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quinta-feira, 31 de maio de 2007

Lampião à italiana (Nilto Maciel)


















Ruggero Figini descobriu o Brasil em 1974. Desembarcou na Bahia e logo tratou de conhecer o Pelourinho. Porém queria muito mais que acarajé e candomblé. Cobiçava um papel no filme Dona Flor e seus dois maridos. De preferência o de um deles. Procurou Bruno Barreto. Talvez estivesse no Rio de Janeiro. E Sônia Braga? Ninguém sabia dela.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

O afeto que se encerra (Ilídio Soares)

(Toulouse Lautrec)

Eu só quero lhe perguntar como é mesmo que eu durmo, como é a ponta da minha língua, a mesa, a mesa que eu lhe ofereço o café, o pão e a manteiga. Se eu bebo vodka, disso você lembra, mas quando digo que o seu tesão não me fura mais o ventre, ah isso é provocação. Você me faz parecer um pedaço de velha, uma filha de Maria, destroços de roupas atiradas sobre uma poltrona nauseada e azeda. Achando-me única, na verdade sou sua melhor invenção pra se livrar das beatas abnegadas por uma tal de paixão. Mas deixa eu lhe falar, o que entristece são os doentes, os suicidas, os atropelados pelos carros e toda uma coleção de insetos esvoaçando sobre as feridas em obstinada putrefação. Eu, meu querido, eu sou apenas o desvio do seu olhar, a sua cordialidade sem receio de ficar idiota e impassível. A certeza que não se enganou de quarto e saiu desembestado agarrando a hóspede pelo cabelo. Eu sou isso, sim senhor. A esposa que não se confunde com a cunhada, o cumprimento da madame com donaire de vadia, e que você insiste confundir com a mãezinha enervada esperando por você no alto da escada.

Por culpa de Anouilh (Nilto Maciel)


















Três dias antes de morrer, Jean Anouilh recebeu a visita de Jorge Menezes. Testemunhas oculares referiram-se a um grande susto do dramaturgo. Jorge apresentou-se em trajes de coveiro. E, pior, leu trechos de seu drama ( ou dramalhão, como diziam alguns críticos ) “Covas, o democrata do Inferno”.

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Biazulmi, um anti-herói neopicaresco (Adelto Gonçalves*)



 
A picaresca clássica não se repete e só tem sentido se associada aos séculos XVI e XVII. É um gênero que reúne obras que refletem uma visão irônica e pessimista do homem e uma perspectiva cética em relação à sociedade espanhola de sua época. Constituem ainda o reflexo da tensão provocada pelo confronto entre o indivíduo e uma sociedade extremamente opressora.

A gênese do romance picaresco, como se sabe, é o Lazarillo de Tormes, que conta a história do jovem Lázaro que, para sobreviver, vira guia de cego. Não surgiu do nada, pois, à época em que ganhou vida literária, histórias inspiradas no imaginário medieval – inclusive, nas novelas de cavalarias, já em fase de degenerescência – eram leituras constantes de todo homem culto do Renascimento.

Belo céu, vero céu (Nilto Maciel)























Enquanto vasculhava o céu com sua luneta, Gilbert Seurat sonhava com a Terra. Queria conhecer o mundo, viajar pelo planeta. A Europa já lhe parecia a própria casa. Amigos o aconselhavam a se radicar na Alemanha. Falavam de Effelsberg. Porém Gilbert guardava rancor aos alemãos. Seu pai havia morrido em combate aos nazistas. “Coisas do passado”, justificavam. Fosse, então, para os Estados Unidos, se não preferisse a União Soviética ou a China. “O observatório de Fred Whipple...”. Não, nada de comunismos, ideologias, guerras nas estrelas. Queria apenas descobrir outro planeta. E entrar para a História da Astronomia. Por que não chegar ao “teto do mundo” e de lá, com sua luneta, avistar de mais perto a explosão do Universo?

sábado, 26 de maio de 2007

Aqui, do meu quarto (Dimas Carvalho)




Moramos todos nós nesta casa, cada um no seu quarto, a família toda. Não sei precisamente quantos somos, porque nunca nos vemos; na verdade, nenhum de nós sai de seus aposentos. A comida é entregue no quarto no momento em que o lixo diário é recolhido. Também não se vê quem entrega a comida e recolhe o lixo. Mas, embora passando os dias trancado aqui, viajo pelo mundo todo. Ultimamente estive em Camberra, depois passei pelo Texas, Espanha, a Patagônia e a Cidade do Cairo.

