãe,

Amar a minha mulher,

Abraçar meus irmãos,

Orar a Deus por meu pai.



Tempo para galgar degraus,

Subir em árvores

E montanhas,

Sentir a brisa,

Correr descalço,

Ouvir um samba

De Chico Buarque,

Aprender a dançar tango.



E quando eu me for

E o tempo já não fizer sentido,

Quero saber que tudo

O que vivi e desejei ter vivido

Não durou mais que o instante

De um olhar.
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sábado, 20 de novembro de 2010

Conversa com Caio (Parte 3)


NM – Como você recebeu a indicação de seu livro Trapiá para o vestibular da Universidade Federal do Ceará e como se sente com a 4ª edição de O sal da terra? Para nós, seus amigos, admiradores, leitores, sua obra merece muito mais que indicações para concursos e reedições. Você se sente pouco prestigiado? É assim mesmo? Um dia reconhecerão o seu imenso valor?


Caio – Não sei nem como de fato lhe responder. Há muitos prós e contras. Dou alguns rápidos exemplos. O romance O sal da terra está com duas adaptações para o cinema. Esteve a ponto de ser filmado. E não foi. Está com tradução pronta para o francês e ainda não publicado na França, embora já tenha saído na Itália e Líbano. O meu livro de contos O Casarão, que ganhou o Jabuti de 1975, da Câmara Brasileira do Livro, esteve a ponto de ganhar o prêmio Governador do Estado de São Paulo. Houve indecisão entre os jurados durante vários dias e perdi por um voto. Em compensação, o meu livro de contos Os meninos e o agreste, que ganhou o prêmio da Academia Brasileira de Letras, em 1971, ficou empatado com o livro da filha do Guimarães Rosa, Vilma Rosa, autora de Acontecências. Tristão de Ataíde, depois de dias, desempatou a meu favor. E assim muitos outros balanceios. Quando o Trapiá foi indicado para o Curso de Letras da Universidade do Ceará, claro que fiquei satisfeito. E fiquei mais ainda quando ele foi indicado no ano seguinte e alguns contos dele estão sendo filmados no Ceará. Então, meu amigo, quem se mete com letras passa por essas coisas. Vou lhe dizer uma, e não é modéstia: é meu feitio. Nunca me promovi nem lutei para conseguir alguma coisa nas Letras. O que veio recebi com agrado, mas sem exaltação, sem euforia, e não me pergunte por que... Nunca cogitei de entrar para uma Academia, embora pertença a uma Academia de Letras de Brasília, fundada por Almeida Fischer, ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, ao Pen Club, a uma Academia em Buenos Aires (e nunca fui lá)... e sócio-correspondente da Academia Cearense de Letras. É uma questão de temperamento. Se me oferecerem, muito bem. Do contrário, não perderei o sono. O que vale é que tenho amigos valorosos no País inteiro que, por um motivo ou outro, gostam do que escrevo. O resto, meus livros dirão por si no futuro. Mais só uma coisinha: o meu conto "O pato do Lilico", do livro Trapiá, está em 14 antologias de contos e sempre me pedem para publicar em outras. Vou acrescentar uma coisa que me agrada: fiz a apresentação de aproximadamente uns 300 livros e não fiquei rico. Se eu tocasse rock a conversa seria diferente. Sou muito apegado às minhas raízes. Estou em São Paulo há pouco mais de 50 anos e já voltei ao Ceará umas 90 vezes. Em breve estarei retornando à terrinha.

NM – Creio que tocamos nos pontos essenciais. Podemos dar por encerrada a entrevista. Porém, deixo com você o ponto final. Tem algo a dizer mais? Fique à vontade.

Caio – Creio que falei até demais, eu que sou sucinto em tudo, a não ser em bate-papos.
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Conversa com Caio (Parte 2)


NM – Depois de longos anos de leituras e escrituras (fale de suas primeiras leituras e também de suas primeiras experiências como "criador"), você se sente mais próximo do sonho (ou não era sonho?) ou todo caminho é o mesmo?: poeira, arbustos aos lados, céu nublado aqui, sem nuvens adiante, solidão. O homem se contenta com a solidão? Ou o escritor menos que o homem que apenas passa?


Caio – Creio que o escritor é um grande solitário. Não a solidão que se anula em si mesma. A outra, indefinível e talvez meio cósmica, que leva o escritor a escrever e outros se voltam às demais Artes. Eu, de minha parte, comecei muito cedo. E – curioso – desde muito jovem eu desenhava razoavelmente. Deixava perplexos os professores do primário e do seriado, no Liceu do Ceará. Intuitivamente, eu tinha muita noção de perspectiva. Um dia, no primeiro ano do seriado (hoje ginásio), o professor de desenho mandou que desenhássemos uma garrafa. Fui o único que desenhou a sombra da garrafa. Ele me perguntou quem me ensinou aquilo. Eu lhe disse que ninguém. Mas desviei-me para a escrita porque eu lia muito. Comecei escrevendo crônicas e poesias. Empolguei-me tanto que escrevi um romance em cadernos. Ainda os possuo. Eu tinha os meus 13 ou 14 anos. Li muito os livros de Karl May sobre o Far-West. O meu herói dava de chinelo em Tarzan. Não parei mais, abandonando em definitivo o desenho. Escrever é o meu destino. É o destino de quem traz consigo os demônios interiores e luta com eles a vida inteira. Nem por isto deixei de viver a vida plenamente. Brinquei, dancei, namorei, tomei umas e outras etc... A literatura é a minha sombra, o meu contra-espelho, pulsação da minha alma... O homem não se contenta com a solidão referida. A solidão do escritor é aquela outra, ilocalizável e que nos acompanha como um anjo bom ou mau. O que lamento é ter abandonado o desenho. Talvez eu não chegasse a ser um Portinari, mas teria pintado alguns quadros. Visito e me deslumbro com tudo que para mim é belo ou esteticamente diferente. Extasio-me com a música popular ou erudita. Talvez eu tenha aquele mal de que falava o compositor Ataulfo Alves: buscar a Arte em tudo... Fazer o quê? Parar?... Aí, sim, cairia na solidão que se anula em si mesma e me tiraria o sentido da vida.

NM – Você disse que escrevia para você mesmo, desde o início, adolescente. E nunca jogou fora os primeiros escritos, que quase sempre são meros exercícios. O que você lia nesse tempo? Queria imitar algum desses escritores? E depois, quando se sentiu certo de que escrevia bem, continuou lendo? Quem ou o quê? Então lia para quê? Por curiosidade ainda? Por necessidade de aprender mais? Por hábito? E hoje, a maior da obra (a sua) realizada, ainda lê? Para quê? Por quê?

Caio – Eu lia tudo que caía às mãos. Dos gibis aos livros de aventuras. Mas nunca li as obras do Tarzan. E – curioso – nunca procurei imitar ninguém, sem buscar originalidade, porque ainda não tinha parâmetros críticos. Mas sempre busquei uma certa originalidade, dar uma marca pessoal ao que escrevia. Daí, talvez, as quantas tolices que escrevi. O primeiro trabalho que publiquei, aos meus 11 ou 12 anos, foi uma croniqueta – “Ave, Maria”, na revistinha dos padres sacramentinos da Igreja de São Benedito, de Fortaleza, onde eu estudava catecismo. O padre Teófilo publicou a baboseira. Tenho comigo guardada. Começa assim: “A Ave, Maria é uma bela oração, senão vejamos:” e transcrevi a oração em baixo e assinei o meu nome. O padre publicou com destaque e eu me julguei igual aos melhores escritores que eu conhecia. Daí porque os amigos, quando conto isto, dizem que eu sou plagiário desde que comecei... Desde muito jovem eu já lia os regionalistas de 30. Curiosamente, porém, maravilhei-me com as obras de Lúcio Cardoso e de Cornélio Penna, escritores voltados para os conflitos interiores e as solidões humanas. E eu era tão jovem. No Ceará empolguei-me com os livros do Fran Martins e acabei, muitos anos depois, escrevendo a apresentação para toda a obra dele, a pedido do Dr. Martins Filho, Reitor da Universidade Federal do Ceará e irmão dele.
Por que eu lia e leio? Creio que vou viver eternamente lendo. Talvez porque isto se tornou a minha própria sombra. José Mindlin, que possuía uma das maiores e raras bibliotecas particulares do Brasil, costumava me dizer que não viveria sem os livros. Volto a repetir: vivo a vida, mas me encanto sempre com o que se escreveu e se escreve do passado ao presente. Volto sempre aos escritores medievais. Talvez por isto bacharelei-me em História. Minha leitura é muito variada e diversificada. Leio muito poesia, comento livros de poesia, e poeta não sou... li escritores de toda a América Latina, os norte-americanos, portugueses, franceses, russos etc. Se eu tiver de destacar um nome apenas que me sirva de símbolo do que seja escrever, não deixarei de citar, como cito sempre, o Mestre Machado de Assis. Fico por aqui.

NM – E ler-se? Você se lê? Faz modificações nos seus livros publicados? Ou, quando os publica, os considera definitivos? Dizem que Murilo Rubião escreveu pouco (pode ter escrito muito e publicado pouco), apesar de ter vivido muito, e suas poucas obras (contos) são as mesmas, com títulos diferentes. Reescrevia tanto que conseguia transformar um conto em outro. Você é mais pródigo (esbanjador de imaginação) e menos exigente?

Caio – Leio-me muito pouco. Talvez por medo. Sempre que me releio encontro coisas a modificar. Então deixo como está. De todos os meus livros reeditados, modifiquei pouquíssimas frases. Sigo aquilo que sempre afirmo: O livro é daquele instante e daquele tempo. Daí porque, ainda hoje, insisto com o poeta Francisco Carvalho para publicar os dois primeiros livros dele, que ele os considera muito fracos e tirou-os da relação das suas obras publicadas. Acho que não é por aí... Agora: é uma opinião pessoal. Leio e releio muito o que escrevo, mas antes de publicá-los. Há outros que se comportam diferente: Não se conformam nunca com o que escreveu e ficam modificando e modificando. Para mim isto artificializa um pouco a criação. O grande novelista Aníbal Machado, em cada edição do único livro dele acrescentava mais uma novela e fazia uma limpeza nas anteriores. Eis por que há escritores que publicam pouco e sofrem muito no ato da criação. Também não sou relaxado. Quando não gosto de um conto que escrevi, guardo-o na gaveta e vou relê-lo bem depois. Às vezes surgem reformulações novas e reescrevo o conto. Outras vezes não: permanece na gaveta. Mas publiquei, acabou. Parto para outra. Agora mesmo estou reeditando a 4ª edição do meu romance O sal da terra. A editora me pediu que o lesse e fizesse as modificações que quisesse. Li-o todo e tirei quatro ou cinco palavras. Sabe por quê? Eu não quis modificar o tempo em que foi criado. Sou exigente comigo mesmo. Mas um livro é um tempo e um momento criador.

(continua)

Conversa com Caio Porfírio Carneiro (Parte 1)

Nilto Maciel
(Caio Porfírio Carneiro)


Entre os dias 18 e 28 de outubro de 2010, conversei com Caio Porfírio Carneiro. De longe: eu em Fortaleza, ele em São Paulo. Não por telefone, mas por e-mail. Um escritor não pode ser entrevistado por jornalista, que quer informações. Escritor não dá informações. E, se as der, não as dará como as querem os jornalistas. A não ser que sejam informações para biografia. No entanto, minha intenção não é escrever biografia. Nem de Caio nem de outro escritor. Minha intenção é cutucar o entrevistado. Desnudá-lo, expô-lo como ser humano, como inventor, criador. Dizem que ficcionista (escritor, cineasta, compositor, pintor, etc.) não copia a realidade, por mais realista que seja. Caio é um realista. Mas também naturalista, surrealista, fantástico.