Espumas e estrelas (Nilto Maciel)




















O físico Alexandre Neves viveu seus últimos dias num manicômio. Completamente abandonado pelos familiares e ex-colegas.
Alexandre fez-se famoso a partir de 1961, quando conheceu Hannes Alfven e se dedicou ao estudo das teorias do futuro Nobel. Logo passou a publicar artigos e ensaios, na revista Física, onde demonstrava erros científicos nas teorias do físico sueco.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

O cálice dos desesperados (Luciano Bonfim)


(Gregor Samsa, na visão de Christophe Huet)


“Cada vez mais silenciosos e se entendendo quase inconscientemente através de olhares, pensaram que já era tempo de procurar um bom marido para ela. E pareceu-lhes como que uma confirmação dos seus novos sonhos e boas intenções quando, no fim da viagem, a irmã se levantou em primeiro lugar e espreguiçou o corpo jovem”. Kafka – A Metamorfose. Tradução : Modesto Carone

Como todos sabem, o médico e o serralheiro não foram localizados.

O gerente, pela sua lealdade e empenho em resolver o caso, fora promovido, tendo direito a um intervalo de duas horas para o almoço e folga aos domingos. Para a vaga que ficara ociosa, investido de seus novos poderes, contratou de imediato o seu cunhado, há oito meses desempregado e vivendo de sua amizade. 

Conselho de Luís XVIII (Nilto Maciel)













Durante muito tempo Carlos Prado se considerou desenhista de primeira grandeza. Também muita gente o considerava assim.

Desde menino garatujava, desenhava, pintava. Criança-prodígio, diziam seus pais e parentes. Seria um Michelangelo. Pena ser brasileiro. 

terça-feira, 22 de maio de 2007

Brinco de miçanga (Vera do Val)



Zé ia passando quando viu o brinco vermelho, pingente de sangue e desejo, misturado nas quinquilharias da banca da Nana. O mercado estava cheio, ele foi empurrando as gentes, se achegando, preso no brilho, tocou com o olho, foi escorregando devagar. Depois aproximou o dedo e titilou de leve, sorriso abrindo a boca desdentada. Tomando confiança segurou a miudeza e trouxe pra mais perto. A cascata de miçangas vermelhas cintilou, o sorriso dele alargou-se. Ofegou, o coração deu um salto, sentiu a boca seca.

Bicho asqueroso (Nilto Maciel)



















Três dias antes de morrer, Euclides Azevedo leu uma biografia de Arnaldo de Bréscia. Pouco mais de cinqüenta páginas. O livrete fazia parte de uma coleção. O primeiro volume biografava Frederico Barba-Roxa. Os volumes seguintes eram dedicados a Carlos Martel, Carlos Magno, Henrique IV, Ricardo Coração de Leão e outros monarcas.

domingo, 20 de maio de 2007

Um menino chamado Jesus (Valéria Eik)


A carroça vinha carregada de sal grosso, açúcar mascavo, garrafas de pinga da boa, encomendas de toda sorte, e de quebra, dois porcos que grunhiam sob um calor de quarenta graus.

Antero segurava as rédeas com as mãos calejadas e seu corpo sacolejava, indolente, seguindo o ritmo da carroça. O sono turvava a sua visão da estrada e do céu muito azul, sem nuvens, mas, era impossível dormir; qualquer descuido seria recompensado por dentadas dos porcos que já andavam inquietos com o calor. E o sol inclemente cozinhava os seus miolos, apesar do chapéu de palha encardido a lhe cobrir a cabeça.

Bicho amarrado para morrer (Nilto Maciel)















Prisioneiro dos tupinambás, Hans aguardava cristãmente a morte. Lembrava-se perfeitamente de tudo, desde sua captura, naquela fatídica manhã de 1554. A chegada à aldeia, a recepção, a festa. Mulheres e crianças o esbofetearam. Cortaram-lhe sobrancelhas e barba. E o amarraram pelo pescoço, como se fosse bicho. Sentira-se espiritualmente aniquilado. Reles vivente. À espera do golpe mortal. Para depois ser esquartejado, assado e comido pelos canibais.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Brevê (Anibal Beça )

Para o Dr. Leonardo Cavalcante


Hoje caminho por um céu no chão
Desabados do azul meus pés são nuvens
Manso me assomo
sombra semeada
Sequer o rumor rápido rasteja


Passos se elevam pássaros implumes
Nervos são grãos
colhidos de arrepios


Ainda sinto fagulhas
tartamudas
choques intermitentes
circulando


Granizo em garoa
rega violetas
roxas sem tato
caminho em curto circuito


Meus pássaros de longo curso
procuram plumas para a fuga do ninho


Asas pra que vos quero?
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quarta-feira, 16 de maio de 2007

A fome de Malthus (Nilto Maciel)

























Havia três dias o reverendo Thomas Malthus não se alimentava. E pouco dormia. Precisava fazer a revisão final de seu livro. Não queria um só erro tipográfico. Nada de gralhas. Morto de cansaço, sono e fome, adormeceu sobre o impresso. E teve um sonho horrível. Acordava, faminto, e gritava pela criada. Preparasse urgentemente um farto almoço. A criada, porém, não pareceu ouvi-lo. Irritado, Thomas correu à cozinha. E encontrou o corpo estendido no chão. Fedia. Talvez tivesse morrido de preguiça.