Caio Porfírio (de Castro) Carneiro nasceu a 1º de julho de 1928, em Fortaleza, Ceará. Dedicou-se muito moço ao jornalismo, na terra natal. Bacharelou-se em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza. Transferiu-se para São Paulo em 1955. Desde 1963 é secretário administrativo da União Brasileira de Escritores de São Paulo. Assinou a apresentação de dezenas de obras, dos mais diversos gêneros Alguns dos seus livros alcançaram várias edições. O romance O Sal da Terra foi traduzido para o italiano e árabe e adaptado em roteiro técnico para o cinema. Contos seus estão incluídos em duas dezenas de antologias do gênero e traduzidos para o espanhol, italiano, alemão e inglês. Caio foi agraciado, em 1968, com o Prêmio Afonso Arinos pela coleção Os Meninos e o Agreste. O livro de contos O Casarão recebeu, em 1975, o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e segundo colocado no Prêmio Governador do Estado de São Paulo. Menção Honrosa do Pen Clube de São Paulo.

Obras publicadas:
Trapiá (contos), Ed. Francisco Alves, Rio, 1961. Mais quatro edições posteriores: Coleção Saraiva, São Paulo; Editora Cátedra, Rio de Janeiro; Ribeirão Gráfica Editora, Franca, SP e Editora da Universidade do Ceará. O conto “O Padrinho” foi traduzido para o alemão e o “Come-gato” adaptado para a televisão.

Bala de Rifle (novela policial), em capítulos no jornal Última Hora, SP, 1963. Não levada ao livro.

O Sal da Terra (romance), Ed. Civilização Brasileira, Rio, 1965. Mais duas edições pela Editora Ática, São Paulo e uma pela LetraSelvagem. Traduzido para o italiano e árabe. Adaptado em roteiro técnico para o cinema.

Os Meninos e o Agreste (contos), Ed. Quatro Artes, SP, 1969; 2ª edição pela mesma editora, em convênio com o Instituto Nacional do Livro. Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras. Menção Honrosa do Prêmio Governador do Estado de São Paulo.

Uma Luz no Sertão (romance-reportagem), Editora Clube do Livro, SP, 1973; 2ª edição, Editora Claridade, São Paulo, 2007.

O Casarão (contos), Ed. do Escritor, SP, 1975. Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, S. Paulo. Menção Honrosa do Pen Clube de São Paulo.

Chuva – Os dez cavaleiros (contos), Ed. Hucitec, SP, 1977. Adaptado em roteiro técnico para o cinema.

O Contra-Espelho (contos), Traço Editora, SP, 1981.

10 Contos Escolhidos, Coleção 10 Contos - Ed. Horizonte, Brasília, 1983, em convênio com o Instituto Nacional do Livro.

Viagem sem Volta (contos), Ed. Seiva, SP, 1985.

Quando o Sertão Virou Mar... (Lit. Juvenil), Cia. Ed. Nacional, SP, 1986.

A Oportunidade (novela), Ed. Mercado Aberto, P. Alegre, 1986.

Profissão: Esperança (Lit. Juvenil), Ed. do Brasil, SP, 1986.

Da terra para o mar, do mar para a terra (Lit. Juvenil), Ed. FTD, SP, 1987. Várias edições.

Três Caminhos (novela), Ed. FTD, SP, 1988. Várias edições.

Dias sem Sol (novela), Ed. Illa Palma - S. Paulo/Palermo, Itália, 1988.

Rastro Impreciso (poesias), Ed. Scortecci, SP, 1988.

Os Dedos e os Dados (contos), Ed. Pontes, Campinas, S. Paulo, 1989.

Primeira Peregrinação (reminiscências), Ed. Scortecci, SP, 1994.

A Partida e a Chegada (contos e narrativas), Ed. Toda Prosa, SP, 1995.

Cajueiro sem Sombra (Lit. juvenil), Ed. Saraiva, SP, 1997. Várias edições.

Mesa de Bar (quase diário), Ed. Toda Prosa, SP, 1997.

Contagem Progressiva (memórias), Universidade Federal do Ceará, 1998.

Perfis de Memoráveis (autores brasileiros que não alcançaram o terceiro milênio), RG Editores, SP, 2002.

Uma Nova Esperança (Lit. Juvenil), Editora Nativa, (em parceria com Maria José Viana e Paulo Veiga), SP, 2002.

Maiores e Menores (contos), Alpharrábio Edições, Santo André, SP, 2003.

A Vocação Nacional da UBE – 62 Anos (histórico da UBE desde a sua fundação), em parceria com J. B. Sayeg, RG Editores, SP, 2004.

Gramíneas (miscelânea literária), Ed. Scortecci, SP, 2006.

Respingos de uma viagem (opúsculo literário), SP, 2008.

O copo azul (contos), Ed. Scortecci, SP, 2009

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Nilto Maciel – Por que você continua escrevendo, se as editoras brasileiras não investem em escritores brasileiros, se a grande maioria dos livros publicados no Brasil por brasileiros (em pequenas edições de 100, 200, 500 exemplares) é distribuída apenas a "amigos e parentes"? Como anda o seu desânimo resultante disso? Ou você não vê assim?

Caio – Escrevo por uma necessidade imperiosa que trago comigo desde que me conheço nas Letras, desde os primeiros rascunhos que escrevi, publicados ou não. Antes do meu primeiro livro – Trapiá (de contos) – eu já escrevia muito para mim mesmo e para o fundo das minhas gavetas. Com um detalhe: nunca rasguei nada que escrevi. Tenho comigo uma tonelada de tolices, com algumas coisas razoáveis no meio. Claro que a publicação é fundamental, mas não é tudo. Talvez venha das minhas raízes. O meu avô materno, muito culto, era primo do escritor Adolfo Caminha. O meu pai foi um intelectual frustrado porque nunca publicou nada, mas era amigo de escritores da época, inclusive do poeta Antônio Sales, que conheci pessoalmente. Ele já velho e eu menino. Creio que não conseguiria viver sem escrever. Creio que se dá o mesmo com quem pinta, compõe, esculpe... Fazer o quê? Com editora ou sem editora, com a velocidade dos vôos da internet, sem sabermos onde vamos parar, só existe um caminho: continuar fazendo o que se trouxe do berço: escrever e escrever.


NM – Se escrever é uma necessidade quase fisiológica, você não vê a arte ou a obra de arte como uma "coisa do espírito"? O fazer é o espírito? Ou a alma, como querem outros? É possível "fazer arte" sem realizar obra de arte? Numa sequência: "necessidade imperiosa" ou fisiológica, criação/realização da obra, a obra feita, a fruição da obra (leitura). É assim?

Caio – Como afirmei anteriormente, escrever é uma necessidade imperiosa aos que possuem sensibilidade e ímpeto de "criar", não importa se com bons resultados ou não. O homem da pré-história traduzia isto através das belezas rupestres. Há os que não escrevem nada, ou só escrevem o necessário, e vivem bem. Refiro-me aos que, por dom ou castigo, trazem isto do berço. O ótimo compositor popular Ataulfo Alves costumava dizer que a Arte, para ele, estava em tudo, até no ato de calçar os sapatos. Quem escreve, sentindo por este lado, é, como afirma o escritor Rodolfo Konder, "ele e seus demônios." Creio que para uma pergunta como esta não há, conforme disse, uma resposta plausível e completa. É o homem tentando somar alguma coisa ao imediato e palpável. Ou, como dizia o escritor Lúcio Cardoso, a eterna luta contra a morte. Perguntaram a Picasso, ele já no fim da vida, famosíssimo, o que era Arte, e ele respondeu: "Se eu soubesse o que é Arte eu não diria para ninguém." Creio que é a busca de alguma coisa que se some àquilo que se vê, sente-se etc. É uma espécie de libertação dos demônios referidos. É o instinto de perpetuar-se para além do sopro da vida passageira. Na verdade, não visualizamos bem o que isto seja. E, talvez por isso, tentamos... tentamos... tentamos...

(continua)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Pintar também é escrever (Tânia Du Bois)


Os poetas produzem belos poemas, mostrando as ¨belas cores¨ que o mundo tem. Algumas palavras adquirem poder imaginário, como a arte de pintar, que também é escrever, que contamina o pensamento e traduz em imagens, cores, ideias e em ideais da sociedade. Posso imaginá-la na sua poética, pois, “um pintor de talento é sempre um escritor”, como disse P. M. Bardi e como demonstra Pedro Du Bois, em seu poema:

“colorir palavras telas foscas / espremer textos com bisnagas /

jorrar tinta jorrar letras // fazer estrofes murais cimentados /

rasgar papel em lápis espátulas / colocar em viés ideias literárias //

... // espatular versos ziguezaguear temas / fechar cadernos cobrir telas /

esperar o tempo certo / para que sequem”.

Os artistas plásticos possuem a forma velada de cores que se incorpora num jogo de formas oriundas da cor que cria ritmo. Como disse Paul Klee (1879/1940), “A cor me possui não preciso conquistá-la. Somos uma só”. Ele conciliava arte e música, pois no seu ateliê, no lugar das telas, partituras; transformava a palavra e o gesto. Segundo Klee, a função da imagem é exprimir um sentido, como vemos em Murilo Mendes,

“Qual a forma do poeta? / Qual o seu rito? / Qual sua arquitetura?”

Pintar é conhecimento e, quando revelado, o segredo das formas nos é imposto na condição de observador, para que o espírito e a inteligência se relacionem na sua leitura.

A arte tem servido para ilustrar essas ideias e entender mundos mais inatingíveis. Mas é a leitura cuidadosa e penetrante que vai tentar dizer algo da impressão que a mesma produz a partir do que "lemos" ao vê-la. Ela também nos enriquece culturalmente, revelando os sentimentos, os comportamentos e os valores: o que é visto, sentido e discutido.

Pintar também é escrever, por vezes gera inquietação, chega a uma realidade que faz do artista um criador com sensibilidade para exprimir em palavras, traduzir as cores e formas.

“Ela é uma flor. / Como pode? / Não tem a beleza, a suavidade,

nem / mesmo a cor. / Como pode? / Não se chama Rosa,

Margarida, ou Hortência. / Serão os espinhos? / A amargura,

o ressentimento, o desdém, o tempo fixou. / Se nem mesmo

a essência, / como pode? / Ela é uma flor. / A linguagem

a transformou”. (Benedito Cesar Silva)
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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Sobre reflexões (Belvedere Bruno)

http://www.belvederebruno.prosaeverso.net/




Gosto de tomar decisões, mesmo que isso implique uma brusca mudança em minha vida. Sempre fui assim. Isso não significa que só tenha tomado decisões acertadas. Claro que errei, mas fiz questão absoluta de sempre decidir. E os erros me ensinaram, sem dúvida. Hoje, porém, mais do que nunca, estou bastante seletiva em relação a tudo. Não é qualquer coisa que prende minha atenção, não é qualquer assunto que me interessa, não é qualquer pessoa que me convence. E uma regra é básica: se não estou bem com alguém ou em algum lugar, retiro-me. O que posso esperar das pessoas é compreensão e respeito para com minhas atitudes.

Sempre dói saber que, por motivo fútil, se perdem amizades. Faço questão de conservar aquelas que realmente suportam mudanças: maremotos, vendavais, vulcões. A essas, dou-me por inteiro, pois provam que, acima de tudo, conhecem e respeitam o livre-arbítrio.