Momento em Buenos Aires* (Clodomir Monteiro)
























en la mesa
pasa pan pasa ojo
pero no pasa la vida
en la calle
pasa fardo pasa cuerpo
mas se siente es viento
por el habla
pasa ruido pasa sonido
más se entiende la nada
por la quinta
pasa asado se bebe el vino
pero se olvida al tango
en la vida
pasa vuelta pasa hora
pero solo pasa es tiempo
por la ruta
pasa coche pasa micro
mas no se para la bomba
en la mente
pasa mano pasa pie
mas que pasa el espejo
por el plato
pasó pan pasó bala
ahora se come el fuego
en la plaza
pasó hombre pasa hambre
más se enjaula al pluebo

* Não se trata de tradução, ou versão. É uma construção evocabular, na proposta praxis. Semântica e sintaxe caminham paralelas com sinonímia, fonética e morfologia
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terça-feira, 15 de maio de 2007

Um coveiro monstruoso (Nilto Maciel)














Montado num cavalo recém-domado, Átila percorria a vista pelos prados da Panônia. O animal trotava, cheio de garbo, como se quisesse dizer ao homem que também tinha dignidade.

Satisfeito com o procedimento do cavalo, Átila pôs-se a falar, carinhosamente. Dar-lhe-ia um belo nome. Que tal Huno? Não, arranjaria um nome próprio dos melhores animais. Leão, por exemplo. Sim, Leão.

Os limites provisórios (Carlos Willian Leite)



e pastam em nós os rebanhos


escondidos à sombra de nós mesmos


à superfície enferrujada das pálpebras


dos anos


onde noturnas pequenas aves


ciscam o mármore dos relâmpagos

domingo, 13 de maio de 2007

As infinitas pernas de Wellington (Nilto Maciel)



Reprodução caricatura de James Gillray mostra Napoleão (D) disputando o mundo com o general inglês William Pitt


Era anão. Sujeitinho do tamanho de um dedo de homem comum. E comandava milhares de outros seres feitos à sua imagem e semelhança. Valentes soldados.

Sempre vitorioso, esse general de alguns centímetros tinha mania de grandeza. Sonhava conquistar o mundo. Tornar-se o rei da Terra.

Investigação sobre Pedro Lyra (Dimas Macedo)



Da transitividade do ser aos processos de reificação ou de transformação da consciência reina, de forma soberana, a maior de todas as linguagens criativas. O ato de criação ou de transfiguração da poesia é tão sutil e magnético quanto a manifestação de todos os mistérios e mitos insondáveis.

Acho que podemos falar de uma mística da poesia, assim como podemos supor a inexistência da matéria a partir das suas formas plurais de energia. A espada e a lírica com que se arma o empreendimento do poema tanto podem construir a geopolítica de qualquer civilização planetária quanto transformar os processos sociais e econômicos de qualquer modo de produção em andamento.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Desastre sobre o labirinto de Creta (Nilto Maciel)



 
Chamava-se Ícaro. Belo rapaz, apaixonado por aventuras perigosas. Sobretudo aéreas. E quantas quedas, quantas decepções! Desde muito criança experimentava os mais variados vôos. De cima de muros, de galhos de árvores. Sempre incentivado pelo pai. Um sujeito meio louco chamado Dédalo.

Vida, obra e mito: a auto-construção de Alejandra Pizarnik (Ana Maria Ramiro)


(Alejandra Pizarnik)


"Sobre negros penhascos se precipita
embriagada de morte
a ardente namorada do vento".
(Georg Trakl)


"A letra de Alejandra era pequenina, como um caminho de
formigas ou um minúsculo colar de grãos de areia. Mas
esse fio, com toda a sua leveza, não se apagará nunca,
pois é um dos fios usados para entrar e sair do labirinto".
(Enrique Molina)


Há 70 anos, em 29 de abril de 1936, nascia em Avellaneda, Buenos Aires, Alejandra Pizarnik, uma das mais importantes escritoras latino-americanas do século XX. Uma mulher libertária, "uma poetisa ávida pelo naufrágio", como dizia seu amigo e também escritor, Júlio Cortázar, e até hoje, relembrada pela crítica e mitificada pelo público, que se deleita com a leitura tão profunda de uma existência humana.

segunda-feira, 7 de maio de 2007

A divisão do mundo (Nilto Maciel)


Na latrina, Carlos Magno cismava. Conquistar mais terras, expandir o reino, o Regnum Francorum, tornar-se Imperador do Ocidente. No entanto, aquela dor não passava. Maldita comida! Mandaria matar todas as cozinheiras do palácio.
Sim, um novo Império Romano, milhares e milhares de soldados e súditos, terras e mais terras para pilhar, pisar e legar aos filhos.
A dor tornou-se mais intensa. Gemer, a sós, não lhe tiraria o cetro, o título de Rex Francorum et Langobardorum. Mesmo assim, nunca mais comeria tanto. Já não era tão moço.