Atualmente, há em mim um forte desejo de alçar novos voos, percorrer outros caminhos, ousar. Jamais deixarei de ser assim. Sou estável nas amizades e gosto de saber quando há, de fato, reciprocidade, que independe de normas pré-estabelecidas, de opiniões sempre concordantes. Não! Existe a questão "individualidade". Por isso e por outras coisas sempre digo: sou única, como todo ser humano. Não existe uma pessoa idêntica a outra e esta é uma razão forte para que aceitemos as diferenças. Isso torna a vida mais rica.

Infelizmente, muitas pessoas não aceitam a verdade e lidam com a absurda meia-verdade. Não insisto em manter amizades (?) que o tempo provou não passarem de bolhinhas de sabão!

Acabei de tomar meu Amaretto on the rocks, que adoro. Estou lendo "O filho da mãe", de Bernardo Carvalho, pois é vital para mim estar com um livro, lendo um poema, ouvindo uma música, assistindo a um filme, ou escrevendo.

Fico por aqui. A caminho do curso de "Contadores de Histórias", convite maravilhoso que recebi de minha amiga Teresa Mello. Aliás, amiga há trinta anos. Isso prova que uma amizade verdadeira não morre. Ela ultrapassa vulcões em ebulição e ainda chega sorrindo. Brindemos!
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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Imortal em todos os sentidos (Simone Pessoa)

(Rachel de Queiroz – 17/11/1910 a 4/11/2003 –, estátua na Praça General Tibúrcio, Fortaleza)

Memórias e experiências de vida se entrelaçam. Quando contamos sobre as nossas, estamos relatando momentos de outras pessoas que por vezes nem se dão conta dos efeitos e impressões que deixam em nós ou consideram tão banais que nem os registram em suas memórias.

Meu tio Zé Pessoa contou, por exemplo, sua primeira e definitiva viagem de Sobral para o Rio de Janeiro nos idos de 1940 quando foi cursar medicina. A rigor, mais que uma viagem, foi uma odisseia. Durou 18 dias e envolveu ônibus, trem a vapor, barco gaiola e caminhão.

O comboio ainda se encontrava em Petrolina quando o dinheiro do então jovem estudante estava chegando ao fim. Como estava faminto, precisou gastar alguns tostões para enganar a fome. Se dirigiu a uma pensão e pediu um café com pão sem manteiga, pois era o que ele podia pagar. A garçonete pareceu irritada com o minguado pedido e atendeu ao jovem com rudeza. Trouxe uma caneca de café com um pedaço de pão quase seco. Faminto, meu tio pôs-se a devorar o pão que ele molhava no café para amolecê-lo.

Na mesa do lado, uma senhora elegante, na casa dos trinta e cinco anos, fazia uma lauta refeição e observava a cena do pobre estudante. Percebendo a fome mal suprida do jovem, fez sinal e o chamou para sua mesa. Ele, muito tímido, fingiu que não havia entendido. Ela, então, levantou-se, foi até meu tio e o convidou para a mesa dela alegando desejar companhia em sua refeição. Ele tentou recusar, mas ela estava determinada a resgatá-lo.

Resultado, meu tio se transferiu para a mesa da senhora, comeu pão fresco, queijo, ovos, tomou leite, suco, enfim, se fartou e armazenou energia para economizar na viagem. Durante a refeição, ele se restringiu a responder as perguntas dela e a ouvi-la. Uma mulher simples e espirituosa, porém elegante, de olhar atento. Por fim, ela o convidou para visitá-la em sua casa na ilha do Governador no Rio de Janeiro, onde oferecia um almoço aos sábados para amigos nordestinos. Admirado com a generosidade da distinta mulher, meu tio se despediu profundamente agradecido.

Na saída da pensão, encontrou um conterrâneo amigo da família, a quem contou o ocorrido apontando para a nobre senhora que continuava na mesa, agora, a fazer anotações. Quando o conterrâneo olhou e viu a dita mulher, arregalou os olhos e exclamou: Rapaz, tu não reconheceste? Aquela é a ilustre escritora Raquel de Queiroz!
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Construir (Pedro Du Bois)




O telhado impede

a natureza


o piso

concede aos pés

a maciez


as portas, bifurcações

do acaso: entrar

sair

ficar na soleira

voltado ao tempo

original da hora


janelas permitem observar

a rua pelo lado de fora.


http://pedrodubois.blogspot.com/
http://www.jornaldepoesia.jor.br/pedrodubois.html#bloco
http://vidraguas.com.br/wordpress/
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/
http://luis-eg.blogspot.com/
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terça-feira, 16 de novembro de 2010

(Alguns) versos marinhos (Silmar Boher)



Céu azul do pensamento,

ventinhos fazendo farra,

águas calmas, verso-intento

cá no cantinho da Barra.


Num eterno filosofando

vou então a excogitar,

a vida é o eterno avatar

que vamos emoldurando.


Os ventinhos, doces ares

da estação primaveril

trazem alaridos mil

na volúpia dos cantares.


Tarde nublada no mar,

ventinhos em romaria,

somos três a excogitar,

eu, os versos e a Poesia.


Vivo na vida impregnado

do rumor eterno dos mares,

dir-se-ia, rum(or)(ar)ejado

de bulícios e avatares.


Para a glória da Poesia

nos quatro pontos cardeais,

seguimos, eterna romaria,

eu e os versinhos banais.


Mares verde-azulados

na manhã segunda-feira,

queres queira, quer não queira,

vagam versos alumbrados.


Ventinhos andam rondando

a agitar os meus papéis,

são ventares ventanejando

os versinhos-ouropéis.


Vagam versos-maresia

cá na beirinha da praia,

até mesmo a essência gaia

anda ao léu em romaria.


Eivada de inspiração

a natureza aqui na Barra,

os ventos fazendo farra,

as águas uma doce canção.


Andam ventos-maresia

ali na beirinha da praia

insuflando essência gaia

com murmúrios de Poesia.


De vez em quando acordo

com um verso me chamando,

em súplicas, suplicando

para tê-lo em meu bombordo.

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segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Antes de Brant, Tieck e Fitzgerald (Nilto Maciel)

Não sou mais de comprar muitos livros. A casa está cheia deles. Além disso, li o essencial (o que será o essencial?). Talvez esteja dizendo bobagem. Pois Machado estudava grego, pouco antes de morrer. Ora, não sou gênio.

Mesmo não tendo mais o hábito de adquirir obras literárias, no final de outubro deste 2010, gastei dinheiro numa livraria e trouxe para casa A nau dos insensatos, de Sebastian Brant; 3 contos fantásticos, de Ludwig Tieck; e 24 contos de F. Scott Fitzgerald. Seriam minhas primeiras leituras de novembro. Qual o que! Pois mal abri o pacote, o carteiro gritou meu nome. (Sujeito polido. Pois outros costumam lançar por cima do muro os fardos artísticos que meus amigos me mandam. Por sorte – minha e dos livros –, há boa grama do lado de dentro do muro.) Corri na direção do portão e recebi três pequenos embrulhos: Viagem ao infinito, de Jorge Freire; Aconselho-te crueldade, de Fernando Fiorese; e Emoção atlântica, de Márcio Catunda. No outro dia, foi a vez de dois volumes de Tanussi Cardoso: Exercício do olhar e 50 poemas escolhidos pelo autor. Na mesma semana, chegaram Menino do bandolim, de Tobias Pinheiro; e 50 poemas escolhidos pelo autor, de Diego Mendes Sousa. Na manhã do dia 11, na Universidade Federal do Ceará, encontrei Rodrigo Marques e dele ganhei exemplar de Fazendinha. Antes de todos estes, recebi, de Eduardo Luz, Manual de bruxaria: introdução à obra crítica de Machado de Assis e Como fumaça erguidos, que comentei no dia 4 deste. Logo a seguir, Claudio Parreira me presenteou com Portal 2001, vários autores, que pretendo examinar.

Como veem, tenho leitura assegurada para o resto do ano. Obviamente, ficarão para outra data Sebastian Brant, Ludwig Tieck e Scott Fitzgerald. Prefiro dar satisfação a meus amigos (que estão aqui e são brasileiros, como eu), a me ufanar de ser leitor de estrangeiros, que não conheci nem conhecerei. Além do mais, não estou mais naquela fase de sair de casa com um Kafka, um Borges ou um Pessoa debaixo do braço, só para me mostrar aos amigos. Levo comigo escritores quase anônimos, leio-os onde é possível ler e não me importo com o que podem dizer.

Não farei resenha destas obras, porque demoro muito a escrever. Falarei, agora, de cada um deles, um pouquinho só, embora não os tenha lido na íntegra.

Para dar uma ordem a este breve comentário, separei os livros em dois grupos: um de poemas, outro de prosa. No primeiro estão Jorge Freire, Márcio Catunda, Tanussi Cardoso e Diego Mendes Sousa.

Não conheço Jorge, embora a publicação dele – Viagem ao infinito – seja de 1978. Mora em Petrópolis, RJ. Não sei se publicou outras obras. No prefácio, Maurício Cardoso de Mello Silva anotou: “Jorge Freire é jovem. (...) Começa com um livro de versos e de prosa poética de conteúdo lírico como deve ser na sua idade.” É verdade: há versos medidos e rimas ao lado de versos sem métrica e prosa poética. Num dos poemas, “Travessia noturna” se lê: “é hora de adormecer o homem/ é hora de acordar o poeta...”.

Márcio Catunda é meu amigo e conterrâneo. Vive sempre a andar pelo mundo. É diplomata de carreira. Se não me engano, está na Bolívia. Emoção atlântica (o título é uma síntese de sua vida de “andarilho” do mundo) é, no entanto, um conjunto de poemas “inspirados” no Rio de Janeiro. Como se vê em “Névoa no Pão de Açúcar”: “Flutua o Cristo sobre o convés do oceano, / guardião dos pântanos da Terra. / Cavalga filigranas nas águas movediças. / Voa sobre prédios e montanhas impalpáveis. / A cidade mergulha na textura da distância. / Quebrantos ecoam em mim. / Perplexo ante os abismos do mar, / ponho alma na intimidade dos enigmas. / Derramo soluços nos pórticos invisíveis”. André Seffrin, nas abas, observa: “ele percorre a cidade com orientação quase mística. Diria mesmo: com o coração na boca.” E mais adiante: “Mas é Vinicius de Morais quem mais aparece nominalmente reverenciado nestes poemas”.

As Edições Galo Branco, do Rio de Janeiro, têm uma coleção: “50 poemas escolhidos pelo autor”. O livro de Diego Mendes Sousa é o volume 53. O poeta é jovem (1989), nasceu em Parnaíba, PI, e tem duas obras publicadas: Divagações (2006) e Metafísica do encanto (2008). Ana Miranda confessa: “Gostei verdadeiramente de sua expressão, e de sua erudição, numa pessoa tão jovem...” De fato, poema também se faz com erudição. Castro Alves é um exemplo disso. Imaginemos se tivesse vivido muito mais.

Tanussi Cardoso é meu amigo. Conheço-o desde os tempos da revista O Saco. Dele são 50 poemas escolhidos pelo autor (volume 35) e Exercício do olhar (2006). Na apresentação deste, Luiz Horácio Rodrigues é categórico: “Tanussi trabalha o contraste estilístico tão caro e tão escasso, sem perder a coerência, a originalidade da temática e o requinte artesanal dos versos, quando a norma, idealizada pelos poetastros ordinários, exige e propaga versos belos e sem sentido.” Um grande poeta. Leiam “as sombras são” (vejam o jogo dos signos): “as sombras se esquecem / de si mesmas / e saem a espantar / as coisas, /à noite // andam trilhos imaginários / perseguem sonhos / dos homens, / as sombras // reais / riem dos objetos clareados / por postes estranhos, / as sombras” (...) É poesia rara, belíssima, de uma riqueza tão grande que só uma leitura demorada nos fará perceber onde moram os rubis do verbo.