No rastro da História, Nilto Maciel pega o fio da meada e alinhava livro sobre os contistas do Ceará (Valdivino Braz)



O advogado, escritor e articulista Nilto Maciel, cearense afeiçoado e dedicado à literatura, tanto na produção quanto na divulgação da mesma, durante vários anos residiu e militou em Brasília, antes de mudar-se para Fortaleza, capital do Ceará. É de lá que ele envia, para uma informativa leitura e divulgação em Goiás, o livro Panorama do Conto Cearense, de sua autoria, entre outros que ele já produziu e publicou, nas áreas do conto, romance e poesia, além de resenhas de livros em diversos veículos da imprensa brasileira.

sábado, 5 de maio de 2007

Carta a Alexis (Aíla Sampaio)

(Para M. Yourcenar)

Quadro de Rubens)


Como não me deste a oportunidade de ler nos teus olhos tudo que disseste, querido Alexis, por medo de ser interrompido ou fraquejar a cada frase, também eu interponho certa distância entre a minha piedade e a tua pessoa; também eu me submeto à traição das palavras, embora, como tu, ache que só a música seja capaz de estabelecer o encadeamento entre os acordes. Foi ela o sinal mais claro. Deixaste-a (como) por mim e a ela voltaste por ti, quando afinal decidiste tua vida.

A ideia de matar Pilatos (Nilto Maciel)




Jesus Cristo havia sido crucificado e sepultado. A paz reinava, afinal, em Jerusalém. Falava-se, porém, no desaparecimento do cadáver. Os mais fanáticos acreditavam em ressurreição.

Entre inquieto e feliz, Pôncio Pilatos decidia ir a Roma. Transmitiria pessoalmente as novidades a Tibério, o imperador.

E montava seu fogoso cavalo.

Dias e dias de viagem, por desertos, montanhas, penhascais.

Navegador (Anderson Braga Horta)



Nilto Maciel é conhecido pela prosa de ficção, que lhe tem valido alguns prêmios. Promotor literário obstinado, organizou algumas coletâneas de contos e de poemas, figurando entre seus créditos a criação e sustentação da revista Literatura. Depois dos êxitos nessa seara, no conto (Itinerário, Tempos de Mula Preta, Punhalzinho Cravado de Ódio, As Insolentes Patas do Cão), na novela (A Guerra da Donzela) e no romance (Estaca Zero, Os Guerreiros de Monte-mor, O Cabra que Virou Bode, Os Varões de Palma), decide-se a publicar poesia e nos dá Navegador (Brasília: Códice, 1996). Embora o vejamos mais em seu elemento quando escreve prosa, sua poesia tem qualidades de que a imaginação não é a menor. Seu veículo de eleição é o verso medido, o temário é variado. A dor é, talvez, a presença mais constante (a palavra dor e seus cognatos, sinônimos e parentes, a dor e suas metáforas); mas o Poeta não se deixa naufragar no pessimismo, de que o resgata uma atitude lírico-irônica, aqui ilustrada – para encerrarmos a nota com um exemplo excepcional – pelo oxímoro do fim de “Testamento”: “– a doce vida amarga que adorei”.

(Sob o Signo da Poesia: Literatura em Brasília, Ed. Thesaurus, Brasília, 2003, p. 481)
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quarta-feira, 2 de maio de 2007

A celebração do hedonismo da poesia de Regina Lyra (Reynaldo Valinho Alvarez)



Atos em Arte, de Regina Lyra, é um livro muito bem afinado com a personalidade da autora. É, portanto, um livro fiel ao comando afetivo de Regina. Seus sentimentos nele se projetam como corpos despidos em praias que se abrem para a intensidade do sol tropical, sem rebuços, acanhamentos ou timidezes, plenos do cálido desejo de se ofertarem à mornidão dessas longas tardes infindáveis, repletas de sensualidade e preguiça. 

Um sonho cartesiano (Nilto Maciel)

(Descartes)


O capítulo mais soberbo de Sonhos Ilustres, de Domenico Moravia, talvez seja aquele dedicado ao filósofo Descartes.

O autor nem sempre informa onde teria colhido o material para a elaboração de sua interessante e volumosa obra. Porém são os livros de memória a fonte principal de sua pesquisa. Não no caso de René Descartes.