O segundo grupo de livros recebidos é de prosa: Fernando Fiorese, Tobias Pinheiro, Rodrigo Marques, Eduardo Luz, Claudio Parreira e outros 16 contistas.

Conheço Fiorese há alguns anos: eu em Brasília, ele em Juiz de Fora. Desde a época da revista d’lira, de que era um dos editores, e de seu primeiro livro, Leia, não é cartomante (1982). Este Aconselho-te crueldade é de prosa de ficção. Sua estréia no gênero conto. E o faz com o pé direito. (Continua o preconceito com os canhotos. E sou canhoto.) No dizer de Valentim Facioli, nas abas, “Fernando Fiorese é um sujeito muito lido, culto, informado e criativo. Os quatorze textos enfeixados nesse livro são quatorze formas diferentes e originais de escrever contos”. E manda um recado: “O que conta é que a pletora de contos escritos e publicados no Brasil no último meio século por autores bons, excelentes, mais ou menos, medíocres e ruins parece carecer, nestes tempos novos e atuais, de cristalizações e sínteses que ajudem os estudiosos, os apreciadores do gênero e os leitores em geral a abrir cortinas e chegar a terreno mais ou menos seguro”.

A publicação de Tobias Pinheiro, Menino do bandolim, tem prefácio de Antônio Justa, que, desde as primeiras linhas, trata de definir o gênero da peça: “É como dizem alguns, um livro de crônicas, mas posso acrescentar que se trata de obra muito mais abrangente, porque o distinto polígrafo de Marcas de Luz quando labora o livro nunca se conforma com os limites de um só gênero literário”. Mais adiante: “Nestas páginas, quase memórias, não perdura vestígio do ardil que muitos escritores costumam empregar para fugir à veracidade da vida vivida”.

Fazendinha, de Rodrigo Marques, jovem conterrâneo meu, traz orelhas assinadas por meu amigo, poeta e professor de Literatura Roberto Pontes: (...) “não sabemos onde principia ou finda a poesia, pois em suas linhas não há limites no plano do gênero. Mas nem vem ao caso cogitar sobre gênero, porque o estar à vontade com a Língua Portuguesa e a invenção plena é a marca de Rodrigo Marques nesta cativante fabulação.” E mais: “Fazendinha conseguirá, com justiça, tornar-se par de Ou isto ou Aquilo, de Cecília Meireles, A arca de Noé, de Vinicius de Moraes, ou Os Saltimbancos, de Chico Buarque de Holanda”.

Cansei as juntas e os olhos e é chegada a hora de a onça (o tigre) beber água. Ficarão para outro dia o Manual de bruxaria, de Eduardo Luz, e o Portal 2001, presente pré-natalino do novo amigo Claudio Parreira. Para dezembro ou 2011, nossos antepassados Sebastian Brant, Ludwig Tieck e F. Scott Fitzgerald.

Fortaleza, 15 de novembro de 2010.
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Ao que nos uniu (Inocêncio de Melo Filho)


Um livro nos uniu

Que não nos separe as páginas amareladas

Um livro nos uniu

Que não nos separe os espirros alérgicos

Um livro nos uniu

Que não nos separe as brochuras

Que se avolumam pela casa

Um livro nos uniu

Que não nos separe os antagonistas

Dessa trama

Um livro nos uniu

Que não separe a solidão

Das personagens dessas histórias

Um livro nos uniu

Que nada nos separe

Amém...
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domingo, 14 de novembro de 2010

Considerações sobre miniconto

(De uma carta de Wilson Gorj a Nilto Maciel)



Alcançar um bom nível literário é sempre difícil. No miniconto, principalmente. [...] A meu ver, os microcontos devem ter personagens sem nomes próprios (a menos que o nome contribua de alguma forma para o significado do texto). Um nome próprio tem um peso que o miniconto não suporta, pois traz consigo identidade e personalidade. Aos personagens dos minicontos, quase sempre, isso é dispensável, haja vista o seu parentesco com as fábulas e, destacadamente, as parábolas. Como nestas, os personagens ficam melhor quando genéricos (o soldado, a viúva, o corno, o filho pródigo) ou, ainda, quando são indefinidos. Ex.: “Achou uma caneta na rua”. Perceba que assim o leitor é absorvido imediatamente pela frase. Dá-lhe a impressão de que é ele quem achou a caneta; de certo modo é como se o leitor se sentisse o personagem da história. A identificação é imediata, instantânea. Diferentemente de quando o personagem é apresentado com um nome próprio. Cria-se certo distanciamento – distância que um romance ou mesmo um conto tratam de eliminar no desenrolar da história. O miniconto não dispõe do mesmo tempo. Por ser muito curto, nele o envolvimento precisa ser imediato, a entrega, instantânea. Tanto defendo este ponto de vista, que meus minicontos raramente possuem personagens com nomes próprios. É por isso que me considero um escritor de situações, não de personagens. Um minicontista está mais para Esopo e Gibran do que para Flaubert e Dostoievski. Se comparássemos os artistas da palavra com os da imagem, o romancista estaria para o cineasta; o contista, para o produtor de curtas, e o minicontista, para o fotógrafo. Nesta linha de raciocínio, os minicontos seriam flashes do cotidiano, enquadramentos ou registros de certas situações.

Outra ideia que me ocorre a respeito do miniconto é que talvez este seja dos gêneros o mais literário. Nisto se parece muito com a poesia. Por quê? Um bom miniconto só se realiza por meio de uma acertada disposição de palavras muito bem escolhidas. Não conseguimos contá-lo de outra forma, sob o risco de perder a sua essência (é aí que se difere da piada); portanto, não há como migrá-lo para outra linguagem, como a do cinema, por exemplo, que é bem viável aos romances. Os minicontos (nem todos, claro) nos encantam não só pelo que contam (ou menos por isso, até) mas muito mais pela forma como contam seus enredos e situações.
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Considerações sobre “Olhos azuis – Ao sul do efêmero”, de Emanuel Medeiros Vieira (Maura Soares*)


Como em tantos outros dias que amanhecem, acordei de madrugada, precisamente às 3.45h do dia 7 de março de 2010 e retomei a leitura de “Olhos Azuis – Ao sul do efêmero”, de Emanuel Medeiros Vieira, leitura interrompida às 23 horas do dia 6 para dar lugar ao sono que se avizinhava e que foi direto, sem escalas.

Acabou. “O último ato coroa a peça”, já disse alguém, recordo-me somente da frase agora.

sábado, 13 de novembro de 2010

Eleição (Jéssica O. Dias*)


Confusão. O suor escorria pelas têmporas, ele apertava os olhos, erguia as sobrancelhas, esticava o indicador; um calafrio perpassava o corpo, a mente quase explodindo, milhões de números na corrida do futuro. O peso de fazer a escolha errada dominava. E, agora, o que fazer?

– Vota! – gritou o mesário.

– Você demora demais, a fila é muito grande! – gritou a outra.

A pressão aumentava, a mental e a corpórea; são tantos cargos políticos em quem votar pra cada um?

– Apresse, moço!

– O Brasil não tem futuro, não! Vota em qualquer um!

Diante disso, Alberto quase entra em estado de choque. Como pode o cidadão tratar dessa maneira o futuro da nação? O voto é tão banal assim? Alberto iniciou essa discussão com o mesário.

– Essa não é a hora de refletir qual o melhor candidato, senhor. A campanha serve para isso.

Errou Alberto, errou o mesário.

– A pressa é inimiga da perfeição.

– A demora é inimiga do tempo e da população.

Alberto digitou os números que venceram a corrida em sua mente. A tecla verde o encarava como num pesadelo que duraria quatro anos. A culpa por não dar atenção às campanhas eleitorais dos candidatos o possuía e, antes que mais alguém gritasse, Alberto apertou a tecla verde. O som da urna encheu a sala e todos os mesários, antes em pé, se sentaram aliviados.

Foi a confirmação de que ninguém dá valor à eleição. Nem mesmo o mesário, que tem o dever de mostrar a importância desse fato histórico. Alberto confirmou que todo cidadão, não importa a eleição, não reflete durante as campanhas sobre qual o melhor candidato, e, no melhor estilo brasileiro, deixa pra fazer tudo em cima da hora.

– Cinco horas, acabou o tempo, fim da sessão!


*Jéssica O. Dias tem 14 anos de idade e cursa o 9° ano, em Fortaleza.
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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Odalisca perdida no meu sonho mouro (Nilto Maciel)


(Para Carmen Sílvia Presotto)

Causa e efeito, causalidade, destino, deus, deuses. Ontem à noite pensei nisso. E consegui dormir cedo, antes das duas horas. Pois ontem acordei bem cedinho. Antes das sete. Acordei com um só pensamento: reler As relações perigosas. A ideia erótica me veio ao acaso (ou por acaso): não tive sonhos amatórios (a não ser com uma cabra que se aproximava do alpendre onde eu dormitava e me lambia os pés); não assisti a filme de devassidão na noite anterior; ninguém me falou de sexo; não imaginei nenhuma mulher. Pois, à tarde, recebi mais uma visita de Jéssica Morais, a menina que conhece literatura russa e quer ser poeta. E sabem o que ela trazia à mão? Não, não eram As relações perigosas. Trazia Les liaisons dangereuses, de Choderlos de Laclos. Para não deixá-la impressionada, não lhe falei de minha manhã de fauno senil nem de minhas dúvidas metafísicas. Sem saber que dizer ou fazer, mostrei-lhe, na mesa, dois livrinhos brasileiros, nada obscenos: Dobras do tempo e Encaixes, de Carmen Sílvia Presotto. Quem é ela? Uma amiga. De onde? Porto Alegre.

Para não me deixar conduzir pelo interrogatório, pus-me a falar da poetisa gaúcha: Professora graduada em Língua Portuguesa e Literatura Clássica, além de formação psicoanalítica. Jéssica fazia uma caretinha (olhei de relance para ela, por acaso). Talvez o senhor precise mesmo dela. Fiz-me de desentendido. Aceita um suco de graviola? Quem fez?

Saciadas nossas sedes, voltei aos livros: Carmen participou de diversas oficinas de literatura. O que são oficinas de literatura? Disse duas ou três frases longas e embaraçosas (como costumam fazer os palestrantes que não sabem explicar o explicável) e sapequei mais informações sobre a escritora sulista: Edita o blogue vidraguas.com.br (Projeto Vidráguas, cujo objetivo geral é “Possibilitar o estudo e a organização de Poemas, Contos, Novelas – escritos – para que saiam das gavetas e ganhem corpo escritural para serem publicados”).

Feita a apresentação, propus-me ler, pelo menos, um poema. E li “Expiação”: “Ah, seu fantasma! / Coloquemos tinta nas veias / Vistamos nossas carnes // Sem pantalhas, / baixemos a cortina / e zarpemos // Decantados / sem frestas nem gavetas / homens-palavras / sejamos!”

Jéssica bateu palmas. Fui além disso, bradei: Viva a Poesia! E tão retumbante se deu meu brado que o eco despertou um passarinho que bicava o chão de meu quintal (seria um pardal?) e seu bater de asas me fez vislumbrar uma noite de terror. Que pesadelos eu teria? Jéssica, não lerei mais Choderlos de Laclos. O senhor tem medo da luxúria? Não, tenho medo de enlouquecer. Ela abriu um dos livros e leu: “Nessas telas absurdas, / um encantamento / entre fantasmas prolifera. // Sujeito metido! / Canta como se tudo que importasse / fosse canção”. Fechou o livro, deu um beijo na capa (receba esse ósculo, Carmen) e decidiu: Depois de Laclos será a vez de Sade. E se despediu de mim, num riso de odalisca perdida no meu sonho mouro.

Fortaleza, 10 de novembro de 2010.
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